domingo, 24 de fevereiro de 2019

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Para não sermos engolidos de vez pelo desânimo que este momento de regressão histórica nos provoca, entendo que trabalhar conceitos é importante para avaliar qual política estará posta na mesa, por assim dizer, através do Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN), que entrará em funcionamento na cidade de Campos dos Goytacazes-RJ. Esforço inútil? A meu ver, não, pois ideias e valores estão presentes no comportamento efetivo das pessoas em geral (e dos gestores públicos em particular) e guardam sua eficácia social justamente quando deixam de ser submetidos a um exame consciente. Conceitos então podem ser vistos como os “pedais” do conhecimento e este, por sua vez, como uma construção coletiva da qual participamos conforme visões de mundo que também são objeto de reflexão.

Para definir esse “objeto”, dialogo com a abordagem de Célia Lessa Kerstenetzky sobre políticas sociais[1], chamando atenção para as confusões sobre o que venham a ser focalização e universalização. Para tanto, exponho o quadro conceitual com o qual Kerstenetzky busca superá-las, já que elas atravancam o debate sobre a retomada do “Restaurante Popular”. Interessa discutir possíveis enquadramentos do estilo de política social que tende a prevalecer no seu substituto, o CESAN.

Justiça de mercado e Justiça redistributiva

Segundo Kerstenetzky, no debate público brasileiro há uma tendência a correlacionar automaticamente o princípio da universalização com a garantia de direitos sociais e o da focalização com uma noção "residualista" de justiça. Estaríamos aqui diante de modelos de política social que seriam, aparentemente, impassíveis de se complementarem. Porém, tal visão bipartida das políticas sociais se mostra limitada diante dos arranjos institucionais com os quais lidamos.

Tais arranjos dizem respeito à maneira como se legitimam noções de justiça na distribuição da riqueza com referência às duas instituições mais importantes do mundo contemporâneo: Estado e Mercado. Em torno delas, temos variadas linhagens do pensamento político e econômico encabeçadas por duas orientações-chave: a justiça de mercado e a justiça redistributiva.

Na primeira - justiça de mercado -, navegaríamos no velho leito do liberalismo econômico. De acordo com esse princípio de justiça social, a distribuição de vantagens econômicas seria decorrente das livres transações do mercado sem maiores questionamentos quanto à desigualdade material entre homens e mulheres. Estes(as), na qualidade de pessoas adultas que foram educadas para o exercício da livre escolha, teriam a seu dispor a “mão visível” do Estado para garantir o direito à propriedade privada e o cumprimento legal dos contratos, facultando-lhes a segurança jurídica necessária para se colocarem à prova em uma economia de mercado que, assim reza a lenda, premiariam os mais “responsáveis” em suas iniciativas pessoais. 

Para os crentes de ontem e de hoje na ideia de mercados autorregulados, sendo os indivíduos dotados de autonomia civil, a persistência das desigualdades de renda poderia ser vista até mesmo como uma virtualidade do capitalismo, na medida em que encontraríamos uma espécie de “auto-cura” para um modo de produção sempre propenso a crises: remunerações desiguais serviriam de estímulo ao trabalho e à poupança e, por consequência, elevariam a eficiência econômica; alcançando-se maior eficiência econômica, obteríamos o crescimento econômico, implicando assim em maior taxa de emprego e renda e, potencialmente, em mais benefícios para os menos favorecidos. Soa familiar com a estorinha do peixe e da vara de pescar, caro(a) leitor(a)?  

Ironicamente, apostar que a civilização burguesa propicie uma racionalização dos modos de vida capaz de conduzir mesmo quem esteja na pior situação de classe aos melhores resultados econômicos é, no mínimo, frustrante diante das não poucas ineficiências das operações do mercado, o que, lembra Kerstenetzky, leva-nos a admitir que o “progresso material convive com (e talvez mesmo parasite) a incerteza”[2] e que “não há como assegurar que esforços serão recompensados e negligências punidas”[3].

