segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Os perdedores

Os perdedores*

George Gomes Coutinho **

“De fato, sou um loser. Contudo, valeu a pena ter brigado pelas coisas nas quais eu acreditava, mesmo que o preço fosse o fracasso. A ética me consolou nas derrotas políticas. E eu sempre me lembrava de que, afinal (mal comparando), Antonio Gramsci e Walter Benjamin também foram losers. O conceito que cada loser faz de si mesmo depende da avaliação que ele faz do que pretende fazer. Se não pretende fazer nada, já está objetivamente acumpliciado com os winners.”.

Com estas palavras Leandro Konder (1936-2014) avaliou sinteticamente sua própria trajetória. É a auto-análise publicada em suas memórias na primeira década deste século. Konder foi militante do PCB, o Partidão.

O filósofo petropolitano resumiu certo sentimento de frustração de parte da esquerda no Brasil. Sentimento este que se atualiza contemporaneamente. Por vezes a cada dois dias.

Para mim um dos pontos culminantes do ano até agora (faço questão de ressaltar o “até agora”) foi um artigo publicado no jornal francês Liberátion no último 20 de novembro. O texto intitula-se Brésil, Le nouveau labo neoliberal, uma arguta análise de conjuntura da trinca Dany-Robert Dufour, Frédéric Vandenberghe e Carlos Gutierrez. Doeu. Não pelo fato dos autores estarem equivocados. Quem nos dera que estivessem.

“Brasil, o novo laboratório neoliberal” de Dufour-Vandenberghe-Gutierrez é um excelente resumo crítico para o leitor progressista estrangeiro. Reconhece o golpe de Estado de “tipo novo” em 2016, aponta para o relativo pouco apreço pela democracia entre nós e pinta um quadro realista e tétrico do governo Temer, um presidente que governa com 5% de popularidade e contra a população. Ainda, dentre outras tantas cacetadas, acerta ao associar nosso país sob a Nova Lei Trabalhista a um experimento neoliberal no estilo de um Pinochet. Teríamos resusscitado até mesmo o neoliberalismo dado como morto após o cenário de terra arrasada deixado em praticamente todo o globo, algo que concordo com os autores. Diante de tudo isso o que dizer? Perdemos. Todos. No espírito de um Leandro Konder. Ao menos por enquanto.

* Texto publicado em 25 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

Chamada Cineclube Marighella - O Jovem Karl Marx + Debate ‘O marxismo no mundo de hoje' - 02/12/2017


O Jovem Karl Marx + Debate ‘O marxismo no mundo de hoje’


No próximo sábado (2/12), o Cineclube Marighella exibe ‘O Jovem Karl Marx’, longa de Raoul Peck - mesmo diretor de 'Eu Não Sou Seu Negro' (2016) - sobre um período fundamental na vida do pensador alemão eleito pelos ouvintes da rádio britânica BBC, em 2005, como “o maior filósofo de todos os tempos".

Pois foi entre as lutas e deportações, tristezas e alegrias, que marcaram sua vida entre o fechamento do jornal ‘A Gazeta Renana’, em 1842, e o lançamento do ‘Manifesto Comunista’, em 1848, que Marx formulou os fundamentos do seu materialismo histórico.

Afinal, “até agora todos os filósofos apenas interpretaram o mundo, mas é preciso transformá-lo”. É o que afirma Marx ao amigo Engels após noite de bebedeira, num dos momentos marcantes do filme.

Além de mostrar o homem por trás do mito que provocou amor e ódio a ponto de inspirar a divisão do mundo em dois polos rivais, o longa de Peck segue a trilha da biografia ‘Amor e Capital’, de Mary Gabriel, ao chamar atenção para a importância não apenas do parceiro Engels, mas também de sua esposa Jenny, enquanto fortaleza afetiva e brilhante crítica de seu trabalho.

A autoria da obra de Marx, portanto, não pode ser atribuída apenas ao próprio, mas também a Jenny e Engels. Trata-se de uma obra coletiva, construída com sofrimento, esperança e afeto. Nada mais coerente para quem acreditava que a união dos trabalhadores poderia levar a um mundo de iguais.

