Na mercantilização da vida, as ilusões
vendidas matam![1]
Jefferson Nascimento*
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Há uma semana, o programa dominical Fantástico, da Rede Globo, anunciou o resultado da perícia descartando a falha mecânica no acidente que chocou o Brasil em 25 de novembro de 2020, no município de Taguaí-SP. Na ocasião do programa, a abordagem foi completamente focada na "falha humana", entrevistando pessoas para denunciar que o motorista dirigiu outras vezes em alta velocidade e que, antes, já havia tentado ultrapassagens perigosas. Como denunciado no texto abaixo, na abordagem da imprensa "[...] não
há contexto, mas uma coleção de decisões individuais que se encontraram 'por
acaso'." E isso não é exatamente fortuito, confira a íntegra do texto sobre o caso, publicado originalmente no site "A Terra é Redonda".
Costumamos
dizer que acidentes acontecem: decisão errada, hora errada, falha humana ou
mecânica ou fatores inexplicáveis. Quase sempre a abordagem é identificar se
houve imprudência, falha humana, falha mecânica. Individualizar a culpa é o
caminho mais profícuo para reproduzir nossa sociabilidade sem sobressaltos.
Individualizar
a culpa é o outro lado da moeda do self
made man. Não há sociedade. Há um coletivo de pessoas mediadas pelo
mercado. Nessa coleção de indivíduos, é possível vencer pelo esforço ou
capacidade individuais. Não há estrutura! O mercado, com sua mão invisível, é
justo e premia os esforçados e competentes. Premia até aqueles que possuem uma
“fé inteligente”. As injustiças são meros frutos de intervenções indesejadas
nessa estrutura “perfeita”.
Não
é preciso muito esforço para demonstrar histórica e estatisticamente tal
absurdo. De modo similar, é possível afirmar que tragédias acontecem, mas
contextos sociais favorecem mais ou menos a ocorrência. Decisões individuais
podem ocorrer pela pressão para ampliar produtividade. Falhas mecânicas podem
ocorrer mais em contextos em que há oportunidades de mercado para baratear a
operação. Sem fiscalização, a concorrência dita o que permanece ou não. No
entanto, para muitos, o cálculo possível é o preço. Ainda que haja “n”
tergiversações teóricas de que, em dado período de tempo, permanecerão os
melhores, há setores em que a ausência de fiscalização ceifa vidas antes que os
consumidores percebam quem são os “melhores”.
Dia
25 de novembro de 2020 a pequena Itaí chora. O Brasil amanhece com a notícia da
tragédia. Um ônibus e um caminhão se chocam na rodovia SP-249 no trecho Taquarituba-Taguaí.
Foram 51 pessoas envolvidas. Ao fim do dia, eram 41 mortos. Exceto o motorista
do caminhão, os mortos eram funcionários da Stattus Jeans Indústria e Comércio
Eireli. O motorista do ônibus, até o momento, se encontra em estado grave [a situação se referia à época da publicação original, o motorista sobreviveu, prestou depoimento e concedeu entrevistas recentemente].
A
imprensa superficializa ao reduzir sua “denúncia” em três pontos: (a) Geison
Machado, motorista do caminhão, não poderia dirigir aquele caminhão por não
possuir habilitação categoria “D”; (b) a empresa do ônibus que levava os
funcionários para a Sttatus Jeans, em Taguaí, estava irregular desde o fim de
2019; (c) é provável uma falha humana, pois investiga-se uma ultrapassagem
proibida do motorista do ônibus. Como na lógica da meritocracia, da “fé
inteligente”, do self made man, não
há contexto, mas uma coleção de decisões individuais que se encontraram “por
acaso”.
Não
é bem assim. O advogado da Stattus Jeans, Emerson Fernandes, confirmou ao UOL
que o ônibus era uma “espécie de ‘lotação’ contratada pelos próprios
funcionários sem ligação direta com a Stattus Jeans”. Tal situação não decorre
ao acaso. Antes da Reforma Trabalhista de 2017, as empresas tinham maior
responsabilidade legal pelo trabalhador no trajeto para a empresa e tornava a questão
do transporte mais séria. Quando não era possível o vale transporte para
utilização do transporte público, era mais seguro para a empresa contratar o
transporte. Dada sua responsabilidade, havia incentivos para verificar a
regularidade da empresa contratada, exigir condições adequadas no veículo
utilizado, planejar percurso e horário para garantir condições seguras e em
conformidade com a legislação de trânsito. O artigo 21, IV da Lei 8.213/91 incluiu como acidente de
trabalho aquele acidente ocorrido "no percurso da residência para o local
de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção,
inclusive veículo de propriedade do segurado". A regra geral era
considerar o acidente no trajeto como acidente trabalhista para benefícios
previdenciários e estabilidade após o acidente, incluindo a obrigação legal de emitir
a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) enviada para a Previdência Social.
