domingo, 26 de fevereiro de 2017

Nassar versus Freire

Nassar versus Freire *

George Gomes Coutinho **

No último dia 17 de fevereiro ocorreu uma cena que funciona como uma síntese incômoda do momento político brasileiro contemporâneo. A ocasião era a entrega do Prêmio Camões. Antes de prosseguir irei resumir algo sobre a premiação.

O Prêmio Camões, instituído em 1988, é um prêmio atribuído a autores que contribuíram de forma absolutamente relevante para o enriquecimento do patrimônio cultural e literário da língua portuguesa.  Portanto, dele concorrem escritores dos três continentes onde a língua portuguesa é praticada: África, Europa e América. Dentre os seus ganhadores figuram os incontestáveis Mia Couto, José Saramago e Jorge Amado. Ainda o prêmio, para se tornar viável, conta com contribuições financeiras de Brasil e Portugal e é considerada a premiação literária mais importante da língua portuguesa. Contudo, notem que se trata de uma contribuição do Estado português e brasileiro. Porém, é uma premiação não estatal, dado que na prática o júri, composto por 2 brasileiros e 2 portugueses, deve se guiar pela independência e, como não poderia deixar de ser, pelo juízo acerca do impacto simbólico e estético de uma determinada obra em seu conjunto. Por esta razão encontramos autores que trafegam em diferentes pontos do espectro político dentre os laureados.

Raduan Nassar, paulista de Pindorama, autor de “Lavoura Arcaica” e “Um copo de cólera”, foi indicado em maio de 2016 pelo júri do Prêmio Camões. Nassar situa-se no campo progressista e coerente com seu posicionamento político utilizou a solenidade para expressar seu desconforto com o governo brasileiro. Em sociedades democráticas trata-se de algo comum e em premiações deste quilate ocorrem manifestações deste teor ao redor do mundo. Porém, Roberto Freire, o ex-comunista e titular do Ministério da Cultura não pensa assim. Sua resposta, tal como em uma discussão de boteco, foi truculenta, ameaçadora e grosseira: uma defesa acrítica e irresponsável do governo que partilha. Não sendo suficiente, atacou de forma descortês o homenageado frente a um público transnacional. Se o Governo Temer fosse sério Freire seria defenestrado da pasta da cultura no dia seguinte pelo seu comportamento digno de um “cão de guerra”. E não foi.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 25 de fevereiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Meu bunker, minha vida

Meu bunker, minha vida *
George Gomes Coutinho **
Na última semana, entre quinta e sexta-feira, ocorreu um fenômeno preocupante para se acompanhar enquanto sociólogo na sociedade de massas: uma onda coletiva irracional de pânico. A onda foi absolutamente fiel aos meios e modismos de comunicação e informação dos dias que correm e houve a utilização plena do cardápio digital em Campos dos Goytacazes. Áudios de whatsapp onde supostamente uma magistrada, que certamente não se identificou, aconselhava a todos(as) os(as) cidadãos(as) e ficarem em suas casas. Fotos de eventos ocorridos em outros momentos históricos igualmente circulavam apresentadas como prova inconteste e tal como se estivessem ocorrendo em tempo real. Em termos práticos comerciantes esvaziaram vitrines, escolas particulares cancelaram um dia letivo e a população foi para supermercados e farmácias comprar alimentos, remédios, produtos de higiene e afins. Um cenário distópico digno de séries e filmes apocalípticos.
Pensei que um lema adequado para o evento seria “meu bunker, minha vida”. Diante de um cenário de caos a reação imediata foi a individualização radical da proteção, mesmo que inócua. Se o temor seria do movimento da horda fico a pensar se meramente se trancar em casa produziria bom resultado. O medo se traduziu em uma reação digna dos personagens do cineasta de terror George Romero em seus filmes de zumbis. Haveria o “nós” e “os outros” sem qualquer possibilidade de diálogo. Fujam para as colinas! No dia seguinte, tudo sob controle.
Entre o trágico e o cômico pensei se não haveriam lições a serem tiradas deste episódio. Irei apresentar uma que é urgente. Em uma sociedade onde todos(as) produzem informação, nunca foi tão vital a checagem dos fatos, o confronto com outras fontes, etc.. Práticas simples incentivadas pelo pensamento crítico e pelo bom senso que mantém a sanidade mental.
Por outro lado uma reflexão grave. A onda de pânico motivada pelo boato da paralisação das atividades da Política Militar do RJ revela algo seríssimo. Aparentemente atingimos uma débâcle civilizatória onde o aparato de violência estatal se apresenta como o único garantidor do tecido social na conjuntura. Péssimo sinal.
* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 18 de fevereiro de 2017
** Professor Adjunto de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Temer: um Gilmar para chamar de seu?

Temer: um Gilmar para chamar de seu? *

George Gomes Coutinho **

A figura de Gilmar Mendes se tornou uma espécie de ícone no Supremo Tribunal Federal. Decerto ele representa parte da sociedade brasileira desde que foi indicado por Fernando Henrique Cardoso em 2002. Gilmar espelha a própria manutenção do status quo em sua carreira na mais alta corte brasileira e empunha bandeiras de uma parcela minoritária da população que se recusa a morrer: latifundiários, empresários dotados das “más práticas” e grande mídia monopolista. Ou seja, Gilmar simboliza o atraso e por este é teleguiado e legitimado.

Se a judicialização da política tem causado caos, a politização da justiça não tem sido menos inofensiva. Afinal, como disse a insuspeita jornalista Eliane Cantanhede em uma entrevista de alguns anos atrás, Gilmar seria “tucano demais” em sua atuação no STF. Contudo, mesmo sabendo que o STF nos últimos anos se tornou um espaço de militância política e deixou cair por terra a aura de mero guardião da Constituição, não deixa de causar espécie a indicação de Alexandre Moraes por Michel Temer.