É esse retrato sensível e cuidadoso da juventude do trio que o público campista pode esperar da exibição de ‘O Jovem Karl Marx’ que o Cineclube Marighella promove no dia 2/12, no Ponto B Restaurante. Em seguida, tem debate com o sociólogo Nelson Crespo, do IFF, e com George Coutinho, professor de Ciência Política da UFF/Campos.
 
Data
Sábado, 2 de dezembro de 2017

Local
Ponto B Restaurante
Rua Baronesa da Lagoa Dourada, N° 68  - Campos dos Goytacazes-RJ * **
 
* Vamos dispor de grande espaço reservado exclusivamente ao Cineclube Marighella. Cada um paga apenas o que consumir, mas é importante ressaltar que a consumação não será obrigatória. Quem quiser apenas assistir ao filme e participar do debate deve se sentir à vontade.

** Em virtude do horário de verão, o evento começará às 19h, iniciando a exibição do filme às 20h.
 
Evento no Facebook:   
https://www.facebook.com/events/617597795077259/
 
PROGRAMAÇÃO

19h – Início do evento

20h – Exibição do filme ‘O Jovem Karl Marx’ (2017)

22h – Debate aberto: ‘O marxismo no mundo de hoje’
           Com participação de

          - Nelson Freitas,
                            sociólogo e professor do IFF/campos.

          - George Coutinho,
                             prof. de Ciência Política na UFF/Campos.
          
* Classificação indicativa: 12 anos
 

(21) 995893877 - Léo Puglia
(22) 99864-0280 - Gustavo Machado

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tudo novo de novo? - Breves reflexões sobre a ação coletiva

Tudo novo de novo?* - Breves reflexões sobre a ação coletiva**

George Gomes Coutinho ***

Quando eu elaborava meu primeiro trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e carinho que tenho por ele.

Voltando ao início deste século, minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública. O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental. Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.

Na conjuntura atabalhoada em que vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou “pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor, justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do Zé: quais os móveis?

Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos.

Antes de prosseguir, venho declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as) que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.

Prosseguindo, se os interesses demarcam a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos, de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.

Nas “Diretas” o contexto explica. Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou o processo de perda de legitimidade dos militares no poder.  Neste ponto da história o que era um movimento perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

O movimento da “Diretas” foi um movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna para o momento.

Também o “Fora Collor” na década de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado. 

A questão é que o mundo mudou muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão. Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e de sustentabilidade digna dos nórdicos.  E os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século XXI.

Um outro ponto, ao qual não canso de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator. Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças tradicionais, um problema que não é só brasileiro.

O junho de 2013 no Brasil se insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?

Junho de 2013 foi um dos maiores testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan “Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros. Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades do Estado brasileiro.

Notem que por mais que tenham se apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador, os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.

Ali abriu-se uma caixa de Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação, etc..

Cabe notar que os movimentos da chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua” tornou-se um movimento homônimo.

Nesse ínterim uma pletora de questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses sentimentos difusos.

Nesse ínterim, já desde ação penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde liderado por Eduardo Cunha.

O que tornou os movimentos de massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.

Contudo é difícil dizer, conforme afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de 2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e carente de legitimidade.

O que ficará disso tudo? Como já disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas. Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos.  Porém, os “móveis” da questão do Zé prosseguem.

* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.

** Texto publicado originalmente  em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/


*** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Querelas e acertos sobre o pensamento político brasileiro (parte 1)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Um dos aspectos mais instigantes do pensamento político brasileiro é a própria dificuldade de submetê-lo à observação quando delimitamos a ciência em sua autonomia cognitiva frente à política. O fascínio que desperta se deve ao fato de o trânsito profissional nessa área de estudos ser, quiçá, um alento para o cientista social em face da desarticulação dos discursos políticos com a crise das grandes narrativas (um então porto seguro da nossa subjetividade ante o esforço metódico de pesquisa) e, sobremaneira, com o comprometimento cada vez maior do nosso imaginário com o tempo intemporal das redes sociais virtuais. Valendo-me das últimas, creio que uma maneira de tatear o relevo do pensamento político sem fazer dele perfumaria é enquadrá-lo a partir da sistematização que Gildo Marçal Brandão lhe conferiu enquanto uma área temática que, no cenário brasileiro, mobiliza diferentes campos disciplinares nas ciências humanas[1].