Se estamos submetidos a um sistema econômico cuja vitalidade advém da mudança incessante (“tudo que é sólido desmancha no ar”, já dizia o velho Marx), o mal-estar social daqueles(as) que nunca tiveram escolha alguma será mais cedo ou mais tarde objeto de responsabilidade pública. Na justiça de mercado, essa responsabilização assume a forma de uma rede subsidiária de proteção (renda mínima, seguro-desemprego entre outros) que dê conta da “pobreza imerecida”. Nada mais nos restaria senão a perspectiva de focalização como "resíduo".

Contudo, a política social pode ser entendida como algo além da provisão de um seguro contra riscos sociais imprevisíveis. Para Kerstenetzky, podemos seguir uma orientação alternativa – a justiça redistributiva – que nos permita pensar a focalização tanto “como condicionalidade” quanto “ação reparatória”. 

No âmbito da justiça redistributiva, a focalização “como condicionalidade” se traduz em um problema de tecnologia social: encontrar o foco correto para a solução de um problema específico, promovendo assim eficiência à ação governamental. Apesar da aparente simplicidade dessa perspectiva, Kerstenetzky adverte que aplicá-la requer aprimorar o diagnóstico local sobre o estado de privação que se quer superar. Se, por um lado, priorizar a eficiência do gasto social “ajustando” o foco favorece com o tempo a provisão de recursos para outras demandas sociais urgentes, por outro, em certas circunstâncias, a melhor maneira de realizar o interesse público é subverter o sentido mesmo da focalização:

Às vezes, a busca do foco correto pode resultar no formato contra-intuitivo de incondicionalidade, como quando se atinge melhor os mais necessitados estendendo-se um benefício a todos dentro de um determinado território, supostamente razoavelmente homogêneo, e não apenas aos mais necessitados (em que se poupam, por exemplo, os custos de monitoramento). Neste caso específico, a melhor forma de encontrar o foco é “universalizar”[4].

Já na focalização como “ação reparatória”, teríamos uma torção de sentido quanto à perspectiva da focalização como “resíduo” que discutimos no âmbito da justiça de mercado. Homens e mulheres sem trabalho e renda não seriam aqui produto de eventuais ineficiências de uma economia de mercado, mas a confirmação de que nela uma desigual oportunidade de realização nas gerações passadas é transmitida à geração atual, tornando direitos universais formalmente iguais uma ilusão facilmente desmentida pelos fatos. Tornar então efetiva a igualdade de oportunidades requereria um conjunto de ações que, destinado a grupos com demandas específicas, realizasse uma contínua equalização da riqueza, aproximando dessa forma o “ideal de direitos universais a algum nível decente de realização”[5].  

Em sociedades marcadas por desigualdades abissais como a brasileira, é pouco provável que políticas universais tenham êxito dissociadas da focalização na política social, ratifica Kerstenetzky. Se tais políticas redistributivas podem ter caráter compensatório ou estrutural, não há resposta pronta. O que fazer então? Testar as noções de justiça de mercado e de justiça redistributiva em cada cenário concreto. Desse modo, tais categorias de análise auxiliam na tentativa de compreender o estilo de política social que está se desenhando para o “Restaurante Popular” em Campos dos Goytacazes-RJ.

Uma hipótese: considerando que os critérios de renda para a gratuidade das refeições que estão delimitados, até o momento, pelo crivo do CadÚnico e, por outro, que os preços com ou sem subsídio podem vir a superar (e muito) o preço da refeição cobrado até 2017 no então Restaurante Popular, prevalece uma política calcada na justiça de mercado. Diante da "pobreza imerecida" - resultado das falhas do mercado em entregar aquilo que promete aos crédulos no próprio esforço ou "mérito" ou àqueles que, desalentados, já não acreditam em mais nada porque simplesmente "não há vagas" -, atrela-se um restaurante popular a uma rede (incompleta) de proteção sem maiores preocupações quanto ao condicionantes locais de uma pobreza que é estrutural.