A responsabilização civil (danos materiais e morais) da empresa não era
automática, mas poderia ser alvo de ação judicial.
Ocorre
que a Reforma Trabalhista de 2017 alterou o §2.° do artigo 58 da CLT: “O tempo
despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do
posto de trabalho e para seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de
transporte, inclusive o fornecido pelo empregador não será computado na jornada
de trabalho, por não ser tempo à
disposição do empregador” (Lei 13.467, de 2017). Sem invalidar completamente o dispositivo mencionado da
lei 8.213/91, a reforma trabalhista mudou e tornou polêmico o entendimento da
questão. Ao não considerar jornada laboral, há brechas para que as empresas se
eximam de toda e qualquer responsabilidade, inclusive deixa de ser obrigatório
o preenchimento da CAT. Para conseguir judicialmente algo após o acidente, o
trabalhador precisa provar que houve alguma violação ou negligência por parte
da empresa. É possível algum ganho em processo judicial, mas cabe ao
trabalhador o ônus da prova. Deste modo, sem o fornecimento do transporte pela
empresa fica mais difícil provar a violação ou negligência do empregador.
Para piorar, a fim de dirimir essa e
outras polêmicas, o governo Bolsonaro/Guedes promulgou a MP 905/19, chamada de
Contrato Verde e Amarelo. Por essa MP, sequer os direitos previdenciários
(benefícios e estabilidade) não poderiam mais ser requeridos pelo trabalhador
um acidente no trajeto, sustando, dentre outras medidas, o artigo 21, inciso IV
da Lei 8.213/91.
Vale de transporte em dia, cada
trabalhador que se vire para chegar. Coletivamente, por questões práticas e
econômicas, muitos trabalhadores se juntam para fretar ônibus e vans para
chegar a empresas onde o transporte público não alcança de modo eficiente. Não
há muita condição objetiva desses trabalhadores exigirem empresa regularizada,
verificar as manutenções preventivas do veículo. No caso em tela, falamos de
trabalhadores no contexto de Taguaí, cujo piso salarial de um costureiro de
confecção é R$ 1.071,48, a média é R$ 1.173,98 e o teto salarial é R$ 1.774,16,
um revisor têxtil recebe um salário médio de R$ 1.138,00. Pronto: a maior parte
das pessoas envolvidas no acidente estava naquele local e hora trágica em um
transporte irregular e precário por reação a uma redução de direitos
trabalhistas.
“Ah! Mas, poderia ocorrer em um ônibus
regular fornecido pela empresa!”. Poderia, mas não foi o que ocorreu. O
contexto do caso está eivado de irregularidades que favoreceram a ocorrência da
tragédia. E, para a Stattus, há dois problemas: (1) a MP905 foi revogada na
Câmara, não foi analisada no Senado e caducou em 20 de abril deste ano; (2) a
Star Fretamento e Locação Eireli EPP afirma ter sido contratada pela Stattus,
não pelos trabalhadores. Não sabemos quando foram contratados os trabalhadores
naquele ônibus, mas todo trabalhador contratado entre 1 de janeiro e 20 de
abril, não tem sequer a cobertura previdenciária garantida, seguindo o regime
da MP. Os familiares dos demais (caso contratados em outro período) poderão
enfrentar um longo processo jurídico para tentar responsabilizar, ainda que
indireta ou solidariamente, a empresa. Também não sabemos se a Stattus
contratou ou não, se intermediou ou apenas tenta dificultar a caracterização da
“violação e/ou negligência”.
Vivemos um processo em que, conforme
nossa economia se desindustrializa e reduz postos formais de trabalhos, o apelo
para “empreender”, “vencer por si mesmo”, “não depender de patrão” aumenta.
Como se fosse possível uma sociedade com economia pujante composta majoritária
ou totalmente por “empresários de si mesmos”. O discurso individualista e a
palavra “empreendedorismo” encantam e se banalizam. Empreendedor, de modo
atraente, passou a designar no imaginário social todo e qualquer indivíduo com
um “negócio próprio”. Mesmo que esse negócio seja fruto da necessidade mais
básica, não resolva um problema da sociedade, não inove, sature e desvalorize
atividades ou setores profissionais inteiros. Inclusive, há um termo para todos
que precisam se virar para comer: “empreendedorismo por necessidade”.
