quarta-feira, 6 de abril de 2022

Carlos Lessa e os intelectuais públicos - Milton Lahuerta


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Carlos Lessa e os intelectuais públicos!**

Milton Lahuerta***

Em meados de 1976, tive uma oportunidade de trabalho que mudou minha vida. À época, com 22 anos, eu cursava o 3o ano de Ciências Sociais na FFLHC-USP, militava no MDB e no PCB, e vivia atormentado por trabalhar numa empresa multinacional holandesa, a Philips. 

Por uma colega que também fazia Ciências Sociais, a Sarah Yakhni, fiquei sabendo que estava em curso um processo de seleção de estagiários para trabalhar num projeto de pesquisa sobre "Estrutura e gênese  da Administração Pública Paulista", junto à Diretoria de Pesquisa de uma instituição que havia sido recém criada: a FUNDAP (Fundação para o Desenvolvimento Administrativo). 

Fiz a entrevista de seleção com Rui Fontana Lopes, que me explicou o que seria o projeto e me informou que a equipe da Diretoria de Pesquisa era composta por Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo (Diretor), Paulo Davidoff Cruz e ele próprio (um pouco depois seria incorporada à equipe como técnica Ieda Marques Britto), e que seria complementada por mais quatro estagiários, dos quais só faltava selecionar um. Acabei sendo o escolhido, para minha alegria e profundo desgosto de minha família, pois em casa eu era o único com trabalho fixo numa "boa empresa".

A mudança significou uma redução de 75% do meu salário e nunca esqueci o que meu pai, que sempre respeitou muito minhas escolhas, me disse, meio consternado por estar questionando minha opção: "você tem certeza do que está fazendo? Todo mundo anda pra frente, você vai andar pra trás?".

De fato, trocar um salário de 3.000,00 cruzeiros, com carteira assinada, refeitório e assistência médica, numa empresa multinacional, por um estágio, pelo qual receberia 600,00 cruzeiros, a ele e a meus amigos, parecia uma atitude insensata e, eu mesmo, confesso que vacilei!

E foi com essa dúvida que iniciei minha primeira experiência de pesquisa, integrando uma equipe que, além dos citados acima, passou a ser composta por quatro estagiári@s, que trabalhavam quatro horas por dia, em duplas, num edifício na Av. São Luís, no centro de São Paulo, onde ficava guardado o arquivo da Assessoria Técnica Legislativa (ATL), reunindo todas as leis e decretos do Estado de São Paulo, desde 1890, nos quais resgatávamos as informações sobre a criação, extinção, fusão, desmembramento de todos os órgãos da Administração Pública Paulista. A equipe de estagiários era composta por Eliane Pérola Maizel (CS-USP), Lizete Prata  (CS-UNICAMP), Milton Lahuerta (CS-USP) e Olivier Udry (AP-FGV), substituído por Mário Mazzilli (CS-USP).

Durante um ano cumprimos uma rotina rigorosa de trabalho de pesquisa, definindo a maneira de coletar as informações e padronizá-las, escrevendo textos sobre o evolver da Administração Pública Paulista, coordenados por Rui Fontana Lopes, que, ainda que fosse recém formado pela GV e tivesse a nossa idade, tinha muitas qualidades intelectuais e grande experiência como pesquisador. Para que o trabalho pudesse ser realizado, além das reuniões com Belluzzo, Paulo Davidoff e Rui, tínhamos encontros quinzenais com consultores, primeiramente, com a finalidade de ajustar o desenho do projeto e depois para acompanhar o seu desenvolvimento. Dentre os consultores, brilhava justamente o economista Carlos Lessa, à época com menos de 40 anos, que juntamente com Belluzzo, João Manoel Cardoso de Mello, Maria da Conceição Tavares, Frederico Mazzucchelli, Liana Aureliano, compunha o Depto de Economia da UNICAMP, que tivera importante papel na criação da FUNDAP. 

As participações de Lessa como consultor da equipe traziam uma lufada de bom humor, energia e esperança para tod@s nós, pois nele não havia nenhum resquício de tecnocratismo e/ou de uma visão burocrática sobre o estado e sobre o trabalho a ser realizado. Suas intervenções, além de tratarem dos desafios próprios da pesquisa, do Estado, da economia, da Administração Pública, falavam da vida, da literatura, da cultura brasileira e universal. Eram recorrentes suas citações de  Sartre e Hemingway, sempre exercitando a ironia, a verve crítica e a imaginação criadora, e sempre nos desafiando a pensar para além dos escaninhos burocráticos. Assim como eram recorrentes suas colocações acerca da necessidade de um projeto nacional e democrático de desenvolvimento para o Brasil. 

Nesse sentido, Lessa, além de nos inspirar a pesquisar, estimulou em cada um de nós a necessidade de se pensar não só como profissional, como técnico, mas principalmente como intelectual. Naquele projeto, sua presença foi fundamental não só para que a equipe se constituísse com organicidade e a pesquisa pudesse ser concluída e publicada como livro, "Perfil da Administração Pública Paulista", mas, principalmente, para que aquel@s jovens estagiári@s, que participavam do empreendimento, pudessem apurar o rigor intelectual e o compromisso público com a democracia e com o desenvolvimento. Para mim, particularmente, conviver com ele nesse período foi decisivo também para definir o meu perfil intelectual e para me dar a certeza de que, contrariando meu pai, eu não estava "andando pra trás!".


* Foto de Victor Vogel. Disponível em: https://www.vitorvogel.com.br/retratos?lightbox=imagepbm, acesso em 06 de abril de 2022.

** Texto publicado originalmente no perfil do Facebook do prof. Milton Lahuerta (https://www.facebook.com/milton.lahuerta). Reproduzimos aqui com a autorização do autor. O professor Lahuerta compartilhou essa memória "(...) quando do passamento de Carlos Lessa em 2020".


*** Milton Lahuerta é professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara. É autor de inúmeros artigos, capítulos de livros e coletâneas nas áreas de pensamento social brasileiro, sociologia dos intelectuais e teoria política. Publicou, em 2014, o seu "Elitismo, autonomia, populismo - Os intelectuais na transição dos anos 1940" pela editora Andreato.

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