Fonte: Blog do Pedlowski.
Para além da cordialidade política: o desafio para construção da
luta por moradia em Campos dos Goytacazes*
* Publicado originalmente no Blog
do Pedlowski.
Luciane Soares Silva
Observar uma cidade cujo
passado escravocrata teria se reproduzido na centralidade das relações
familiares no comando da política local, nos possibilita pensar nas formas de
mudança social e principalmente, nas formas de mobilidade social em Campos dos
Goytacazes. Durante a pandemia, pesquisadores do Núcleo Cidade, Cultura e
Conflito (NUC/UENF), foram até a comunidade da Portelinha para compreender as
formas de cuidado no combate a COVID 19. Dois resultados chamam atenção: o
número de contaminados naquele momento era baixo, mas o número de pessoas em
situação de insegurança alimentar era alto. Nossas entrevistadas, em sua
maioria desempregadas naquele momento, eram filhas de empregadas domésticas e
netas de lavradoras. Ao longo de um século, estas mulheres não experimentaram
nenhuma parte do quinhão prometido pela inclusão, pela universalização do
acesso à educação, saúde, renda. E seus filhos seguem no mesmo caminho em uma
das cidades que mais se beneficiou dos royalties do petróleo no Brasil. Esta é
a mesma realidade de uma localidade na Tapera, construída dentro de um programa
da Prefeita Rosinha Garotinho. O Morar Feliz em Ururaí/Tapera pode ser
classificado como um gueto urbano. Seus moradores não recebem cartas, todos os
serviços públicos são precários, o transporte é irregular, não há posto de
saúde e parte de sua população vive com renda advinda de benefícios sociais. A
gestão Diniz piorou em muito a vida destas pessoas e alguns trabalhadores
voltaram para cana de açúcar. Longe demais dos bairros de classe média, as
mulheres sequer ocupam postos no trabalho informal ou de limpeza. A remoção
(para alguns, forçada) destas famílias, significou a perda de renda e de
espaço digno para viver. Onde antes havia quintal, galinhas, árvores,
plantas medicinais, hoje existe um muro.
Mais recentemente, precisamente desde abril de
2021, a construção de luta por moradia na ocupação Novo Horizonte possibilitou
a vocalização do problema habitacional em Campos. Temos ocupado com coletivos e
quase 2000 pessoas, uma área próxima ao aeroporto de Campos. Durante todo este
tempo, o prefeito e seus secretários, optaram por eximir-se das
responsabilidades públicas, permitindo que mais de 600 famílias seguissem
vivendo sem água, sem luz e em meio a grades que mais lembram um campo de
concentração urbano em pleno século XXI. A luta pela manutenção destas famílias
tem sido árdua. E feita exclusivamente pela sociedade civil organizada que vem
mantendo diariamente esta Ocupação com doações diárias que já ultrapassaram os
40 mil reais. Além disto, é a sociedade civil organizada que tem organizado
embates públicos, protestos, pautas na mídia e com isto, forçado o poder
público a negociar.
A ida de dois ônibus com moradores da Novo
Horizonte para a Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos, foi um dos vários
capítulos desta luta. Visivelmente o governador Cláudio Castro não queria lidar
com as repercussões públicas de um ato desfavorável naquele momento. A
celeridade com que recebeu as reivindicações da população comprovou seu medo de
que aquela manhã fosse “tumultuada” pelo povo.
Aberta a mesa de negociação na
Secretaria de Obras e Infraestrutura no Rio de Janeiro, assistimos o secretário
Max Lemos ligar para o prefeito Wladimir Garotinho no dia 19 de agosto. Naquele
telefonema o prefeito demonstrou uma boa vontade inédita e uma reunião ocorreu
no dia 22, entre ambos na capital.
A luta pela moradia exigiu (e exige) a
superação de muitos desafios. Em primeiro lugar a cidade não conta com um
movimento de luta urbana pela moradia. Tudo foi aprendido desde o primeiro dia
na base de muita vontade, certo improviso e construção de instrumentos de
mapeamento do terreno. Nosso banco de dados é muito superior ao feito pela
Prefeitura. É mais completo e reflete o perfil de mulheres negras, mães sem renda,
com pouca escolaridade e passado rural. Esta população quer casa e não aluguel
social.
Em segundo lugar, as disputas internas
enfraquecem a luta coletiva. É preciso superar certa tendência do culto a
personalidade e as relações pessoais. A cordialidade da qual nos fala Sérgio
Buarque de Holanda, a doçura das relações próximas, é o avesso da
universalização de direitos que faz avançar a luta coletiva. É neste momento
que passado e presente entram em choque exigindo novas práticas de construção
política. Talvez haja em Campos, como em muitas cidades de porte médio, um
domínio das relações de amizade e familiares sobre o que deveria ser
impessoal. Neste momento, estamos assistindo o desfecho da luta da maior
ocupação urbana do Rio de Janeiro fora dos centros metropolitanos.
Quando pensamos a ação dos movimento sociais,
coletivos e partidos progressistas dentro da Novo Horizonte, estamos mirando
algo muito mais profundo na cidade de Campos. Miramos a potência de organização
fora dos moldes já conhecidos de cooptação pelas famílias locais que dominam a
política. E devemos colocar na agenda principal da cidade, o acesso à moradia
como um direito humano de descendentes dos trabalhadores de usina. É preciso
que este objetivo esteja fixado e seja reforçado. Sabemos como intrigas,
disputas por terra e trações levaram líderes à morte em um passado recente.
Assassinados sem que a justiça seja feita.
Em memória a lutadores como Cícero Guedes e
Regina dos Santos Pinho, devemos evitar qualquer ato que divida a luta. Sabemos
como a difamação é arma corriqueira na mão saudosa dos donos do poder. E ainda
temos de lidar com a urgência da construção de uma consciência de classe para
além do imediatismo.
Vamos em frente, vida longa à Novo Horizonte!
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