terça-feira, 28 de setembro de 2021

O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?


O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?

Paulo Sérgio Ribeiro

O mês de setembro testemunhou uma manifestação da extrema direita que tanto reflete a inviabilidade de Jair Bolsonaro na corrida presidencial como confirma que a base social do bolsonarismo adquiriu moto-próprio para rebaixar o teto da nossa imaginação política em um eventual cenário de vitória da esquerda (ou centro-esquerda) em 2022. Este apontamento aparenta ser consensual dentre analistas mais argutos da conjuntura nacional. Todavia, ao olharmos com maior relevo para o ato realizado em 12 de setembro e, mais recentemente, para a escaramuça envolvendo um ator com posicionamento coerente na construção de nossa democracia – José de Abreu – e a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP)[1], adentramos numa zona nebulosa da disputa de ideias que organiza o campo progressista.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o movimento “Vem pra Rua Brasil” convocaram atos contra Bolsonaro em São Paulo e noutras capitais prometendo reunir sem sectarismo diferentes atores políticos para tal ordem do dia. Porém, no seu principal palco, a Avenida Paulista, não foi surpresa o protesto ter sido uma deixa para o “Nem Bolsonaro, nem Lula”[2], reforçando pois o antipetismo como a corrente de opinião duradoura da fração protofascista dos setores médios, assim como um recurso sempre à mão para uma direita liberal travestida de “terceira via” em sua busca inglória por um presidenciável capaz de vocalizar a falsa simetria entre um democrata autêntico, Lula, e um indigente em todos os sentidos que a ditadura civil-militar nos legou.

Fato é que os atos de 12 de setembro foram um verdadeiro fracasso, servindo tão somente para devolver o MBL e o Vem Pra Rua à sua condição de idiotas inúteis do conservadorismo brasileiro, que, não obstante, continua sendo a esfinge que nos ameaça devorar. Se no dia 07 de setembro, os partidos da centro-esquerda e os movimentos populares puderam – com certas vacilações táticas, é verdade – contrapor-se à malta verde-amarela que se impôs em número expressivo na capital paulista, no dia 12 ocorreriam iniciativas que, no mínimo, demonstram ser distante a tão sonhada unidade de ação no campo progressista: a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) emprestarem sua voz em um evento cuja estética e propósitos são inconciliáveis com a própria causa antifascista que seus partidos historicamente encarnam.

Não entro no mérito das motivações – verbalizadas ou não – de tais parlamentares. Afinal de contas, eles respondem a uma disciplina partidária e esta deverá ser aplicada pelas respectivas direções dos partidos. Em bom português: PSOL e PCdoB que assumam os seus “BOs”. Tento avaliar apenas como esse constrangimento evidencia um estado de desorientação (e de omissão?) da esquerda brasileira diante da tensão entre socialismo e liberalismo que perpassa as lutas pelo monopólio do poder social, ganhe tais concepções de mundo as roupagens que houver.

Ora, se a alegação de Isa Penna de que é necessária uma interlocução com pessoas comuns de perfil direitista mesmo em manifestações públicas da extrema direita[3] e de Orlando Silva, que atribuiu aos seus críticos a pecha de “gabinete do ódio” da esquerda[4] pareça, em princípio, razoável por figurar uma tentativa de construir pontes a partir dos valores de uma esquerda que aceita com resignação a centralidade da luta institucional, há em suas posições a premissa equivocada de que a disputa por hegemonia corresponda à busca de uma linha média entre adversários que não são apenas adversários, mas inimigos intransigentes na luta de classes.

Admitir tal intransigência em sua positividade, claro, requer senso de proporção diante do efetivo poderio que seus contendores disponham. Definitivamente, este atributo da vocação política faltou a José de Abreu ao fazer um “retuíte” de uma mensagem violenta endereçada a Tabata Amaral, que também se fez presente na Avenida Paulista em 12 de setembro. Não há como negligenciar as implicações éticas de um homem intimidar uma mulher. José de Abreu fez merda e não tardou a reconhecê-lo ao afirmar, em entrevista concedida à pedagoga e ativista feminista Lola Aronovich, que pedirá desculpas publicamente à Tabata Amaral[5].

Por óbvio, Tabata Amaral não teria por que deixar por menos. Não só notificará o ator na Justiça[6] como maneja desde então o incidente para fazer de um problema concreto – o machismo dentre homens de esquerda – o mote para investir em um discurso vazio: superar a “polarização” entre centro-esquerda e centro-direita que, conjugado ao imperativo moral da denúncia da violência política calcada no sexismo, torna-se um belo estilingue para a direita liberal que se apropria dos clichês das lutas identitárias para dar um verniz civilizatório à sua agenda regressiva.