Estaria Temer em busca de um Gilmar para chamar de seu?

Neste momento Temer conta com pouca resistência de atores políticos decisivos. Nem a grande mídia e tampouco o legislativo irão oferecer resistência a suas mais ousadas proposições. Temer sabe jogar o jogo, algo que Dilma desistiu de fazer e por esta razão sofreu o impeachment. Provavelmente Moraes será aceito. Mas, não custa pensar se a indicação de Moraes não soa como a pá de cal na aura imaculada que se mantém de forma incompreensível no STF.

Moraes tem apenas 49 anos. Ficará no STF por 26 anos se não mudarem novamente de forma casuística as regras de aposentadoria. É dotado de um perfil nada discreto, o que inclui uma carta de clientes que vai desde a Transcooper, relacionada ao PCC, até Eduardo Cunha. Para além disso se tornou uma espécie de garoto propaganda da chamada “guerra às drogas”, uma metodologia de enfrentamento das drogas ilícitas que contribuiu para o cenário de guerra civil nas grandes capitais brasileiras e pela superlotação dos presídios. Como se não bastasse, era filiado ao PSDB até esta semana. Por tudo isso, ganham os conservadores. Perde o Brasil.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 11 de fevereiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Nota Breve de Conjuntura – Nova seção no blog

Nota Breve de Conjuntura – Nova seção no blog

George Gomes Coutinho * 

Acompanho a estonteante conjuntura social e política do Brasil nos últimos tempos em muito motivado pela acelerada velocidade deflagrada a partir das mobilizações de rua do ano de 2013. Nesse ínterim por vezes sou instado por colegas, imprensa local ou amigos próximos a refletir a respeito. Por esta razão eu decidi iniciar uma nova seção no blog.

Até então o “Autopoiese e Virtu” funcionava majoritariamente como depósito virtual e caminho de publicização do que produzo para o jornal campista “A Folha de Manhã”. Desde julho de 2016 publico na página 04 do jornal aos sábados, junto de outros colaboradores, onde apresento pequenos artigos sobre temas candentes.  A função de “depósito virtual” prosseguirá por aqui. Contudo, irei trazer novos apontamentos, não menos assistemáticos, com a seção “Nota Breve de Conjuntura”.

Na nova seção não haverá métrica ou periodicidade como nos textos que produzo para a Folha onde, conforme compromisso assumido com o editor, replico todos aqui no blog no dia seguinte da edição impressa do jornal.  No “Nota Breve de Conjuntura” irei seguir o caminho de inquietações mais ou menos curtas e igualmente urgentes no calor do momento.

Por fim, ainda continuo acreditando na contribuição de uma sociologia pública, não enclausurada no espaço acadêmico, onde esta pode funcionar como mecanismo interpretativo alternativo ao mero senso comum.  Foi isto que me mobilizou a aceitar o convite da Folha e prosseguirá como valor a guiar a nova seção do blog. Obviamente não estou secundarizando a produção rigorosa e sistemática de análises, estudos e pesquisas no que se compreende como práticas necessárias e inelutáveis do establishment universitário. Pelo contrário. Considero que as tarefas, sejam as da Universidade ou de uma sociologia com vocação pública, devem ser necessariamente amalgamadas em uma realidade periférica como a nossa.


Conto com o interesse e a leitura crítica dxs visitantes do blog.

* Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Desemprego ampliado

Desemprego ampliado*

George Gomes Coutinho **

Índices são construções de agências, instituições e pesquisadores que tem por objetivo traçar um diagnóstico sobre determinado fenômeno ou simplesmente permitem operacionalizar um conceito abstrato. Almejam mensurar um ou outro. Usualmente são aplicados em diversos momentos em uma trajetória temporal/histórica, o que permite a possibilidade da comparação de um ano ou mês X com ano ou mês Y. São ainda mais interessantes quando há dados que permitem sua aplicação em diferentes nações, algo que igualmente incentiva o exercício comparativo.

Um índice de qualidade permite diversas aplicações e os considero tanto melhores, para além do já exposto, quando agregam variáveis que realmente importam e não escamoteiam o que pretendem mensurar. É o caso do índice de desemprego ampliado publicado pelo Banco Credit Suisse, cuja sede é em Zurique/Suíça. Os dados do último trimestre de 2016 colocam o Brasil na sexta posição dentre os países analisados. O primeiro lugar do ranking está com a Grécia, justamente o país que implementou ao pé da letra as medidas recessivas que vêm aplicando por aqui.

A taxa de desemprego ampliado brasileira é, no período, de 21,6%. Para o IBGE a taxa de “desocupação” está em 12%.  Portanto, os números do Credit Suisse são quase o dobro dos apresentados pelo IBGE.

Cabe notar que o índice aplicado pelo Credit Suisse condensa o seguinte conjunto de elementos: 1) considera os que procuram uma vaga no mercado de trabalho e não encontram; 2) inclui os que desistiram de procurar uma vaga por se sentirem desalentados com a conjuntura; 3) agrega todos os que estão subutilizando sua força de trabalho fazendo os famosos “bicos”.

Em termos numéricos, 23 milhões de pessoas da força de trabalho nacional encontram-se na situação descrita em uma conjuntura política conservadora onde medidas de precarização da relação patrão X empregado tem sido alardeadas como possíveis soluções milagrosas. Desconheço encaminhamento mais covarde. Só irão aprofundar o desemprego ampliado.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 04 de fevereiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes