O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Para não sermos engolidos de vez pelo desânimo que este momento de regressão histórica nos provoca, entendo que trabalhar conceitos é importante para
avaliar qual política estará posta na mesa, por assim dizer, através do Centro
de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN), que entrará em funcionamento na cidade de Campos dos Goytacazes-RJ. Esforço inútil? A meu ver, não,
pois ideias e valores estão presentes no comportamento efetivo das pessoas em
geral (e dos gestores públicos em particular) e guardam sua eficácia social
justamente quando deixam de ser submetidos a um exame consciente. Conceitos
então podem ser vistos como os “pedais” do conhecimento e este, por sua vez,
como uma construção coletiva da qual participamos conforme visões de mundo que
também são objeto de reflexão.
Para definir esse “objeto”, dialogo com a abordagem
de Célia Lessa Kerstenetzky sobre políticas sociais[1], chamando atenção para as confusões sobre
o que venham a ser focalização e universalização. Para tanto, exponho o quadro conceitual com o qual Kerstenetzky busca superá-las, já que elas atravancam o debate sobre a retomada do “Restaurante Popular”. Interessa discutir possíveis enquadramentos do estilo de
política social que tende a prevalecer no seu substituto, o CESAN.
Justiça de mercado e Justiça redistributiva
Segundo Kerstenetzky, no debate público brasileiro há uma
tendência a correlacionar automaticamente o princípio da universalização com a
garantia de direitos sociais e o da focalização com uma noção
"residualista" de justiça. Estaríamos aqui diante de modelos de
política social que seriam, aparentemente, impassíveis de se complementarem.
Porém, tal visão bipartida das políticas sociais se mostra limitada diante dos
arranjos institucionais com os quais lidamos.
Tais arranjos dizem respeito à maneira como se legitimam
noções de justiça na distribuição da riqueza com referência às duas
instituições mais importantes do mundo contemporâneo: Estado e Mercado. Em
torno delas, temos variadas linhagens do pensamento político e econômico
encabeçadas por duas orientações-chave: a justiça de mercado e a justiça
redistributiva.
Na primeira - justiça de mercado -, navegaríamos no velho
leito do liberalismo econômico. De acordo com esse princípio de justiça social,
a distribuição de vantagens econômicas seria decorrente das livres transações do
mercado sem maiores questionamentos quanto à desigualdade material entre homens
e mulheres. Estes(as), na qualidade de pessoas adultas que foram educadas para
o exercício da livre escolha, teriam a seu dispor a “mão visível” do
Estado para garantir o direito à propriedade privada e o cumprimento legal dos
contratos, facultando-lhes a segurança jurídica necessária para se colocarem
à prova em uma economia de mercado que, assim reza a lenda, premiariam os mais
“responsáveis” em suas iniciativas pessoais.
Para os crentes de ontem e de hoje na ideia de mercados
autorregulados, sendo os indivíduos dotados de autonomia civil, a persistência
das desigualdades de renda poderia ser vista até mesmo como uma virtualidade do
capitalismo, na medida em que encontraríamos uma espécie de “auto-cura” para um
modo de produção sempre propenso a crises: remunerações desiguais serviriam de
estímulo ao trabalho e à poupança e, por consequência, elevariam a eficiência
econômica; alcançando-se maior eficiência econômica, obteríamos o crescimento
econômico, implicando assim em maior taxa de emprego e renda e, potencialmente,
em mais benefícios para os menos favorecidos. Soa familiar com a estorinha do
peixe e da vara de pescar, caro(a) leitor(a)?
Ironicamente, apostar que a civilização burguesa propicie
uma racionalização dos modos de vida capaz de conduzir mesmo quem esteja na pior situação de classe aos melhores resultados
econômicos é, no mínimo, frustrante
diante das não poucas ineficiências das operações do mercado, o que,
lembra Kerstenetzky, leva-nos a admitir que o “progresso material convive com
(e talvez mesmo parasite) a incerteza”[2] e que “não há como assegurar que
esforços serão recompensados e negligências punidas”[3].
Se estamos submetidos a um sistema econômico cuja
vitalidade advém da mudança incessante (“tudo que é sólido desmancha no ar”, já
dizia o velho Marx), o mal-estar social daqueles(as) que nunca tiveram escolha alguma
será mais cedo ou mais tarde objeto de responsabilidade pública. Na justiça de
mercado, essa responsabilização assume a forma de uma rede subsidiária de
proteção (renda mínima, seguro-desemprego entre outros) que dê conta da
“pobreza imerecida”. Nada mais nos restaria senão a perspectiva de focalização
como "resíduo".
Contudo, a política social pode ser entendida como algo
além da provisão de um seguro contra riscos sociais imprevisíveis. Para
Kerstenetzky, podemos seguir uma orientação alternativa – a justiça
redistributiva – que nos permita pensar a focalização tanto “como
condicionalidade” quanto “ação reparatória”.