Admitindo a relativa incipiência desse debate sem subestimar o potencial de autoconhecimento da sociedade nele observável, G. M. Brandão oferece um enfoque construtivo às asserções científica e humanista do trabalho intelectual nas ciências sociais. Com o intuito de dimensionar o escopo da dicotomia “ciência” versus “humanismo”, descrevo, também, a avaliação do estado de arte das ciências sociais sustentada por Fábio Wanderley Reis após décadas de institucionalização do seu ensino e pesquisa no Brasil[2]. Este breve desvio se justifica por possibilitar um contraponto exemplar do programa de pesquisa proposto por G. M. Brandão ao diagnóstico feito por F. W. Reis e, assim, evidenciar algumas nuances de suas escolhas epistemológicas. 

Comecemos pelo diagnóstico. Apesar da demonstração do vigor das ciências sociais brasileiras nas últimas décadas, verificável na diversificação do seu campo de atuação profissional e na ampliação de seu capital cultural institucionalizado em universidades e associações nacionais de pesquisa, F. W. Reis é cético quanto ao desempenho obtido no domínio teórico e metodológico, pois se cristalizou um modo de intelecção da realidade social, calcado num vezo “historicizante” dos problemas, que tanto revela quanto agrava lacunas do treinamento para a pesquisa. A indistinção de explicação sociológica e explicação histórica em muitas pesquisas empíricas desenvolvidas por cientistas sociais não lhes franqueia a expertise dos historiadores profissionais, o que leva ao cultivo de uma espécie de história do presente que nada mais seria do que um “descritivismo pobre e às vezes contente com sua pobreza”[3]. De maneira complementar, F. W. Reis aponta um quadro heterogêneo no tocante à consolidação de um padrão “científico” nesta esfera do saber especializado:


Creio que a Sociologia e a Ciência Política encontram-se claramente mais próximas do padrão “científico”, caracterizado pelo apego ao rigor, à sistematicidade, à generalização e à busca de cumulatividade, ao passo que a Antropologia e a História estariam, em geral, mais próximas do padrão “humanista” e “idiográfico” de trabalho, com a ênfase no qualitativo e no descritivo, a valorização da dimensão temporal ou histórica dos fenômenos e de suas consequentes “peculiaridades”, o relativismo, a confiança depositada na intuição e na “compreensão”(REIS, 1997).
             

A hierarquização das disciplinas subsumida naquela avaliação não consiste, necessariamente, em reduzir suas querelas metodológicas ao uso apurado de um conjunto de técnicas de pesquisa tornado unívoco pelo trabalho intelectual dito hard, mas aduz a uma perspectiva do conhecimento – referendada no mainstream da ciência política norte-americana – que propiciaria não desvirtuar as ciências sociais de sua “vocação teórica e nomológica” que, bem compreendida, subscreve uma concepção de método que não as desabona por sua proximidade com os “fundamentos lógicos da aceitação ou rejeição de hipóteses e teorias” das ciências naturais[4].

Sem dúvida, F. W. Reis vocaliza uma postulação do programa de pesquisa legado pelo sociólogo norte-americano Robert Merton: uma ciência social não é incompatível com a cumulatividade do conhecimento. Pelo contrário, pressupõe-na como meio de realização e meta precípua. O aporte teórico, requerido para construir um problema sociológico, deixa de depender do retorno ritualizado aos textos clássicos ao ceder lugar a sistemas conceituais e argumentos causais cuja validade se comprove através do encadeamento lógico-formal do processamento dos dados com os resultados alcançados. Estes últimos configurariam um conhecimento “verdadeiro”, posto que verificável pela confrontação de hipóteses e teorias, capaz de realimentar futuras pesquisas a partir de um novo patamar de inquirição da realidade nelas circunscrita. Neste sentido, a releitura de uma obra canônica tange o risco de subordinar a pesquisa a argumentos de autoridade que, no melhor dos casos, revelariam erudição suficiente para uma exegese igualmente canônica.