Se tal hipótese se confirmar no decorrer do serviço prestado no CESAN, é razoável que se discuta a possibilidade de conjugar tal serviço com outras modalidades de focalização mais afeitas à justiça redistributiva. Ora, a julgar pela regressão dos indicadores sociais com a agenda ultraliberal à qual foi submetida o país com Michel Temer e agora Jair Bolsonaro [6] - Reforma Trabalhista, Emenda Constituição nº 95 -, o tamanho do "resíduo" deixado para trás por um mercado deixado sem freios à sua própria lógica é muito maior do que a Prefeitura supõe e, desse modo, pensar a focalização como "condicionalidade" ampliaria o escopo dessa política de segurança alimentar e nutricional para segmentos da população cujo direito ao trabalho e à renda lhes é negado pela crônica falta de transporte coletivo, pela pouca integração da área urbana de Campos dos Goytacazes com a sua imensa área rural, entre outros gargalos já conhecidos.

Segurança alimentar e nutricional é uma ação intersetorial e, como tal, não se deixa aprisionar por uma visão minimalista das políticas sociais; logo, há muito o que investigar sobre a questão social em Campos dos Goytacazes-RJ a partir de um diagnóstico local que, parafraseando Albert Hirschman, evite confirmar que "políticas para pobres sejam sempre políticas pobres". Cautela necessária ante uma cultura política que ainda não produziu em nossa cidade uma via programática que supere a insegurança econômica das camadas baixas da população como moeda de troca sempre à mão na sucessão de governos.

[1] KERSTENETZKY, Celia Lessa. Políticas Sociais: focalização ou universalização?. Rev. Econ. Polit.,  São Paulo, v. 26, n. 4, p. 564-574,  dez.  2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572006000400006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  jan.  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31572006000400006.
[2] Op. cit., idem., p.565.
[3] Idem.
[4] Op. cit., idem., p.570.
[5] Op. cit., idem., p.571.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Antes de (re) formar o RioPrevidência, Wilson Witzel deveria auditar a “Operação Delaware”

Publicado originalmente no Blog do Pedlowski[1]

No último domingo, a jornalista Paloma Saavedra publicou uma daquelas simpáticas matérias sobre a intenção do atual governo do Rio de Janeiro de fazer o nosso estado um primeiro laboratório de aplicação da draconiana reforma da Previdência que foi encaminhada ontem ao Congresso Nacional pelo presidente Jair Bolsonaro.

Nas palavras do atual presidente do fundo de previdência dos servidores públicos estaduais do Rio de Janeiro, o Sr. Sérgio Aureliano, colocar 200 mil servidores dentro de um modelo de capitalização semelhante ao que foi criado para os servidores que entraram no serviço público estadual após 2013.

Entretanto, o que o Sr. Aureliano parece esquecer de mencionar é que uma das causas originárias do desiquilíbrio das contas do RioPrevidência foi a chamada “Operação Delaware”, que se tratou de uma operação para lá de exótica e que comprometeu estruturalmente a saúde financeira do fundo.

Para mim, a primeira responsabilidade do governo Witzel seria finalmente ordenar uma auditoria séria sobre como foi possível para os ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, com a ajuda prestimosa do ex-secretário de Fazenda Gustavo Barbosa, realizarem uma operação de captação de recursos num paraíso fiscal corporativo que de fato é o minúsculo estado de Delaware cujo epicentro no caso do RioPrevidência é a cidade de Wilmington. 

Aliás, o governo Witzel já deveria ter acionado sua base parlamentar para instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para apurar o destino dos mais de US$ 3,1 bilhões que foram “captados”  em Delaware por meio do chamado “Rio Oil Finance Trust”, bem como o custo mensal que a operação vem causando aos cofres do RioPrevidência.

Sem a realização do longamente devido processo de auditagem do RioPrevidência e da “exótica” Operação Delaware, é inadmissível que se queira aprofundar ainda mais o garrote no pescoço dos servidores públicos estaduais do Rio de Janeiro. E quem quiser começar a pesquisa aqui mesmo neste blog, constatará que a partir de abril de 2016, publiquei dezenas de postagens sobre esse assunto. Lamentavelmente, até hoje, ninguém decidiu apurar as responsabilidades que aparecem nas pesquisas que realizei sobre a “Operação Delaware”.

E aos servidores estaduais e seus sindicatos não restam outro caminho a não ser ocupar as ruas e as galerias da Alerj para impedir a completa desconstrução do RioPrevidência que, segundo os planos do seu atual presidente, deverá passar a ser totalmente transformado num fundo de capitalização, levando para lá 200 mil servidores, muitos deles depois de contribuírem por décadas. Do contrário, o destino será servir de bucha de canhão para alimentar a fome de dinheiro dos donos dos fundos abutres que hoje controlam o RioPrevidência.

Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral


Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da ciência após o transe eleitoral

Por Luciane Soares da Silva*

Não há dúvida de que o termo mais correto para definir as eleições de 2018 é “boato”. Sabemos que boatos não são novidade na política nacional, já fizeram estrago em eleições anteriores e têm a capacidade de espalhar-se como fogo no milharal. Creio que a novidade consiste no uso do boato como ferramenta ativa de campanha. E como podemos perceber, com êxito diante da interpretação do Tribunal Superior Eleitoral de que tudo transcorreu na mais perfeita normalidade. Com um militar dando entrevista, com tudo.

Normalidade... primeiro afasta-se uma presidente eleita, posteriormente se reconhece a fragilidade do processo, mas com apoio popular a uma campanha anti-corrupção prende-se o principal candidato ao cargo. Entre manchetes espetaculares e patos desfilando na Avenida Paulista, surge um tipo histriônico, despreparado, capaz de incitar ódio em doses cavalares e atacar em um único dia, mulheres, negros, gays e todo o resto que se aproxime de uma classificação “à esquerda”.

Passada a eleição, gostaria de conversar com seus eleitores sobre a pauta moral. Há uma concepção profundamente equivocada em retirar da escola a discussão de temas sobre sexualidade, gênero, direitos humanos.

Não vou desenvolver aqui um ataque ao projeto “Escola Sem Partido” por compreender que em princípio ele é indefensável e impossível de ser efetivado. Nem colocarão mordaças nos professores nem terão meios de punir ou mesmo fiscalizar as escolas em um território como o nosso.

Mas há uma questão importante e ela diz respeito a explicação que alguns religiosos, pais e profissionais da área de educação, pretendem dar para sobrepor a família à escola em assuntos como sexualidade. Em minhas aulas sobre fato social, tenho utilizado não o exemplo do suicídio para explicar o conceito. Tenho discutido em aula os massacres em escolas nos Estados Unidos. E tenho feito isto contra um discurso muito sedutor de que os meninos de Columbine eram “doentes”, comprometidos psiquicamente. Fui estudar os casos. Milhares de livros e psicólogos descrevendo as características de um serial killer. Sem tocar com responsabilidade no tema das armas, na estruturação das escolas e na competição que instaura o estigma de “loser” em crianças de 13 anos. Por serem gordas, tímidas, pobres, lentas, seja lá a razão.

Minha defesa da importância da pesquisa em sociologia é dizer que não, estes adolescentes que a cada ano buscam superar o massacre do ano anterior, não são doentes nem psicologicamente comprometidos. Não podemos explicar estes massacres com Lombroso ou teorias de degenerescência individual. Elas já serviram para justificar o racismo, como Nina Rodrigues e outros no Brasil. Mas não, o problema não é o indivíduo.

A escola é uma das principais instituições modernas. Ela reflete a possibilidade de educarmos uns aos outros. Sobre arte, sobre matemática, sobre amor, sobre sexualidade. Não há limite para o que podemos aprender. Mas a escola é também uma instituição de reprodução de lugares sociais e preconceitos. Esta é a disputa vivida. De qualquer forma, aqueles que tiverem ouvidos abertos, verão dados inegáveis sobre abuso infantil: a maior parte destas crianças sobre abuso em casa ou em seu bairro.

Nos anos 2000, trabalhamos em uma equipe para reconhecer como estas crianças, muitas delas com 6 anos ou menos, expressavam o abuso. Fizemos uma imersão com palestras, conversamos com profissionais, vimos os desenhos que demonstravam padrões, como órgãos sexuais em tamanho disforme, pessoas deformadas, a criança em tamanho muito menor diante de um parente. Ouvimos de como tocavam seu corpo, de problemas para ir ao banheiro. Ou crianças com extrema tristeza, crises de choro ou demonstrações de sexualização precoce. O resultado da pesquisa em escolas e creches de Porto Alegre confirmaria tudo que tínhamos aprendido naqueles poucos dias. Em um dois bairros, nossa equipe foi expulsa e os questionários confiscados.  Mesmo estudando violência, nunca consegui retornar ao tema. E tenho profunda admiração pelos professores, profissionais de saúde, assistentes sociais, religiosos e demais pessoas que se envolvem em uma área que considero a mais pesada do trabalho social.