Doravante, creio ser um desserviço enxergar nesse episódio um tamanho maior do que ele tem por dois motivos autoevidentes:

1.   José de Abreu nunca esteve à venda e não precisa ser pautado moralmente por uma preposta do capital financeiro que comove a esquerda “namastê”;

2.   Em relação a esta circunstancial oposição de direita ao Governo Bolsonaro, a realidade brasileira subverte a máxima de Carl Schmitt: o inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo.

Dada a impossibilidade de seguir cegamente a máxima schmittiana, podemos lembrar aqui das lições de Jodi Dean[7] sobre uma relação política que tenha por fundamento a camaradagem. Para Dean, qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser camarada:

 

A noção de que qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada reforça o modo pelo qual “camarada” dá nome a uma relação que é, ao mesmo tempo, uma divisão. A camaradagem tem como premissa a inclusão e a exclusão: qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada. Não é uma relação infinitamente aberta ou flexível: trata-se de uma relação que pressupõe divisão e luta. Existe um inimigo. Mas, ao contrário da descrição clássica de Carl Schmitt do político em termos da intensidade do antagonismo entre amigo e inimigo, a camaradagem não diz respeito ao inimigo. O fato do inimigo, da luta, é a condição ou o cenário da camaradagem, mas não determina a relação entre os camaradas. Camaradas são aqueles que se encontram do mesmo lado da divisão. Em relação a essa divisão, eles são o mesmo. Sua condição comum é a de se encontrar do mesmo lado. Dizer “camarada” é anunciar um pertencimento, e a condição comum de estar do mesmo lado (DEAN, 2021, p.106).

 

Isa Penna, Orlando Silva e José de Abreu cometeram erros, mas não tenho por que deixar de reconhecê-los como camaradas. Já a misoginia que se volta contra Tabata Amaral  sem dúvidas, execrável  não a torna necessariamente uma “aliada” na longa luta travada contra os donos do poder.



[1] Folha de S. Paulo. “Se encontro na rua, soco até ser preso”, retuitou José de Abreu. Edição de 24/09/2021. Disponível aqui.

[2] El País. O Brasil que não quer Bolsonaro nem Lula consegue um apoio tímido nas ruas. Edição de 12/09/2021. Disponível aqui.

[3] Revista Fórum. Isa Penna: Não tenho nenhuma ilusão de construir uma nova sociedade com o MBL. Edição de 11/09/2021. Disponível aqui.

[4] Diário do Centro do Mundo. Orlando Silva defende Tico Santa Cruz e reclama de “dois” gabinetes do ódio. Edição de 13/09/2021. Disponível aqui.

[5] Fala Lola Fala. Live com Zé de Abreu sobre seu machismo. Disponível aqui.

[6] Isto é. Tabata Amaral decide notificar José de Abreu na Justiça após publicação. Edição de 22/09/2021. Disponível aqui.

[7] DEAN, Jodi. Camarada. Um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo, 2021.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

CONTRA-ELITE BOLSONARISTA E SEU DESTINO - Christian Lynch

 CONTRA-ELITE BOLSONARISTA E SEU DESTINO *


Christian Edward Cyril Lynch**

***


Os Bolsonaro se apresentaram como a vitória do outsider sujo e feio na política, na qual teria até então dominado um establishment que não refletiria o "autêntico povo", que seria tão conservador, deseducado e violento quanto eles.

Todas suas ações desde o primeiro dia no poder confirmam que sua maior preocupação foi sempre a de constituir uma espécie de "contra-elite" exclusivamente sua, que pudesse dali por diante ser o seu "partido", o seu "pessoal".

Para se enraizaram do nada de onde vieram, os Bolsonaro replicaram o método para os demais subsistemas sociais. Abriram as portas e cofres a todos os empresários "feios e sujos" dispostos a fazer o mesmo. Daí essas aberrações: Havan, Madero, Ogronegócio, Prevent, etc.

A pandemia foi encarada toda por essa ótica: chance de enriquecer os amigos da família Bolsonaro - o empresariado "feio e sujo". Todos esses personagens obscuros que desfilam pela CPI da Pandemia receberiam milhões de reais para nos encher de cloroquina e vacinas indianas.

