sábado, 21 de fevereiro de 2015

Apresentação - Autopoiese e Virtu

Apresentação - Autopoiese e Virtu

George Gomes Coutinho

Eis que retorno ao mundo dos blogs. Prevalece aqui a máxima heraclitiana: nem o autor, nem os blogs e tampouco os softwares são os mesmos. Quando comecei a dialogar com as chamadas “novas tecnologias de informação”, hoje já não tão novas assim, adjetivavam a Web de “1.0”. Até pouco tempo atrás já se tinha atingido a “web 2.0” onde novas funcionalidades e possibilidades de interação se apresentam em uma desconcertante velocidade. Talvez o diagnóstico de “mundo em descontrole” de um Giddens no  aparentemente já longínquo final da década de 1990 tenha lá sua validade. Todavia, as ingenuidades ou entusiasmos descalibrados de outrora hoje dão lugar a lúcidas leituras nas ciências sociais que a um só tempo indicam tanto as mudanças quanto também as permanências, para o bem ou para o mal.

É neste zeitgeist que este blog se insere. Trata-se de um projeto despretensioso, dado o caráter de “artesanato intelectual” que o guia, onde se aposta que as ciências sociais podem fornecer chaves interpretativas valiosas para o “homem desbussolado”[1] dos dias que correm. Decerto, de forma não menos relevante que as ciências da alma, as ciências da sociedade são, desde o século XIX, observatórios atentos deste palco sem um diretor consciente que é o mundo. A cumulatividade da produção da sociologia, ciência política e antropologia, pelo seu caráter de “dupla hermenêutica”, é mobilizada pela própria sociedade em seus esforços de auto-interpretação, adentrando o cotidiano, noticiários e best-sellers. Porém, justamente pela necessidade do retorno da reflexividade, aqui no movimento de contrapelo, penso que é uma tarefa primordial nos dias que correm que as ciências sociais problematizem seu impacto na esfera pública em prol de um projeto de sociedade radicalmente humanista. Até porque, a redução sociológica quando utilizada de forma pouco consequente produz mais ônus que bônus. Digo isto após uma certa perplexidade que me atingiu ao acompanhar a produção da mídia nos últimos tempos. Honestamente, não imaginava que poderiam utilizar conceitos sociológicos, mesmo que de forma pastichizada, para justificar argumentos xenofóbicos, racistas e congêneres.

Com este conjunto de “boas intenções”, onde dizem ser o inferno o espaço privilegiado das mesmas, pretendo trazer algumas reflexões especialmente inspiradas na sociologia e na ciência política. Antes que a lembrança da antropologia se manifeste, peço  paciência ao leitor. Meus estudos se dão em um período de alta especialização e por isso me sentirei mais a vontade no terreno acidentado de minha formação que se deu concentrada nas duas grandes áreas das ciências sociais supracitadas. Trata-se de uma honesta confissão de limitação intelectual. O que não impedirá a apropriação de outras fontes de conhecimento sempre que o senso de perigo deste sociólogo/cientista político estiver suficientemente adormecido. Lembrando a máxima de  Hayek, se para um economista ser um bom economista ele precisa ser mais do que um economista (perdoem pela proposital redundância), acredito que o mesmo se aplica para todas as outras áreas  de conhecimento.

Para um primeiro post, penso que é um gesto de delicadeza informar ao leitor duas grandes questões. Primeiro, o conjunto de temas que estarão aqui (re)interpretados. Em segundo momento, esclarecer o título do blog inspirado em dois conceitos que julgo fundamentais e são estruturantes dos esforços que se seguirão neste work in progress.

O primeiro ponto: as atenções estarão voltadas prioritariamente para questões de cunho  político. Ao pensar a política, não estou restringindo essa atividade ao seu aspecto formal ou institucional, nem à pequena e tampouco à grande política. Se a política tem por razão de sua existência a tomada de decisões dotadas de caráter vinculante para a sociedade, muitas vezes pensar as franjas da formalidade dos processos de tomadas de decisão é ajudar a compreender a formação da ação politicamente orientada, seus conteúdos, projetos em disputa, elementos simbólicos, etc.. Se não tenho a intenção de aprisionar o homem ao zoon politikon aristotélico e compreendo a “relativa autonomia” das outras facetas da ação humana, por outro lado compreendo que por vezes é no trabalho de composição analitica “indireta” que podemos derivar boas e importantes reflexões sobre os fenômenos políticos. Sobretudo se compreendo que a esfera política interpreta a sociedade tanto quanto é interpretada por esta, não obstante sua especificidade enquanto esfera que a demarca e a singulariza. Por isso, também a face mais evidente do “fazer política” estará presente. Ao mesmo tempo, concordando com Fredric Jameson[2], reconheço a presença de um “inconsciente político” em toda produção humana dotada de caráter simbólico. Este “impensé” encontrável na cultura em sentido amplo, também estará presente em diversas ocasiões e análises.