Abusadores não são monstros, não são “tarados” como tivemos de aceitar enquanto forma de normalização até décadas recentes. Abusadores sabem o que podem e com quem podem exercer seu abuso. Sabem até onde podem ir entre uma mão nas partes íntimas de um menino e o estupro de uma menina de 10 anos. Abusadores não são demônios entre nós como podem querer afirmar algumas igrejas que têm em seus quadros lobos eloquentes.

E só existe uma forma de combate – e todos somos responsáveis por isto – a denúncia e a proteção de infância e da adolescência. A família não pode seguir como uma instituição do século XVIII na qual o patriarca tem poder de vida e morte sobre mulheres, mesas, bois, tudo ao redor.

Se esta eleição, que separou famílias, teve alguma utilidade, foi escancarar esta hipocrisia moral. Ela não terá mais lugar. E agora que sabemos disto, nos resta defender todos aqueles que trabalham por uma educação realmente crítica e construtora de respeito a infância. E dizer a verdade sobre o corpo, sobre nossas necessidades e desejos, nada tem de errado.

Perversão é ganhar uma eleição com uma pauta moral sórdida e mentirosa.

* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)



Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)

Democracia serve para todos ou não serve para nada. (Betinho)

Por Bruna Machel, Juliana Tavares
e Paulo Sérgio Ribeiro

É difícil precisar como e quando nasce o projeto dos Restaurantes Populares (RPs) no Brasil. Alguns dirão que sua origem data de 1940 pela iniciativa de Getúlio Vargas, que instituiu o chamado Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS)[1], o modelo de restaurantes públicos que ofereciam alimentação às populações pobres, posteriormente destruído pelo golpe civil-militar, precisamente em 1968[2]; outros dirão que os RPs foram iniciativa inédita do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 2000, quando Garotinho implementou o Restaurante Cidadão na Central do Brasil, ofertando alimentos a R$ 1,00 com subsídio estatal[3]. Porém, é absolutamente indiscutível que os RPs foram sistematicamente implementados, enquanto estratégia de promoção da segurança alimentar em grande escala, somente em 2003 como parte integrante do programa Fome Zero do Governo Federal sob comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal programa tinha por objetivo superar o problema da fome no Brasil através de uma série de ações articuladas que envolviam desde a participação de setores sociais na formulação destas políticas (tendo como principal consequência positiva a então reorganização do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - CONSEA), como também o fomento à criação de RPs nas cidades com mais de 100 mil habitantes em todo território nacional.

Os princípios que regem o restaurante popular e a importância dessa política pública

Segundo o Manual dos Restaurantes Populares de 2004 do Governo Federal[4], Restaurantes Populares consistem em: 

[...] estabelecimentos administrados pelo poder público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas, nutricionalmente balanceadas (...) a preços acessíveis, servidas em locais apropriados e confortáveis, de forma a garantir a dignidade ao ato de se alimentar. São destinados a oferecer à população que se alimenta fora de casa, prioritariamente aos extratos sociais mais vulneráveis, refeições variadas, mantendo o equilíbrio entre os nutrientes...

Nota-se no manual dos RPs a preocupação em caracterizar esses estabelecimentos como pontos de apoio para pessoas extremamente pobres que vivem em situação de vulnerabilidade social, mas também voltados para as classes trabalhadoras nos centros urbanos. Tais segmentos, submetidos à precarização das condições de vida sob o sistema capitalista, sem poder se alimentar de forma saudável no cotidiano das médias e grandes cidades, acabam lançando mão de alimentações inapropriadas do ponto de vista nutricional, sofrendo, por consequência, muitas vezes com a subnutrição ou a obesidade. E como bem diz a resolução do CONSEA de 2009[5]

O direito humano a alimentação adequada e saudável e a soberania e segurança alimentar e nutricional não se limita a aqueles(as) que passam fome ou que são pobres ou socialmente excluídos(as), mas diz respeito a qualquer cidadão ou cidadã que não se alimenta adequadamente, seja porque tem renda insuficiente ou não tem acesso aos recursos produtivos (terra e outros), seja por ser portador(a) de necessidades alimentares especiais que não são respeitadas, mas, principalmente, porque a disponibilidade e o acesso aos alimentos condicionam de forma significativa suas práticas alimentares.