Os tentáculos do arrivismo reacionário se estenderam para militares, advogados públicos, artistas tipo B ou C e docentes "pela liberdade". A eles se entregou a direção do Estado na saúde, educação, cultura, ciência, irmanados na mesma inépcia, mediocridade e revanchismo.

A moeda de troca desses segmentos foi a fidelidade total ao populismo reacionário dos Bolsonaro. Corrupção, aparelhamento, afronta às autoridades, falta de transparência, ignorância da lei, má fé administrativa, truculência - tudo era permitido no novo Reich tuiteiro.

Nada disso teria sido possível sem a crença messiânica reacionária de que o novo reinado poria abaixo as instituições. Daí a certeza da impunidade dos crimes dos "feios, sujos e ressentidos" que restaurariam o tempo do regime militar ou o século 17, das missões e bandeirantes.

No fim, os tais reacionários foram tão ingênuos na crença de sua "revolução" como a primeira geração de socialistas . Não formam o "autêntico" povo (que não existe), nem sua "revolução" é permanente. O resultado desastroso está aí, reprovado em massa pela população.

O ciclo das aventuras e tropelias iniciado em 2013 acabou. A normalização em 2022 decidirá da sorte dos "sujos e feios" hoje no poder. Haverá uma forte depuração. Os adaptáveis ficarão. A grande maioria, porém, descerá de volta à obscuridade, e se verá às voltas com a justiça.

In te Domine speravit.

* Texto originalmente publicado no perfil do Facebook do autor (https://www.facebook.com/christian.lynch.5). Reproduzimos aqui com a autorização do próprio Christian.

** Cientista político e professor da área no IESP/UERJ. É autor de “Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia” publicado pela editora da UFMG, “Wanderley Guilherme dos Santos: a imaginação política brasileira - cinco ensaios de história intelectual”  publicado pela Revan, dentre outras obras, coletâneas e inúmeros artigos nos campos do Pensamento Político Brasileiro, Teoria Política e História das Ideias Políticas.

***  Bosch - "Cristo carregando a cruz" - Disponível em: https://s.ebiografia.com/img/hi/er/hieronymus_cristo_carregando_a_cruz.jpg, acesso em 23 set. 2021.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Divulgando - Lançamento de "A redescoberta do Brasil na Amazônia: Mangabeira Unger e o projeto nacional" de Felipe Biasoli

 Prezad@s,

Com alegria divulgamos a live de lançamento do livro "A redescoberta do Brasil na Amazônia: Mangabeira Unger e o projeto nacional" do grande Felipe Biasoli. O trabalho chega às livrarias pela editora Patuá.



A live de lançamento ocorrerá na próxima sexta-feira, 17/09, às 19 hs nos canais do Youtube (https://www.youtube.com/channel/UCn858S7Xb3Q_m_deq4sOCvw) e Facebook (https://www.facebook.com/Editora-Amavisse) da Amavisse, braço acadêmico da Editora Patuá.

Enquanto a live não vem, fiquemos com o aperitivo sobre o trabalho de Felipe feito pelo prof. Carlos Sávio G. Teixeira do Departamento de Ciência Política da UFF-Nterói:


"Outra Amazônia. É disto o que trata este importante livro do cientista político Felipe Biasoli. O centro de toda a sua atenção é a apresentação daquilo que o debate acerca do meio ambiente vem buscando, sem sucesso, há décadas: o desenvolvimento sustentável. A obra mostra, de um lado, que a combinação de extrativismo primitivo e marginalização da floresta através da agenda policial é incapaz sequer de proteger a Amazônia; de outro, apresenta uma alternativa, baseada no experimentalismo institucional, ao ambientalismo pós-ideológico do primeiro mundo, preocupado em usar a questão do meio ambiente para consolar-se das desilusões da história. 


Hoje o Brasil recebe a atenção do mundo por ser fonte de alimentos para a humanidade e por causa da Amazônia. É, portanto, uma seara que abre oportunidade para a reinvenção das formas de organização social e econômica capazes de reorientar o debate ideológico contemporâneo. Dois argumentos poderosos percorrem as páginas desse belo livro: o desenvolvimento sustentável terá a Amazônia como protagonista e a economia do conhecimento é sua pedra de toque incontornável."




quarta-feira, 8 de setembro de 2021

É hora de balançar o galho

É hora de balançar o galho*

 Luis Felipe Miguel**


***



Não tem por que permanecer neste estado de pré-golpe até 2022. As manifestações de ontem marcam o enfraquecimento de Bolsonaro. Ele está maduro para cair.