Tal “risco” seria elevado em nossa ambiência cultural, devido à obsessão pela questão nacional, que estimularia, por exemplo, revisões permanentes dos “clássicos” do pensamento político-social brasileiro. Quais seriam os móveis dessa obsessão? A rigor, vigora a pretensão de uma elaboração discursiva “autêntica” sobre a realidade brasileira, difundida com maior ou menor refinamento em nossas ciências sociais frente as suas congêneres europeia e anglo-americana que, não obstante, tende a gerar efeitos regressivos na elaboração teórica stricto sensu. Noutros termos, o sacrifício de nossa imaginação sociológica – decorrente da focalização de temas/obras situados localmente como critério de relevância sem rival na produção de conhecimento – traduz certo acanhamento diante do problema sociológico como problema teórico tout court. Logo, a importância secundária atribuída à teoria apenas reafirmaria os papéis intelectuais prescritos na comunidade científica internacional, que chancelam a estreiteza de nossas iniciativas na fronteira do conhecimento:


Nessa ótica [da ciência social produzida localmente], boa ciência é aquela que, com alguma reverência aos modelos e abordagens “quentes” do momento, se dirige a problemas empíricos e práticos prementes, os quais vêm a ser os problemas socialmente relevantes na sociedade em que vivemos. Omite-se, assim, a ponderação crucial de que não saberemos sequer definir com propriedade nossos problemas empíricos e práticos se não tivermos condições de refletir com sofisticação adequada a respeito deles, vale dizer, se não formos teoricamente sofisticados (REIS, 1997; colchetes meus).

F. W. Reis defende que a superação desses óbices se apóia numa reversão de expectativas quanto à noção de “singularidade” da formação social brasileira. Assimilá-la criticamente nos obrigaria a não confundir o esforço endógeno em teoria social com uma ideia equívoca de precedência do “Brasil” no preenchimento de nossa curiosidade intelectual. Esta, a seu ver, somente se converterá num recurso manejável para a participação paritária na produção de conhecimento em escala mundial se o caso brasileiro for um caso entre outros para os cientistas sociais nativos. Para tanto, o repertório aquilatável em nossa socialização científica prescinde de uma postura “cosmopolita e aberta” [5] e, não menos, de uma reconfiguração de nossas áreas temáticas segundo proposições generalizantes que, por um lado, não limitem seus respectivos trabalhos a “descrever” o Brasil e, por outro, liberem seus autores do encargo de fornecer insumos (casos concretos) para a teoria social cujos empreendimentos mais ousados continuam restritos a poucos nichos acadêmicos fora do país.  


Obviamente, o diagnóstico de F. W. Reis tem a anuência de parte da comunidade científica brasileira afeita ao postulado de objetividade com o qual, diga-se, o politólogo mineiro projeta uma via de aprimoramento para pesquisa social sem recuar diante das clivagens metodológicas entre as ciências humanas e as demais áreas de conhecimento. Entretanto, F. W. Reis baliza seu diagnóstico numa crítica que, embora incisiva, não nos motiva para além de uma espera (resignada?) pela efetividade do seu desiderato: “fortalecer a qualidade do treinamento teórico-metodológico, em termos que valorizem o modelo analítico e sistemático do trabalho científico” [6]. Doravante, seus apontamentos críticos a respeito dos déficits qualitativos das ciências sociais brasileiras permitem, curiosamente, introduzir o programa de Gildo Marçal Brandão (a parte final desse texto, que reservo para outra publicação), mesmo que a analogia com a limpeza de terreno feita pelo filósofo alagoano nessa área temática não obscureça sua divergência com o modelo de ciência social preconizado por seu colega mineiro.