“O futuro será dos empreendedores!”
Daqueles que se esforçam e buscam caminhos para vencer por si mesmo. O futuro
era de Geison Machado que contava no final de semana seus planos para a esposa.
O futuro do jovem de 22 anos foi interrompido entre Taguaí e Taquarituba.
Geison não voltou ao Paraná com novos planos e na mídia, além de vítima de uma
suposta ultrapassagem ilegal e imprudente do ônibus, foi tratado como o
motorista irregular sem a carteira habilitação categoria “D”. O mesmo complexo empresarial
de comunicação que vende ilusões de vencer na vida sem depender de nada e
ninguém, como se recursos brotassem magicamente, não reconheceu que Geison
seguia essas ilusões vendidas nem na hora de sua morte. Ele poderá descansar em
paz, não sem antes ser exposto por sonhar.
Por outro lado, o motorista do ônibus, em
estado grave, luta para sobreviver. Se felizmente conseguir, tentará provar sua
inocência. Não haverá clemência pelo contexto de sua decisão. A pergunta agora
é apenas essa: ele ultrapassou em lugar irregular? Houve falha mecânica? Por
que ele dirigia um veículo irregular?
Não se pergunta porque em um contexto de
precarização do trabalho surgem diversas modalidades, em número abundante, de
transportes “alternativos”. Transportes movimentam a economia reduzindo custos:
que nos diga a Stattus Jeans! Fenômenos como esse só ganham atenção da mídia na
tragédia ou no denuncismo superficial e oportunista. Não importa se a pressa do
motorista era pela pressão de fazer não sei quantos trajetos para sobreviver em
tempos de crise. Não importa saber porque a empresa, regular até outubro de
2019, não voltou a se regularizar, porque tinha inscrição na ARTESP e não na
ANTT, porque fazia um trajeto sem autorização dos órgãos competentes. Não
interessa o contexto econômico que conduziu a empresa e o motorista àquela
curva, interessa apenas identificar a responsabilidade individual. Identificada,
o motorista e/ou a Eireli de transporte serão tratados como únicos responsáveis
por toda a tragédia sem considerar o quanto essa pressão por empreender sempre,
independente das condições materiais, produz desgraças.
É claro: a questão não é eximir pessoas
de responsabilidades individuais. Mas, compreender como tais responsabilidades
são provenientes de uma estrutura social. Apontar indivíduos sem discutir questões
contextuais apenas fomenta o desejo de vingança, travestido de apelo à justiça.
Porém, só existe justiça numa perspectiva societal. Justiça preconiza um estado
ideal de sociabilidade. Nos tribunais inquisitoriais aos trabalhadores e aos
pequenos “empreendedores”, cúmplices da negligência do Estado e benevolentes ao
grande capital não há bem comum.
Quantos jovens trabalhavam
temporariamente na Stattus Jeans? Quantos jovens que, pelas condições
materiais, usaram a flexibilidade do ensino remoto nas escolas ou faculdades
para “ajudar nas contas da casa” e “ganhar algum para empreender”. Afinal, não
se diz que o vencedor trabalha enquanto os outros sonham?
O resultado, todos sabemos: só neste caso, 41 vidas
não sonham, não agem e nem poderão “empreender” mais. As causas individuais
serão exaustivamente repetidas. As questões estruturais que os levaram àquela
curva, não poderão ser discutidas na imprensa. Num cenário de baixa complexidade
econômica, agem para introjetar em nós o desejo de empreender independente de
nossa situação de classe, da escassez de recursos, ainda que o nosso corpo seja
o preço a pagar para a “roda da economia girar”. Algum cordeiro sempre tem que
ser imolado para reavivar a fé no extraordinário!
* Doutorando em Ciência Política - UFSCar, membro do NEPPLA - Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos e autor do livro "Ellen Wood - o Resgaste da Classe e a luta pela Democracia".
** Imagem disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/colisao-entre-caminhao-e-onibus-deixa-ao-menos-40-mortos-em-sp/, acesso em 28 fev. 2021.
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[1] Texto publicado originalmente em 01 dez. 2020 no site "A Terra É Redonda". Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/na-mercantilizacao-da-vida/, acesso em 28 fev. 2021.