 Ele reuniu muita gente? Sim. Mas muito menos do que esperava, tamanho o investimento na preparação dos atos. E muito menos do que era necessário para dar gás a um novo golpe.

 As estimativas mais confiáveis dão conta de umas 100 mil pessoas em Brasília e um pouco mais do que isso em São Paulo. Bolsonaro contava com dez vezes mais gente para se cacifar.

 Isto precipita o afastamento do Centrão. Ninguém quer ser sócio de uma tentativa de golpe fadada ao fracasso.

 Mais ainda: Bolsonaro decepcionou sua base. Ele prometeu ação e só ofereceu mais palavras ao vento.

 A persona política de Bolsonaro está se deslocando. O machão intrépido que desafiava "o sistema" é agora a eterna vítima, se lamuriando das maldades que fazem com ele, incapaz de reagir.

 Bolsonaro xinga os outros e se apieda de si mesmo. Relatos das cloacas da extrema-direita dão conta de que a decepção com ele é crescente.

 Em suma, Bolsonaro não consegue azeitar sua milícia política. O bolsonarismo faz um barulho feio nas redes sociais, mezzo gado, mezzo robots, e passa vexame nas ruas, vestido com a bandeira e ostentando placas com impagáveis erros gramaticais - bilíngues, em português e em inglês, que mico pouco é bobagem.

 Mas causar convulsão social? Dar bengaladas a esmo e quebrar tudo? Só nos sonhos do genocida, e olhe lá.

 Isto está cada vez menos crível, mesmo para eles.

 Se as famosas "instituições" quiserem, é a hora de balançar o galho. A hora de derrubar Bolsonaro e prendê-lo, junto com meia dúzia de outros criminosos de sua entourage.

 Não faltam motivos, nem caminhos para fazê-lo. Impeachment, afastamento por crime comum, cassação da chapa, sem falar em soluções mais criativas (nem por isso ilegítimas).

 Sua inaptidão para o cargo já está mais do que comprovada. Seu comportamento delinquente, também.

Embora ciente de que a cartada de ontem não funcionou, Bolsonaro sabe que já ultrapassou o ponto de não retorno. Seu único caminho é aprofundar as ameaças e bravatas.

 Por isso, a hora de atingi-lo é agora. Antes que, como o animal ferido da metáfora óbvia, ele busque uma saída desesperada.

 Bolsonaro destituído e na cadeia, além de ser uma questão de justiça, acalmaria o país.

Porque este é um ponto: a ameaça de que sua base radicalizada se rebele está cada vez menos crível.

 Os bolsonaristas colocariam o rabo entre as pernas e iriam chorar suas mágoas em casa. Claro que depois a gente teria que lidar com eles, mas o país não pegaria fogo.

 Assumiria um fascistão que não é burro e sabe que é obrigado a se fazer de civilizado. O exemplo de Bolsonaro inibiria, ao menos por um tempo, outras intentonas.

 A direita teria uma chance de encontrar sua lendária "terceira via", o que é um bom estímulo para que ela embarque na ideia de derrubar Bolsonaro.

 As eleições ocorreriam em 2022, sem maiores sobressaltos, com a mídia e o poder econômico fazendo o possível para definir o resultado - como sempre.

 Tirar Bolsonaro do cargo não resolve nossos problemas. Mas permite que nós os enfrentemos.

 

* Texto republicado com autorização do autor. Post original disponível na página pessoal do autor no Facebook: https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb

** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de  "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros.

*** Imagem Revista Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2018/12/bolsonaro-flexao.jpg?quality=70&strip=info&resize=680,453, acesso em 08 set. 2021.


terça-feira, 7 de setembro de 2021

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira

 

Fonte: Neipes.

Religião, política e a dimensão espiritual da crise brasileira*

* Publicado originalmente em Folha 1.

Roberto Torres 

Muitos gostariam de abolir a presença das religiões na esfera pública e na política. São os que defendem que o Brasil busque construir um Estado laico inspirado na França. Esta tentativa foi feita com a constituição de 1891 e não teve êxito. Outros se dispõem a aceitar a religião pública desde que ela se oriente pelas ideologias políticas laicas como o liberalismo ou o socialismo, fornecendo apenas a efervescência coletiva que estas ideologias já não conseguem produzir por contra própria. As duas posições rechaçam a presença da fé e da busca da transcendência como algo que tenha contribuição própria para a construção do Estado e na nação. O sentido propriamente religioso do mundo, que podemos resumir com as noções de fé e transcendência, não teria nada a acrescentar ao sentido político da reconstrução nacional.

