sexta-feira, 27 de agosto de 2021

E você aí, ainda em cima do muro?

Fonte: Teen Vogue.

E você aí, ainda em cima do muro?

Paulo Sérgio Ribeiro

A notícia perdeu seu frescor. Há muito, “desceu” as páginas dos jornais[1]. Mas não há por que ignorarmos seu pano de fundo. Ora, uma retrospectiva dos acontecimentos relativos ao pânico moral, à censura ao ensino e às artes e à ação (voluntarista ou organizada) da extrema direita em Campos dos Goytacazes – que, adiantando um segredo de polichinelo, fomenta o pânico para ditar a censura – nos mostra que se trata de um mal-estar permanente entre nós à medida que eclodem nessa cidade as tensões sociais de uma ordem burguesa cuja face assumida é a do Brasil de Bolsonaro:

Do que vi e vivi no #elenão em Campos dos Goytacazes (30/09/2018);

Solidariedade à Cássia Maria Couto (02/11/2018);

Bienal do Livro em Campos: território livre (16/11/2018);

Em defesa da liberdade docente – o caso do Liceu de Humanidades de Campos (22/03/2019);

É possível conversar com um reacionário? (18/05/2020).

Acrescentamos a esse cardápio indigesto um fato novo: a ameaça sofrida por Anderson Santos. Anderson, também conhecido como Andinho Ide, designer gráfico e grafiteiro, foi alvo de agressões verbais e chegou a ter contra si uma arma de fogo apontada por um dos agressores durante a realização do seu trabalho artístico. Ei-lo:

Fonte: Folha 1.

As agressões foram cometidas por quem se viu “atingido” em seu âmago pela crítica ao Governo Bolsonaro. Encará-las como algo trivial anula qualquer chance de transitarmos pelo pluralismo de valores inerente ao espaço urbano, pois assim não dividiremos, mas, se muito, disputaremos o território nacional com certos eleitores/seguidores de Jair Bolsonaro cada vez mais incontinentes em seu impulso de reagir a quem se interponha à projeção que fazem do líder autoritário que lhes prometeu a “liberação” de todas as amarras do processo civilizatório ou, como diz a antropóloga Jacqueline Muniz, lhes deu carta branca para um verdadeiro “escracho libertário”. A exposição do belo (e provocativo) grafite de Andinho Ide teve vida curta, sendo apagada por este grupelho facistóide:

Fonte: Folha 1.

Afinal, qual é o lugar da crítica do poder em suas mais variadas expressões numa ambiência social como a campista? O grafite de Andinho Ide é uma forma de arte pública. Esta se caracteriza pela sua ampla audiência – dirige-se a todos – contendo o potencial de provocar reflexões de alcance político na medida em que não tenha, necessariamente, comprometimento com a imagem institucional do poder local ou algum fim comercial.

O trabalho artístico de Andinho Ide foi encomenda de alguém que quis fazer do muro de sua propriedade uma “tela” para o mundo. O grafite, contudo, não se restringiria à visão de quem o encomendou, pois, uma vez exposto ao público, teríamos ali uma mediação possível entre quem (perdoem-me o clichê) se posiciona neste ou naquele lado do “muro”. Isto, claro, se o mundo social fosse construído pelo respeito atitudinal como disposição comum daqueles que se voltam para a arte urbana enquanto elemento em disputa na luta ideológica pelo governo local e, não menos, como um patrimônio cultural - quanto ao último, bastaria lembrarmos aqui dos poemas do "Profeta Gentileza" impressos nos viadutos da Avenida Brasil, na capital fluminense.

Porém, ao contrário do mundo sonhado pelo imortal "Gentileza", o nosso cotidiano é bem mais incerto e inseguro do que podemos supor. No Brasil 521 d.C e ano 3 da Era Bolsonaro, o direito à liberdade de expressão de Andinho Ide e de quem o contratou (assim como deste que vos escreve) é primazia de poucos enquanto o aparato urbano - muros, pontes, marquises, postes etc. - for interditado num debate público cuja vitalidade se meça pela confluência de diferentes linguagens e suportes.

O desembaraço com que se violou, à luz do dia, na terceira maior cidade do estado do Rio de Janeiro, o direito à livre expressão de uma atividade artística foi um arbítrio praticado por quem apagaria o grafite naquele muro movido, quiçá, por um senso de autoconfiança digno do “fazer história com as próprias mãos” - ou, melhor dizendo, do tentar apagá-la com a própria estupidez - ao enxergar-se e, talvez, ser de fato militante de uma direita neofascista incrustrada no aparelho de Estado e, mais do que isso, no coração e na mente do brasileiro médio. 

Tal estado de coisas nos obriga a qualificar a alusão que fizemos anteriormente ao processo civilizatório. Para Herbert Marcuse[2], na interpretação que faz da obra de Sigmund Freud (1856-1939), tal processo longe está de confundir-se com a visão idealizada de um progresso linear que a imaginação política do século XIX nos legou quando o assunto é a “evolução humana”. Coagidos que somos pela cultura, a construção do “eu” é um testemunho atemporal da renúncia à plena gratificação dos impulsos mais básicos de nossa estrutura instintiva, confirmando, por um lado, que a história humana é a história da repressão e, por outro, que a “coação” é a própria pré-condição de “progresso” no que neste haveria de mais elementar: a superação da existência de seres humanos equivalente a de qualquer outro animal.

Este “princípio de realidade” a exigir de nós sempre um preço demasiado alto que é a nossa domesticação, ironicamente, não nos faz devedores, mas credores da civilização que nos constituiu, uma vez que o “estado natural” não é dela suprimido. Nas palavras de Marcuse, o que “a civilização domina e reprime – a reclamação do princípio do prazer – continua existindo na própria civilização”[3]. Se tal força primordial do princípio do prazer não cessa mesmo com todo o impacto que a realidade externa exerce sobre nossa psique, sua latência não só se mantém em cada um de nós como afeta a própria realidade que a superou.

O ponto aqui é como avaliar, em cada cenário de época, o quão destrutiva pode ser a dialética da civilização.

No caso brasileiro, o “retorno do reprimido” é observável pela frequência dos atos de violência política contra dissidentes sexuais ou partidos e movimentos sociais que, por definição, defendem um projeto de sociedade que não seja o de mera conformação à ordem. Há fundado receio por parte da esquerda institucionalizada sobre o que fazer no 7 de setembro, sobretudo quando o que está em jogo é o vínculo com uma tradição de lutas por igualdade e justiça em nosso país.

Não tenho resposta pronta sobre o que fazer. Se não é aconselhável acender uma vela para o golpe em 2022, também não acho exagero afirmar que os cães raivosos estão soltos nas ruas. O que sei ou acho que sei é que, em relação àqueles cães, é inútil fugir deles ficando em cima do muro.



[1]  Folha 1. Grafiteiro de Campos é ameaçado com arma enquanto fazia trabalho crítico a Bolsonaro. Edição de 06/08/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975 (6ª edição).

[3] Ibidem, p.36.

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