Após esta explicação ao menos ganho uma boa desculpa teoricamente orientada para discutir sobre arte, cotidiano, economia e outros bichos. Assim, embora a política seja o tema privilegiado, outros tantos surgirão dado que o autor mantém uma cognição seletivamente imprudente. A forma que adotarei será prioritariamente de crônicas. Imagino que é o mais adequado para um blog com estes objetivos, embora que por vezes irei me arriscar em outros formatos sempre que julgar necessário. Afinal, compreendo que aqui estou fazendo também um projeto de “divulgação científica”, tarefa que julgo imprescindível para o fomento de uma cultura de ciência, seja hard, soft ou so so no Brasil do século XXI.

Agora o momento mais delicado. Explicar, mesmo que de forma sucinta, os dois conceitos díspares no tempo e no espaço que funcionam como estruturantes neste blog. O primeiro deles, a autopoiese, encontra seu nascedouro no neosistemismo da segunda metade do século XX, especialmente capturado para a sociologia contemporânea pelo alemão Niklas Luhmann (1927-1998). A virtú, parceira conceitual da fortuna, é chave interpretativa ascética do realismo político de Nicolau Maquiavel (1469-1527) .

 A escolha da autopoiese se dá por um princípio hermenêutico. Ou seja, o conceito, explícito ou não, me auxilia a interpretar a realidade. Maturana e Varela, dois biólogos chilenos, provavelmente levaram a patamares radicais a questão de que todos os componentes da realidade de alguma maneira “interpretam” e conhecem seus arredores. Porém, não o fazem de forma neutra e asséptica. O fascinante é que esta interpretação, onde conhecer o mundo é um elemento inelutável da própria vida, ocorre a partir de seus próprios termos, sendo a natureza “cognoscente”. Ou seja, vivemos em um mundo complexo  onde o observador é observado sendo estas posições relativas. Afinal, onde todo(as) são observadores, somos objeto de curiosidade tanto quanto nos relacionamos com esta realidade com o mesmo ímpeto.

Luhmann em sua vasta produção aplica este conceito à sociedade. Compreendendo a realidade como uma totalidade formada de observadores mútuos auto-referentes (autopoiéticos), onde justamente daí podemos compreender a complexidade de uma sociedade em um movimento constante de interpretações, interferências, seletividade, contingências, qualquer ingenuidade hermenêutica é desautorizada. Neste sentido, uma noção de “totalidade estrutural/estruturante” subjaz ao que pretendo fazer aqui neste exercício do blog. Embora que, como o próprio Luhmann reconheça, nem sempre estas correlações serão explicitadas em toda análise. As noções de autopoiese, complexidade e totalidade muitas vezes serão o “non-dit”. Porém, não quer dizer que não estarão presentes.

Já a virtú maquiaveliana é nada menos que a luz interior, disciplinada, ascética de onde o homem moderno retira suas energias. Maquiavel, justificadamente reconhecido por fazer uma leitura mundana e dessacralizada da política e de suas instituições, compreendeu em sua labiríntica produção que a virtú funciona como um elemento de sobrevivência para o homem político diante dos enfrentamentos existentes na constelação de interesses. Evidentemente sem a fortuna, a boa sorte proveniente das contingências conjunturais, projetos políticos podem não obter êxito. Mas, a virtú é realmente a única grande energia manipulável pelo indivíduo. Nem boa e nem má em termos absolutos, a virtú não idealizada em Maquiavel implica a capacidade de agir em toda e qualquer circunstância e em acordo com a necessidade.

Retomando a síntese que direciona os esforços deste blog, minha leitura do mundo não é desinteressada. Faço este exercício de forma conscientemente autopoiética, tendo por ponto de partida hermenêutico as ciências sociais. Por outro lado, não sendo de forma alguma uma atividade pautada pelo mera opinião, esta virtú é colocada como meta ética de uma prática que se pretende sistemática, ou até mesmo um  ethos que julgo imprescindível para todo e qualquer analista. Sem mais delongas, por isso o nome: autopoiese e virtú. 

Antes de finalizar, um breve agradecimento. Primeiramente ao Marcio Malta, o “Nico”, cartunista e colega de ciência política do Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos que forneceu generosamente o banner que é nosso cabeçalho. Igualmente agradeço aos companheiros de “Outros Campos”, experiência exitosa no espaço virtual que contribuiu de forma singular com as tentativas de enriquecer a esfera pública da região Norte Fluminense entre os anos de 2008 e  2010. Deste momento pretérito cooptei o Paulo Sérgio Ribeiro Jr. que neste início de 2015 se encontra em Alagoas trabalhando. O colaborador eventual supracitado promete aparecer sempre que puder. Ressaltando o experimentalismo deste blog, não duvido que outros(as) possam também colaborar. Ainda, agradeço afetivamente à Angellyne que tem sido uma incentivadora entusiasmada de meus projetos profissionais e pessoais.

Por fim, aos que tiverem interesse e paciência de acompanhar as incursões neste espaço,  lhes desejo boa(s) leitura(s) e não se acanhem em participar com sugestões, críticas, etc..



[1]             Termo utilizado alhures pelo psicanalista Jorge Forbes. Recomendo para o leitor a leitura de “Você quer o que deseja?” de Forbes para conhecer o homem desbussolado e outros personagens.
[2]             Refiro-me ao livro “O inconsciente político” do crítico norte-americano Fredric Jameson.