Carlos Abraão Moura Valpassos*
Há pouco tempo, lá no ano de 2019, parte da população brasileira adotou uma postura ácida em relação a intelectuais e artistas. Não faltavam dedos erguidos para indicar que os membros das classes artísticas e intelectuais eram vagabundos, mamadores da lei Rouanet, pessoas “sem carteira de trabalho” ou qualquer coisa equivalente.
Não deveria precisar dizer, mas, nos dias de hoje, como nem o óbvio é poupado das distorções, é bom deixar claro: era o primeiro ano de governo de Bolsonaro. Naquele ínterim, havia um frenesi da direita brasileira e um derramamento de ódio contra tudo e contra todos – mas sobretudo contra intelectuais e artistas. Todavia, a terra redonda gira, e em 2020 veio a pandemia de Covid-19, obrigando as pessoas a ficarem reclusas em suas casas. Foram dias, semanas e meses de isolamento. Não demorou para que os vagabundos mostrassem seu valor: apresentações de lives, entrevistas e outras formas variadas encontradas pela criatividade. O mundo acadêmico, em um momento em que os dados sobre a pandemia eram abafados ou distorcidos, tomou para si a tarefa de alertar sobre os riscos envolvidos, indicando desde o potencial de letalidade até os efeitos econômicos e sociais. Entre erros e acertos, podemos hoje afirmar que os alertas mais sérios sobre a pandemia, no Brasil, vieram das universidades. Nenhum cientista classificou a Covid-19 como “gripezinha” e logo no início foram apresentadas análises sobre a possibilidade de a condução das políticas de combate à pandemia adotadas, orientadas pelo planalto, levarem a uma hecatombe. Oficialmente, passamos dos 650 mil mortos. Isso em uma oficialidade que não reflete a realidade, pois essa, por sua vez, indica números muito mais elevados.
Voltemos, agora, aos nossos valiosos vagabundos. Eles (e elas! – perdoem este ser alfabetizado nos anos de 1980) foram malditos em 2019, seguraram a peteca e salvaram a lavoura quando a situação ficou sombria em 2020, sofreram com as limitações de suas atividades em 2020-2021, e agora, em 2022, ano de eleição, voltam a ser chamados de malditos vagabundos mamadores da lei Rouanet. “Joga pedra na Geni!”. No ano de eleição presidencial, o bolsonarismo precisa criar fantasmas que desviem a atenção de seus próprios demônios. Artistas e intelectuais são ótimos fantasmas. É uma estratégia política. No entanto, 2022 surge como o ano da recuperação das atividades e da economia. E esses artistas e intelectuais, sem suas carteiras de trabalho assinadas, podem ser menosprezados e vilipendiados. E é aqui que precisamos pensar na contribuição econômica dessas pessoas, mesmo que de modo simples e rápido, mas sempre refletindo o mundo fático.
Imagine o Rio de Janeiro sem aqueles vagabundos carnavalescos para organizar os desfiles e as apresentações de carnaval. Você não terá trabalho para imaginar isso, basta lembrar o que aconteceu em 2021. Sem carnaval, as atividades turísticas desabam. Não há ocupação hoteleira satisfatória, os bares não ficam lotados, os táxis e ubers se movimentam em escala tímida, os vendedores ambulantes ficam sem público, as lojas vendem menos. “Malditos vagabundos que atraem milhões de pessoas para a baderna na cidade do Rio de Janeiro” - e movimentam a cidade e sua economia.
A vida não é feita só de carnaval. E o setor turístico, super mal aproveitado no Brasil, desperdiça seu potencial quando não investe na arte e na intelectualidade. As pessoas, quando vão ao Rio de Janeiro, querem ver a praia de Ipanema, não por ela ser mais bonita que as praias da Barra, mas porque já ouviram falar, na voz de Tom Jobim, de uma tal Garota de Ipanema. Elas vão à cidade de São Paulo e querem tomar um chopp na esquina da Ipiranga com a Avenida São João, para ver se alguma coisa acontece no coração, tal como cantou Caetano. E os exemplos não param.
Em 2018, o Brasil recebeu 6,62 milhões de turistas estrangeiros. Em 2019, os Estados Unidos receberam cerca de 80 milhões de turistas estrangeiros, que geraram cerca de 179... bilhões de dólares em receitas em bens e serviços (Dados U.S. Travel Association, mencionados pela Bloomberg). O que gera tal diferença? Pode-se argumentar que a diferença de desenvolvimento econômico entre os países – e isto estará correto. Entretanto, há outras questões que acentuam a disparidade. Eu destacaria uma questão muito simples: as histórias. Os vagabundos americanos possuem maior poder para divulgar suas histórias: livros, filmes, músicas, esportes etc. As pessoas querem estar nos palcos onde aconteceram grandes histórias, elas querem pisar naquele solo e respirar aquele ar. E sem esses vagabundos, as histórias não são contadas, elas não são registradas. Sem histórias, pode até haver turismo, mas não do mesmo modo e tampouco na mesma intensidade. Histórias filmadas, fotografadas, escritas ou cantadas fascinam e atraem pessoas. Pessoas movimentam cidades e economias. Isso gera renda, trabalho e possibilidades.
Quando não valorizamos artistas e intelectuais, fazemos com que o Mississipi, um rio que nunca vimos, pareça mais poético e atraente do que o Paraíba do Sul, que nos fornece a água de cada dia. É preciso frisar a importância desses vagabundos e vagabundas que tornam os palcos de suas vidas atraentes para outras pessoas, que nos fazem desejar passar uma tarde em Itapuã ou ir ao Maracanã num domingo para ver o Flamengo jogar (mesmo na fase atual).
Professor de Teoria Antropológica
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense
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