[1] Cf. Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro, São Paulo, Hucitec, 2010.
[2] O diálogo com Fábio Wanderley Reis e Gildo Marçal Brandão deve-se à filiação de ambos à Ciência Política, disciplina pela qual tecem um panorama das ciências sociais brasileiras segundo pontos de vista alternativos e, por vezes, antagônicos. Todavia, não menos relevante é o cotejo das perspectivas de Elisa Pereira Reis e de Gilberto Velho na entrevista que concederam com Fábio Wanderley Reis há duas décadas sobre a situação das ciências sociais no país e que se revela flagrantemente atual. Cf. Elisa Pereira Reis; Fábio Wanderley Reis; Gilberto Velho, As ciências sociais nos últimos 20 anos: três perspectivas, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, n.º 35, out. 1997.
[3] Op. cit.
[4] Ibid.
[5] Ibid.
[6] Ibid.

sábado, 18 de novembro de 2017

“Reforma”, legitimidade e democracia

“Reforma”, legitimidade e democracia*

George Gomes Coutinho **

As reações diante da “Reforma” Trabalhista, sendo que esta ganhou efetividade uma semana atrás, não me causam estranheza. Ainda ocorrem debates quentes, com críticas severas por um lado e tentativas de reafirmar positivamente os supostos benefícios das mudanças na CLT por outro. No âmbito prático há agentes do judiciário que se recusam a tornar a “Reforma” norma. Há os entusiastas que abraçam as modificações na legislação acreditando que produzirão avanços significativos nas relações de trabalho brasileiras. Contudo, hoje não irei discutir o conteúdo das mudanças. Minha ótica será a do campo político.

O cenário descrito no parágrafo anterior é mais um dos alertas amarelos, quase vermelhos, desde as eleições de 2014. Observadores dentro e fora do país notam que as instituições brasileiras, tomando a conjuntura a partir de nossa última eleição presidencial, não gozam de plena saúde. O burburinho ruidoso e as resistências no espaço público tendo em mira a “Reforma” são mais e maus novos sinais. A legitimidade da “Reforma”, algo que vai além da legalidade e a incorpora, está em jogo desde sua proposição.

Que se trata de uma mudança estrutural nas relações de trabalho da população ninguém discute. Contudo, a opção de modificações “pelo alto”, em algo tão profundo e dotado de tamanho impacto no cotidiano, tem produzido as reverberações que estamos assistindo.

Oras,  legitimidade envolve a “dominação consentida”. Para que medidas dotadas de impacto coletivo tomem corpo no cotidiano é preciso que ocorra a aceitação, de forma ou de outra, entre os agentes. Nas democracias, onde formalmente se impõe a via pacífica e dialógica no exercício do poder, a legitimidade se torna um ponto ainda mais caprichoso e acresce complexidade ao sistema. Por essa razão dificilmente as tentações autoritárias irão desaparecer totalmente do imaginário político. Afinal, “enfiar goela abaixo” uma medida economiza tempo e saliva.

Voltando ao debate da “Reforma” Trabalhista, encontramos um processo de implantação sem amplo consenso formado. Vejo este caso específico como um ensaio do que pode vir por aí no caso previdenciário: mais uma proposta “pelo alto” que produzirá ruído. Muito ruído.

* Texto publicado em 18 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 11 de novembro de 2017

Butler: a bola da vez

Butler: a bola da vez*

George Gomes Coutinho **

A vinda da filósofa norte-americana Judith Butler (1956) no Brasil provocou reações que causariam perplexidade a qualquer habitante de uma comunidade que se pretenda civilizada. Afinal, a professora de Berkeley veio exercer seu papel de intelectual profissional. Butler não recomendou o estupro ou ameaçou alguém de morte. Não a vi fazendo apologia a torturadores. Não chutou uma imagem católica em rede nacional e tampouco teria ameaçado depredar terreiros de umbanda. Ela veio apresentar e discutir idéias, no formato de palestras, algo que seria tão natural quanto andar para frente nas democracias consolidadas. Mas, aqui a recepção contou com protesto na rua e o rechaço assinado por 360 mil pessoas contra sua presença.

O conceito de gênero, o grande tema da autora, nem penso que teria sido a única motivação da histeria de parte da direita totalitária brasileira. Na verdade, suspeito que Butler foi a bola da vez. Virão outros e outras caso não ocorra uma mudança cognitiva e valorativa em certos grupos. Explicarei minha perspectiva.