Discordo destas duas posições. Da primeira em razão de seu provincianismo caricato. Basta dizer que a França é exceção e não regra entre os modelos ocidentais de separação entre religião e Estado. A grande nação ocidental do século XX, os Estados Unidos, nunca confundiu separação entre Igreja e Estado com confinamento da religião na esfera privada. E nisso, como em outros aspectos, o Brasil (graças a Deus!) é muito mais parecido com os Estados Unidos do que com a França. Da segunda posição eu discordo pela falta de acuidade sociológica sobre o processo de construção nacional: todo projeto nacional de longo prazo precisa de um sentido de transcendência capaz de conferir no presente valor ao futuro desconhecido. O futuro precisa ser percebido como um horizonte de realização daquilo que não podemos ver inteiramente no presente, mas cujas primeiras manifestações já se mostrem como futuro adjacente, como sinal no presente de que a fé constrói o futuro. E em muitos casos, especialmente naqueles de colapso das ideologias políticas laicas, este sentido de transcendência do presente e de seus desesperos vem diretamente das religiões.

A contribuição própria que a religião pode trazer para a política é sua capacidade de construir no presente a fé no futuro. A disponibilidade desta fé é um recurso de valor insubstituível para a política. Não se trata de acreditar em um futuro inteiramente distante e inteiramente desconhecido, mas sim de criar um futuro adjacente e em alguma medida visível já no presente. O desafio de amplos segmentos das classes populares, que buscam manter a fé no futuro (“não deixar a peteca cair”) organizando em torno da religião estratégias concretas de reconstrução da vida familiar, econômica e comunitária, é semelhante ao desafio nacional: não se trata apenas de planejar o futuro da nação, mas de reconstruir e alimentar a própria crença de que a nação tem algum futuro. É preconceito iluminista não esclarecido supor que podemos dispensar a fé religiosa nesta grande batalha espiritual que o país precisa travar: não uma batalha contra algum inimigo inventado (“comunistas”, “chineses”, STF etc.) como faz Bolsonaro em sua “guerra cultural”, mas sim contra a desesperança, a dimensão propriamente espiritual da crise brasileira. Ideologias políticas e projetos nacionais dependem da crença compartilhada no futuro. A religião popular têm conseguido construir esta crença em diferentes esferas sociais, especialmente na vida familiar. Pode também contribuir para que isto seja feito na política. Não se trata de ignorar os riscos envolvidos na relação entre religião e política, mas sim de explorar as possibilidades desta relação. Pelos menos quatro possibilidades se colocam de início: o boicote recíproco entre religião e política, a colonização de uma pela outra, o fortalecimento recíproco e a indiferença. Nas últimas décadas, a colonização da religião pela política tem predominado no Brasil. No caso específico dos evangélicos, desde sua entrada efetiva na política pós Constituição de 1988, os presidentes buscaram se aproximar dos religiosos pela via da cooptação política a partir de acordos com figurões que dizem representar este segmento do público. Com Bolsonaro é um pouco diferente: ao mesmo tempo em que radicaliza a manipulação da religião pela política feita por seus antecessores, encena com a “guerra cultural” o controle religioso da política e da república como um todo. Politicamente, essa estratégia tem a vantagem de criar uma sensação de inclusão autêntica dos religiosos na política nacional, produzindo um contraste com quem pedia o voto mas não gostava de dividir o poder com os religiosos. Por isso, Bolsonaro desempenha com certo sucesso o papel de primeiro presidente evangélico do país (Arenari, 2020). Mas este sucesso só pode durar se Bolsonaro conseguir destruir o sentido de esperança e fé no futuro cultivado pelos evangélicos e cristãos em geral: um governo definido pela destruição precisa destruir também o sentido de futuro, pois a esperança no futuro é sempre construtiva. Ou então criar um sentido destrutivo de futuro, como vemos em seus apelos apocalípticos destinados ao rápido descrédito. Precisa destruir a religião para continuar usando a religião e fingindo que ela têm importância em sua obra de destruição nacional.

A obra de reconstrução nacional de que precisamos não requer substituir esta colonização destrutiva da religião pela política nem pela indiferença entre ambas, como querem os adeptos da laicidade francesa, nem por uma politização com outra cor ideológica, que trata a religião apenas como fonte de legitimação e energia para ideologias políticas seculares. Para enfrentar a dimensão espiritual da crise brasileira, precisamos construir uma relação de fortalecimento recíproco entre política e religião, combinando separação de esferas com influência construtiva entre elas. Não se trata de colocar a política no lugar da religião, nem a religião no lugar da política, mas sim de construir uma nova “religião civil” brasileira: uma nova cultura política inspirada não só em valores religiosos como superação e solidariedade, mas antes de tudo na fé no transcendente como traço próprio do sentido religioso do mundo que ultrapassa fronteiras ideológicas e sociais.

Na prática, isso significa adotar um caminho bem distinto daquele seguido por Bolsonaro e seus antecessores. Em vez de mobilizar politicamente a religião em torno de “guerras culturais” contra inimigos inventados, criando uma cultura política de destruição e fragmentação nacional (Bolsonaro), ou cooptar os conhecidos figurões com poder e audiência (antecessores), buscar aproximação com as obras sociais das igrejas que reconstroem famílias e vidas em nossas periferias urbanas. Em vez de buscar conchavos com esses figurões que dizem decidir pelo povo, se aproximar de lideranças novas, de sacerdotes que buscam o poder não como um fim em si mesmo, mas como meio indispensável para mudar e melhorar a realidade. Em vez de andar com quem promete trazer apenas o voto dos fiéis, unir forças com aquelas organizações e lideranças interessadas em amplificar, através da cooperação com o Estado, o trabalho social que já realizam. Missões que buscam reconstruir famílias e vidas ameaçadas pela pobreza e pela violência, como vemos no caso da missão Cristolândia de orientação batista, também reconstroem e alimentam diariamente o sentido de fé no futuro, em uma vida melhor para quem, como todos no inferno de Dante, é invocado pela realidade a perder todas as esperanças. Esta dimensão espiritual da crise brasileira – o desespero, a falta de fé no futuro – não será superada sem que a política consiga estabelecer relação construtiva com o único sistema social que tem conseguido fazer a grande maioria do povo acreditar no futuro e na vida: a religião. Mas para isso, a política não deve buscar a cooptação dos religiosos e a manipulação da fé, mas sim a cooperação em torno do trabalho social com religiosos que desejam influenciar as políticas públicas, mas não fundir organização religiosa com o poder político. É este tipo de relação que permite existir religião pública e ao mesmo tempo separação entre religião e política. Não basta exigir a separação entre religião e política. É preciso entender que esta separação só ocorre dentro de relações específicas entre estas duas esferas da sociedade e da vida.

Referências

ARENARI, Brand. “Bolsonaro, o primeiro presidente “evangélico” do Brasil”. In: TEXEIRA, Carlos Sávio & MONTEIRO, Geraldo Tadeu (orgs.) Bolsonarismo: teoria e prática.1 ed.Rio de Janeiro: Gramma editora, 2020, v.1, p. 281-308. 

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Manifestação da ABA a respeito do Recurso Extraordinário nº 1017365, sobre o destino das terras de povos indígenas 63 adesões de Associações Científicas e Acadêmicas

 

Fonte: APIB.

Manifestação da ABA a respeito do Recurso Extraordinário nº 1017365, sobre o destino das terras de povos indígenas 63 adesões de Associações Científicas e Acadêmicas*

* Publicado originalmente em Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) vem a público demonstrar a sua preocupação com o próximo julgamento, em final de agosto próximo, no Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, referente à comunidade da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, território de ocupação tradicional do povo Xokleng, no estado de Santa Catarina. Tal julgamento foi definido pelo próprio STF como de repercussão geral, o que significa dizer que a decisão que for proferida terá validade para todos os casos equivalentes no país.

No atual momento, no Congresso Nacional, multiplicam-se iniciativas para invalidar os direitos já estabelecidos pela Constituição Federal em relação às terras indígenas. A sobrevivência dos indígenas Xokleng de Santa Catarina e dos demais povos indígenas no Brasil está sob grave ameaça no âmbito deste próximo julgamento. De fato, os direitos adquiridos por toda a população indígena no país estão postos em causa nesse momento! Os ataques incessantes aos seus territórios, o descaso com o avanço das mortes provocadas pela pandemia e a ausência de assistência aumentarão gravemente em caso de derrota nesse importante julgamento. Somente o Supremo Tribunal Federal pode, nesse momento, garantir a sobrevivência desse e dos demais povos, num cenário extremamente negativo.

O STF, nesses momentos dramáticos que o país está vivendo, reafirma-se, cotidianamente, como a instância que garante os direitos constitucionais sob perigo. Dirigimo-nos, portanto, à Suprema Corte para reafirmar o nosso compromisso com os direitos indígenas, tão fortemente postos em causa no atual momento.

Vale ressaltar que a ABA, como amicus curiae nesse julgamento, posiciona-se a favor dos direitos dos povos Xokleng e de todos os outros povos que poderão, em decorrência, serem também atingidos. Os laudos antropológicos realizados (de identificação e delimitação da terra indígena e o laudo pericial solicitado em processo pela justiça) demonstram que os povos Xokleng exercem uma ocupação tradicional da sua terra, segundo os quatro princípios determinantes para esta ocupação, conforme os termos do Art. 231 de nossa Constituição Federal.

Sendo assim, a ABA, Amicus curiae neste julgamento, bem como as demais associações científicas aqui signatárias, unem-se no sentido de observar ao STF a relevância do cumprimento pleno deste Artigo da nossa Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas as suas especificidades sociopolíticas e culturais, determinando ao Estado brasileiro a responsabilidade de que sejam resguardadas.

Brasília, 09 de agosto de 2021.

Associação Brasileira de Antropologia – ABA


Leia aqui a nota com as adesões.

Degradação econômica, moral e cognitiva de nossas classes empresariais

Glaidson, com o Rei do Bitcoin e a esposa Mirelis Yoseline Diaz Zerpa

Roberto Dutra

1) Economicamente: A desindustrialização, o perfil exportador de commodities e o rentismo têm transformado o perfil econômico-social de nossas burguesias e classes empreendedoras em geral: o ganho rápido e predador em atividades simples e sem agregação de valor torna-se predominante. É o espírito do capitalismo aventureiro e apostador. A própria noção de trabalho como forma racional de ganho vai perdendo o sentido.
2) Moralmente: Essas classes buscam ressigniticar o valor de atividades criminosas ou à margem da lei: tornar aceitável formas de ganho antes moral e legalmente condenadas. O caso da pirâmide financeira com criptomoedas em Cabo Frio é emblemático. Houve protestos em defesa do criminoso na cidade. Em Campos, que não gosta de ficar atrasada em termos de desgraça, também tivemos gente indo às ruas em defesa do crime. A busca pela exploração absoluta e semiescravocrata do trabalho é outro exemplo. População cooptada pelo crime defendendo bandido não é mais coisa das quebadras.
3) Cognitivamente: Essas classes empresariais aventureiras se convertem em classes apostadoras sem nenhum resto daquela racionalidade econômica de que falava Weber em sua definição do "espírito do capitalismo" clássico.
4) Esse empresariado aventureiro, bandido e burro é tão nocivo a qualquer coletividade como são traficantes e milicianos. Precisam ser combatidos com toda força possível. E desmascarados em sua forma de ganho parasita, improdutiva e imoral. Em Campos, por exemplo, tirando os produtores rurais, que quase nunca falam por si, o autodenominado "setor produtivo", não tem nada de produtivo. Ou são os lojistas de sempre, ou são os vadios que vivem do rentismo imobiliário.
5) A tarefa dos progressistas deve ser a de destruir esta classe: destruir sua forma de ganho, desmoralizar sua moral e ridicularizar sua falsa inteligência.

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Para além da cordialidade política: o desafio para construção da luta por moradia em Campos dos Goytacazes


Fonte: Blog do Pedlowski.

Para além da cordialidade política: o desafio para construção da luta por moradia em Campos dos Goytacazes*

 

* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.

 

Luciane Soares Silva


Observar uma cidade cujo passado escravocrata teria se reproduzido na centralidade das relações familiares no comando da política local, nos possibilita pensar nas formas de mudança social e principalmente, nas formas de mobilidade social em Campos dos Goytacazes. Durante a pandemia, pesquisadores do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito (NUC/UENF), foram até a comunidade da Portelinha para compreender as formas de cuidado no combate a COVID 19. Dois resultados chamam atenção: o número de contaminados naquele momento era baixo, mas o número de pessoas em situação de insegurança alimentar era alto. Nossas entrevistadas, em sua maioria desempregadas naquele momento, eram filhas de empregadas domésticas e netas de lavradoras. Ao longo de um século, estas mulheres não experimentaram nenhuma parte do quinhão prometido pela inclusão, pela universalização do acesso à educação, saúde, renda. E seus filhos seguem no mesmo caminho em uma das cidades que mais se beneficiou dos royalties do petróleo no Brasil. Esta é a mesma realidade de uma localidade na Tapera, construída dentro de um programa da Prefeita Rosinha Garotinho. O Morar Feliz em Ururaí/Tapera pode ser classificado como um gueto urbano. Seus moradores não recebem cartas, todos os serviços públicos são precários, o transporte é irregular, não há posto de saúde e parte de sua população vive com renda advinda de benefícios sociais. A gestão Diniz piorou em muito a vida destas pessoas e alguns trabalhadores voltaram para cana de açúcar. Longe demais dos bairros de classe média, as mulheres sequer ocupam postos no trabalho informal ou de limpeza. A remoção (para alguns, forçada)  destas famílias, significou a perda de renda e de espaço digno para viver.  Onde antes havia quintal, galinhas, árvores, plantas medicinais, hoje existe um muro.


Mais recentemente, precisamente desde abril de 2021, a construção de luta por moradia na ocupação Novo Horizonte possibilitou a vocalização do problema habitacional em Campos. Temos ocupado com coletivos e quase 2000 pessoas, uma área próxima ao aeroporto de Campos. Durante todo este tempo, o prefeito e seus secretários, optaram por eximir-se das responsabilidades públicas, permitindo que mais de 600 famílias seguissem vivendo sem água, sem luz e em meio a grades que mais lembram um campo de concentração urbano em pleno século XXI. A luta pela manutenção destas famílias tem sido árdua. E feita exclusivamente pela sociedade civil organizada que vem mantendo diariamente esta Ocupação com doações diárias que já ultrapassaram os 40 mil reais. Além disto, é a sociedade civil organizada que tem organizado embates públicos, protestos, pautas na mídia e com isto, forçado o poder público a negociar.


A ida de dois ônibus com moradores da Novo Horizonte para a Câmara de Dirigentes Lojistas de Campos, foi um dos vários capítulos desta luta. Visivelmente o governador Cláudio Castro não queria lidar com as repercussões públicas de um ato desfavorável naquele momento. A celeridade com que recebeu as reivindicações da população comprovou seu medo de que aquela manhã fosse “tumultuada” pelo povo.


Aberta a mesa de negociação na Secretaria de Obras e Infraestrutura no Rio de Janeiro, assistimos o secretário Max Lemos ligar para o prefeito Wladimir Garotinho no dia 19 de agosto. Naquele telefonema o prefeito demonstrou uma boa vontade inédita e uma reunião ocorreu no dia 22, entre ambos na capital.


A luta pela moradia exigiu (e exige) a superação de muitos desafios. Em primeiro lugar a cidade não conta com um movimento de luta urbana pela moradia. Tudo foi aprendido desde o primeiro dia na base de muita vontade, certo improviso e construção de instrumentos de mapeamento do terreno. Nosso banco de dados é muito superior ao feito pela Prefeitura. É mais completo e reflete o perfil de mulheres negras, mães sem renda, com pouca escolaridade e passado rural. Esta população quer casa e não aluguel social.


Em segundo lugar, as disputas internas enfraquecem a luta coletiva. É preciso superar certa tendência do culto a personalidade e as relações pessoais. A cordialidade da qual nos fala Sérgio Buarque de Holanda, a doçura das relações próximas, é o avesso da universalização de direitos que faz avançar a luta coletiva. É neste momento que passado e presente entram em choque exigindo novas práticas de construção política. Talvez haja em Campos, como em muitas cidades de porte médio, um domínio das relações de amizade e familiares sobre o que deveria ser impessoal.  Neste momento, estamos assistindo o desfecho da luta da maior ocupação urbana do Rio de Janeiro fora dos centros metropolitanos.


Quando pensamos a ação dos movimento sociais, coletivos e partidos progressistas dentro da Novo Horizonte, estamos mirando algo muito mais profundo na cidade de Campos. Miramos a potência de organização fora dos moldes já conhecidos de cooptação pelas famílias locais que dominam a política. E devemos colocar na agenda principal da cidade, o acesso à moradia como um direito humano de descendentes dos trabalhadores de usina. É preciso que este objetivo esteja fixado e seja reforçado. Sabemos como intrigas, disputas por terra e trações levaram líderes à morte em um passado recente. Assassinados sem que a justiça seja feita.


Em memória a lutadores como Cícero Guedes e Regina dos Santos Pinho, devemos evitar qualquer ato que divida a luta. Sabemos como a difamação é arma corriqueira na mão saudosa dos donos do poder. E ainda temos de lidar com a urgência da construção de uma consciência de classe para além do imediatismo.


Vamos em frente, vida longa à Novo Horizonte!