A partir desses debates e resoluções nacionais, os RPs foram implementados de formas distintas pelos Estados, porém mantendo como forma predominante o princípio universalizante orientado pelo CONSEA. As filas de acesso ao restaurante se tornaram o crivo natural entre aqueles que precisam e aqueles que "não precisam" de alimento a baixo custo, sem que houvesse a necessidade de qualquer medida restritiva por parte do Poder Público. Tal política melhorou a vida de milhões de aposentados, sem-tetos, estudantes pobres e trabalhadores precarizados do Brasil, tornando os centros urbanos mais humanizados. 

No entanto, com o agravamento da crise, especialmente a partir de 2014, a realidade dos RPs foi modificada radicalmente. Alguns governos decretaram então o fechamento destes equipamentos ou a criação de critérios de acesso que visavam a reduzir o número de usuários, vide a cidade do Rio de Janeiro[6]. Como diz o ditado popular: "A corda sempre arrebenta do lado mais fraco"... E o lado mais fraco na luta de classes, por óbvio, tende a ser o lado do trabalhador, da mãe de família, do jovem desempregado.

É didático recordar, por exemplo, que mesmo em meio à crise nacional, o então Governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, não abriu mão de dar isenção fiscal para empresas "amigas", sem que elas aumentassem sua contrapartida do ponto de vista do interesse público[7]; tão pouco deixou de realizar licitações fraudulentas, que comprometeram drasticamente a arrecadação estadual, como aponta recentemente a operação Boca de Lobo[8]. Tais práticas antirrepublicanas, corriqueiras em todo o Brasil, garantem o beneficiamento econômico de meia dúzia de empresas privadas e acabam por gerar prejuízos incalculáveis para a manutenção dos serviços públicos. É nesse contexto que programas como o Restaurante Popular são interrompidos ou descaracterizados. 

A situação em Campos dos Goytacazes

O debate sobre a reativação do Restaurante Popular (RP) em Campos dos Goytacazes-RJ, que será rebatizado de Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN) pela atual gestão municipal, está longe de chegar ao consenso. Se há questões pendentes em sua formulação, deparamos agora com um fator agravante: o fim do CONSEA, uma das primeiras canetadas do presidente recém-empossado Jair Bolsonaro. Esse conselho reunia o melhor da inteligência nacional sobre a temática, tendo sido um referencial para diferentes programas de governo. 

Decretado o fim do CONSEA, aumenta-se a margem de experimentação dos governos municipais no terreno da segurança alimentar e nutricional e, não menos, a necessidade de fortalecer a participação popular nessa política em um momento de tantas incertezas quanto à cooperação entre União, estados e municípios para assegurar o abastecimento alimentar, o combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, entre outras competências comuns dos entes da federação.

Segundo a apresentação da Prefeitura durante plenária do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), em 09 de Novembro de 2018, para se alimentar no CESAN, as pessoas passarão por uma triagem, onde serão divididas em 3 categorias de renda, que definirá quem pode ou não contar com o subsídio público.

Terão direito à gratuidade pessoas cuja renda familiar seja de até R$ 178,00 per capita, comprovada pelo Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico). À primeira vista, parece uma iniciativa cuja justificativa é auto-evidente. No entanto, esbarramos no problema da dimensão de seu impacto real na vida destas pessoas, já que elas, em sua maioria, vivem em bairros periféricos e têm um acesso dificultado ao centro da cidade em face das não poucas insuficiências que temos em mobilidade urbana. Não seria exagero dizer que, com o fim das passagens a preços populares, o impacto da gratuidade do RP no cotidiano das populações extremamente pobres será, provavelmente, menor do que se desejaria.