Lendo depoimentos em sites de notícias dos que consideram Butler persona non grata, destaco um que li no UOLNotícias em 07 de novembro na matéria assinada por Janaina Garcia: “Pouco importa se é a Judith Butler, porque ela poderia ser qualquer outra coisa". Diante disso me ocorreu imediatamente uma cena do documentário de 2012 “O Guia Pervertido da Ideologia” do também filósofo Slavoj Žižek (1949). Na cena, uma propaganda nazista alertava contra as “idéias degeneradas” propagandeadas por insidiosos judeus que colocariam em risco a família e o modo de vida alemão. Charles Chaplin (1889-1977) e Albert Einstein (1879-1955) aparecem na propaganda como exemplos de judeus igualmente “degenerados” e perigosos.

O que une Chaplin, Einstein e Butler no contexto de intolerância nazista ou no Brasil contemporâneo odiento? Os três personagens, muito diferentes entre si, corporificam representações de mundo que simplesmente não deveriam existir e precisam ser eliminadas na ótica de determinados grupos. São “portadores de idéias”. E idéias são desconfortáveis sempre que revelam algo oculto ou indesejado acerca das justificações que visam manter o status quo.

* Texto publicado em 11 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Ives Gandra: arauto da regressão histórica

Por Paulo Sérgio Ribeiro
                
Não, a história não anda para trás e toda e qualquer tentativa de desmenti-lo tropeça no ridículo. Dito isso, “regressão histórica” é mero recurso heurístico para abordar o trade-off reforma trabalhista/direitos individuais apregoado por Ives Gandra Martins Filho, presidente do Superior Tribunal do Trabalho (TST), órgão da Justiça Federal cuja missão institucional, em tese, seria a tutela do direito ao trabalho como princípio fundamental. "Nunca vou conseguir combater desemprego só aumentando direito" *, diz o ministro, justificando, na reforma trabalhista que entrará em vigor em 11 de novembro, a indenização por dano moral com valor proporcional ao salário do trabalhador. Na visão do jurista, reparar um dano à personalidade nas relações de trabalho prescinde dessa perfumaria que a modernidade esculpiu sob o nome de igualdade. O critério é, digamos, censitário: a dignidade da pessoa humana vale o que o mercado diz que vale. Tomo, uma vez mais, as palavras do jurista para exemplificar o que soa à primeira leitura inacreditável:

"Não é possível dar a uma pessoa que recebia um salário mínimo o mesmo tratamento, no pagamento por dano moral, que dou para quem recebe salário de R$ 50 mil. É como se o fulano tivesse ganhado na loteria" *.

Ganhar na loteria seria um acaso e não fruto do esforço, insinua Gandra em acolhimento ao liberalismo mais pedestre, típico dos que evocam a meritocracia para sequestrar do debate público as pautas relativas à questão social. De todo modo, considerando a reforma trabalhista como uma das injunções da ditadura civil que se instala no país exigindo cada vez mais esforços de mistificação dos seus vencedores, cabe não se dar por vencido no embate de ideias. Aqui, podemos voltar ao termo “regressão” enquanto uma espécie de revivalismo sociopata do século 19, quando os direitos de cidadania eram, no alvorecer da Revolução Industrial, tão somente a afirmação dos direitos civis do homem adulto de empreender a si mesmo, por sua conta e risco, na sociedade de mercado, limitando-se o poder estatal à manutenção da ordem legal dos contratos – feitos agora à imagem e semelhança do capitalista brasileiro ávido em inverter os polos da relação capital-trabalho, inaugurando, com um pé na economia real e outro no rentismo, o princípio protetivo do empregador – e da segurança pública.

Ora, se a situação de quase pleno emprego da última década ocorreu sem prejuízo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Gandra nada mais faz do que expor a condução política errática – ao menos, do ponto de vista de quem não dissocia o direito ao trabalho de um desenvolvimento autossustentado – de um governo ilegítimo cuja propaganda oficial alardeia a “retomada do crescimento”. Mas não se trata apenas de arbítrio senão de um ato de fé. Detendo-se o controle na alocação dos recursos de poder, o que impediria de empregá-los segundo a ideia de justiça social na qual se acredita? No caso em tela, estaríamos diante de uma decisão movida pela “ética da convicção”, que não tem outro fim senão o de manter e reforçar a própria convicção, já que a reforma trabalhista, nos termos da Lei 13.467/2017, é simplesmente impraticável.