No âmbito da justiça redistributiva, a focalização “como
condicionalidade” se traduz em um problema de tecnologia social: encontrar o
foco correto para a solução de um problema específico, promovendo assim
eficiência à ação governamental. Apesar da aparente simplicidade dessa
perspectiva, Kerstenetzky adverte que aplicá-la requer aprimorar o diagnóstico local
sobre o estado de privação que se quer superar. Se, por um lado, priorizar a
eficiência do gasto social “ajustando” o foco favorece com o tempo a provisão
de recursos para outras demandas sociais urgentes, por outro, em certas
circunstâncias, a melhor maneira de realizar o interesse público é subverter o
sentido mesmo da focalização:
Às vezes, a busca do foco correto pode resultar no formato
contra-intuitivo de incondicionalidade, como quando se atinge melhor os mais
necessitados estendendo-se um benefício a todos dentro de um determinado
território, supostamente razoavelmente homogêneo, e não apenas aos mais
necessitados (em que se poupam, por exemplo, os custos de monitoramento). Neste
caso específico, a melhor forma de encontrar o foco é “universalizar”[4].
Já na focalização como “ação reparatória”, teríamos uma
torção de sentido quanto à perspectiva da focalização como “resíduo” que
discutimos no âmbito da justiça de mercado. Homens e mulheres sem trabalho e
renda não seriam aqui produto de eventuais ineficiências de uma
economia de mercado, mas a confirmação de que nela uma desigual oportunidade de
realização nas gerações passadas é transmitida à geração atual, tornando
direitos universais formalmente iguais uma ilusão facilmente desmentida pelos
fatos. Tornar então efetiva a igualdade de oportunidades requereria um
conjunto de ações que, destinado a grupos com demandas específicas, realizasse
uma contínua equalização da riqueza, aproximando dessa forma o “ideal
de direitos universais a algum nível decente de realização”[5].
Em sociedades marcadas por desigualdades abissais como a
brasileira, é pouco provável que políticas universais tenham êxito dissociadas
da focalização na política social, ratifica Kerstenetzky. Se tais políticas
redistributivas podem ter caráter compensatório ou estrutural, não há resposta
pronta. O que fazer então? Testar as noções de justiça de mercado e
de justiça redistributiva em cada cenário concreto. Desse modo, tais
categorias de análise auxiliam na tentativa de compreender o estilo de
política social que está se desenhando para o “Restaurante Popular” em Campos
dos Goytacazes-RJ.
Uma hipótese: considerando que os critérios
de renda para a gratuidade das refeições que estão delimitados,
até o momento, pelo crivo do CadÚnico e, por outro, que os
preços com ou sem subsídio podem vir a superar (e muito) o preço da refeição cobrado até 2017 no então Restaurante Popular, prevalece uma política calcada na justiça de
mercado. Diante da
"pobreza imerecida" - resultado das falhas do mercado em entregar
aquilo que promete aos crédulos no próprio esforço ou "mérito" ou
àqueles que, desalentados, já não acreditam em mais nada porque simplesmente
"não há vagas" -, atrela-se um restaurante popular a uma rede (incompleta) de proteção sem maiores preocupações quanto ao condicionantes locais de uma pobreza que é estrutural.
Se tal hipótese se confirmar no decorrer do serviço
prestado no CESAN, é razoável que se discuta a possibilidade de conjugar tal
serviço com outras modalidades de focalização mais afeitas à justiça
redistributiva. Ora, a julgar pela regressão dos indicadores sociais com a agenda ultraliberal à qual foi submetida o país com Michel Temer e agora Jair Bolsonaro [6] - Reforma Trabalhista,
Emenda Constituição nº 95 -, o tamanho do "resíduo" deixado para trás por um mercado
deixado sem freios à sua própria lógica é muito maior do que a Prefeitura supõe
e, desse modo, pensar a focalização como
"condicionalidade" ampliaria o escopo dessa política de segurança
alimentar e nutricional para segmentos da população cujo direito ao trabalho e
à renda lhes é negado pela crônica falta de transporte coletivo, pela pouca integração da área urbana de Campos dos Goytacazes com
a sua imensa área rural, entre outros gargalos já conhecidos.
Segurança alimentar e nutricional é uma ação intersetorial
e, como tal, não se deixa aprisionar por uma visão minimalista das políticas
sociais; logo, há muito o que investigar sobre a questão social em Campos dos
Goytacazes-RJ a partir de um diagnóstico local que, parafraseando Albert
Hirschman, evite confirmar que "políticas para pobres sejam sempre
políticas pobres". Cautela necessária ante uma cultura política que ainda
não produziu em nossa cidade uma via programática que supere a insegurança
econômica das camadas baixas da população como moeda de troca sempre à mão na
sucessão de governos.
[1]
KERSTENETZKY, Celia Lessa. Políticas Sociais:
focalização ou universalização?. Rev. Econ. Polit., São
Paulo, v. 26, n. 4, p. 564-574, dez. 2006. Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572006000400006&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 03 jan. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31572006000400006.
[2] Op. cit., idem., p.565.
[3] Idem.
[4] Op. cit., idem., p.570.
[5] Op. cit., idem., p.571.