Já famílias com renda mensal de até três salários mínimos per capita receberão subsídio de 50% do valor licitado. Tal valor ainda não foi definido. Porém, é plausível estimar, com base no contrato anterior, que vigorou até o fechamento do restaurante em 2017, que o preço final para o usuário nessa faixa de renda deva variar em torno de R$ 4,00. Estamos diante de uma possibilidade que, caso se confirme, será um tanto contraditória: pessoas em variadas situações de privação e de vulnerabilidade terão de pagar 300% mais caro por uma alimentação que custava, até 2017, R$ 1,00. Tudo isto em um momento de desvalorização do salário mínimo, altíssimos índices de desemprego e desmonte de programas sociais como o Cheque Cidadão.

Também é preocupante o fato de a Prefeitura de Campos anunciar o fim do subsídio para todos aqueles que, por alguma razão, não estejam inscritos no CadÚnico do Governo Federal ou que, simplesmente, não se enquadrem nos critérios de renda delimitados. Para esse trabalhador e trabalhadora, restará pagar o valor integral do contrato entre a Prefeitura e a empresa privada concessionária do serviço público? Valor este onde se incluem o custo real e o lucro do empresário, pagando, desse modo, o mesmo que se pagaria em qualquer estabelecimento comercial no Centro de Campos dos Goytacazes?

Após a breve abordagem feita na seção inicial sobre os princípios que regem a política dos RPs, é possível afirmar que sua função social vai muito além de uma noção minimalista de “focalização” na assistência social, pois envolve uma visão democrática de cidade voltada para as classes populares, não se caracterizando, portanto, pela seletividade, mas pelo conceito ampliado de Cidade para os Trabalhadores. Na segunda parte deste texto, discutiremos com mais detalhes o que venha a ser focalização nas políticas sociais e algumas polêmicas que julgamos desnecessárias em torno da mesma quando contraposta ao princípio da universalização.

Longe estamos de viver em uma cidade cujos trabalhadores compartilhem os mesmos lugares de cidadania. Dividimo-nos em classes sociais na cidade do capital, que nada mais é do que a cidade da segregação, da especulação imobiliária, do exército de reserva de trabalhadores desempregados ou subempregados, da reprodução da miséria em “escala industrial”. Ações que tornam a cidade mais conectada com a demanda dos trabalhadores, no sentido de efetivação de direitos, entram em confronto com o interesse daquela entidade que paira fantasmagoricamente acima dos governos, o dito mercado.

Sigamos o exemplo de cidades como Teresina[9] (que curiosamente possui um PIB per capita menor do que Campos dos Goytacazes), ou o exemplo das mais de 30 cidades do Rio Grande do Norte[10], ou mesmo de Belo Horizonte[11], que mantém os RPs em pleno funcionamento. Ademais, não negamos o fato de que existe uma população em situação de rua crescente, localizada no área central da cidade. Essas pessoas, que devem ser assistidas pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), contam hoje com a solidariedade de grupos religiosos que distribuem alimentos em porta de igrejas e nas praças públicas, além de projetos sociais como o Café Solidário.

De fato, a reabertura do restaurante popular deverá amenizar um pouco a dor destas pessoas e isso é inegavelmente importante do ponto de vista da dignidade da pessoa humana. Sem subestimarmos essa virtualidade, o que propomos debater aqui é o estilo de política social a ser implantado e, por conseguinte, a clareza e a efetividade dos critérios de focalização que serão adotados em uma política cuja razão de ser é conjugar segurança alimentar e nutricional com outras demandas não menos essenciais para redistribuir a riqueza produzida socialmente.


[2] Ibid. ibidem.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Ctrl+C/Ctrl+V n. 2 - Marcio "Nico" Malta e Henfil

Desta vez um Ctrl+C/Ctrl+V híbrido. Afinal, envolve chamada externa ao blog, mas, tem gente nossa no meio!

Creio que todos conhecem a trágica história dos " Três Irmãos de Sangue" (Betinho, Chico Mário e Henfil) e o destino de pouca fortuna dos mesmos em razão da hemofilia. Três irmãos simplesmente geniais que padeceram, junto a tantos outros, pela ausência de testes de HIV nos bancos de sangue na nada longínqua década de 1980 em nosso país.

Para quem não conhece a história dos três há um excelente documentário cujo hiperlink está camuflado no último parágrafo.

De todo modo um dos três irmãos, Henrique de Souza Filho, o Henfil, ontem  faria 75 anos de vida. 

Uma lástima que ele não tenha chegado aos dias que correm. A atual conjuntura brasileira seria um prato cheio.... 

Retomando sem devaneios, o dia 05 de fevereiro motivou o Correio Brasiliense a produzir uma matéria em homenagem ao saudoso Henfil com a participação do ilustre colaborador deste blog, o sr. Márcio Malta, também conhecido nas quebradas dos cartunistas simplesmente como Nico.

Malta é autor do inspirador "Diretas Jaz: o cartunista Henfil e a redemocratização através das 'Cartas da Mãe'.", trabalho que tive o prazer de resenhar há um tempo atrás.

Sem mais delongas link da matéria aqui para o Brasiliense e também na foto abaixo do Henfil onde é possível conferir a homenagem.






terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Ctrl+C/Ctrl+V n.1 - leitura de brasilianistas britânicos sobre o Brasil contemporâneo

Iniciando seção nova no blog!

Well, para elaborar textos, análises, intervenções e desenhar (um de nós daqui do blog tem esse dom), é fundamental a prática da leitura e do consumo quase compulsivo de informações. Livros, artigos, revistas, até discos, filmes, poesia e, claro, outros blogs, vídeos e demais insumos da web.

Pensando nisso começamos aqui a seção auto-irônica "Ctrl+C/Ctrl+V" onde se pratica o cut and paste honesto, sem perder a ginga e tampouco a dignidade.

Justamente por isso não se trata de meramente pegar o conteúdo completo dx(s) outrx(s) colegas e espremer em nosso blog. Deixamos aqui a referência, o link, e antes disso apresentamos  breves comentários sumaríssimos para  instigar eventuais interessadxs. São "resenhas snack" digamos assim.

Assim sendo, vamos ao que interessa!

Daniel Buarque em seu "Blog do Brasilianismo" (https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br) nos brinda com a excelente entrevista de Jeff Garmany. Garmany é brasilianista e autor do recém lançado "Understanding Contemporary Brazil", obra escrita em parceria com Anthony Pereira. 

"Understanding.." me parece ter uma proposta fundamental para o público estrangeiro contemporâneo que se interessa pelo Brasil. Lendo a entrevista de Garmany concedida a Buarque, finalmente compreendi que toda a deferência de Klaus Schwab e companhia em Davos esse ano ao governo brasileiro recém eleito talvez tenha sido... ingenuidade! O constrangimento posterior me pareceu sincero. Talvez Schwab tenha dito aos seus correligionários: "It´s a trap Bino!". Porém as presas tem o péssimo hábito de se perceberem em armadilhas quando já estão nelas...

Bolsonaro jamais teve qualquer desenvoltura em público. Sempre compensou sua ausência de capacidade intelectual ou de carisma se saindo com polêmicas grosseiras em programas de gosto duvidoso na TV brasileira ou fazendo apologia de torturadores, além de destilar suas preferências insalubres em diversas ocasiões. Enfim... Algo que o público brasileiro que não foi abduzido nos últimos trinta anos sempre soube, porém, aparentemente esqueceram de avisar o pessoal do Schwab.

Por outro lado, e esse é um ponto que interessa ao leitor nativo, conhecer a interpretação estrangeira sobre a própria terra é sempre um exercício relevante que estimula a auto-reflexão. Garmany demonstra ser um interlocutor qualificado, com experiência em pesquisa no Brasil e pelo que demonstrou na entrevista certamente tem algo a dizer sobre nós que destoa da perspectiva naive de Schwab e de parte dos observadores da imprensa internacional. Curiosamente Garmany me parece tão qualificado que também destoa até mesmo de especialistas e observadores nativos.. enfim..

Eis o link da entrevista: https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2019/02/05/fetiche-por-bolsonaro-e-fruto-de-ignorancia-sobre-o-brasil-diz-pesquisador/ 

Igualmente clicando na capa do livro recém lançado por Garmany e Pereira é possível conferir a entrevista no "Blog do Brasilianismo".






Boa leitura!