No entanto, independente da justificativa que se queira atribuir a uma ideia ultraliberal de justiça social, a implantação da reforma trabalhista depara-se, inevitavelmente, com os paradoxos da política de que fala Weber, pois não seria menos razoável apoiar-se na “ética da responsabilidade”, que, na atual conjuntura, implicaria a auditoria da dívida pública - verdadeira sangria do orçamento da União - como contrapartida das medidas de racionalização do gasto público alardeadas como solução de todos os males. 

Weber asseverou que tais paradoxos confirmam a tensão entre esses dois princípios éticos, jamais vividos em separado pelo homem de “vocação política” cujo exercício só é reconhecível na medida em que jamais se alcança o possível sem se tentar o impossível. Além de empregos, tudo o que mais nos falta no momento é a vocação política de que nos fala o mais contemporâneo de nossos clássicos nas ciências sociais, notadamente quando a ordem do dia convida a enxergar com ousadia outro horizonte da ação: o restabelecimento da receita pública sem nenhum direito a menos para os trabalhadores do campo e da cidade.

* Jornal Folha de S. Paulo, 06/11/17.

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1933111-e-preciso-flexibilizar-direitos-sociais-para-haver-emprego-diz-chefe-do-tst.shtml

sábado, 4 de novembro de 2017

Aviõezinhos da República

Aviõezinhos da República*

George Gomes Coutinho **

Neste ano o sociólogo potiguar Jessé Souza (1960) lançou pela editora Leya o seu “A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava Jato”. O livro retoma e atualiza o conjunto de interpretações ousadas e originais elaboradas por Souza nos últimos 20 anos de sua produção sociológica, onde o exercício da crítica avassaladora dos fundamentos de justificação de nossa sociedade é o motor que guia o exercício intelectual. Para além disso, como se já não fosse pouco, “A Elite do Atraso” prossegue no exercício de intervenção pública em consonância com obras anteriores do autor: tanto em “A Tolice da Inteligência”, de 2015, quanto no ano seguinte em “A Radiografia do Golpe”, ambos os livros  lançados também pela Leya, Souza traduz para o leitor situado além dos muros da academia questões que conferem sentido ao Brasil enquanto Estado-Nação. Conferem sentido e mantém o status quo de uma das sociedades mais desiguais do planeta.

Na busca pela comunicação honesta e eficiente com o leitor não especializado, nosso autor envereda num esforço lingüístico quase olímpico. Metáforas e figuras de linguagem em geral são utilizadas tendo por meta a diminuição da distância entre a sociologia contemporânea avançada e o público alvo do livro. Destacarei uma delas. A do político como “aviãozinho”.

Souza, no seu esforço em desnudar as relações de poder do Brasil contemporâneo, faz uma analogia absolutamente didática entre elites/classe política e grandes traficantes/aviõezinhos do tráfico. Ora, os “aviõezinhos”, os que levam as drogas para os usuários, não são nem de longe os maiores beneficiários do esquema. São apenas a face mais visível e operacional de uma relação econômica onde o “dono da boca” retira seus dividendos. Justamente por sua visibilidade, não por caso, os “aviõezinhos” são os primeiros a serem mortos, presos ou humilhados.

A relação entre a classe política e a fatia dos 1% mais ricos brasileiros é análoga. A classe política “integrada” e precificada viabiliza os mecanismos institucionais e legais que mantém ou aprimora para os reais privilegiados o atual estado de coisas. A atuação política espalhafatosa é absolutamente funcional: oculta a face silenciosa e invisível de quem realmente dá as cartas.

* Texto publicado em 04 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Divulgando: Nota da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) sobre a vinda de Judith Butler ao Brasil

NOTA SOBRE A VINDA DE JUDITH BUTLER AO PAÍS E SUA LIBERDADE ACADÊMICA

Judith Butler 4
A filósofa Judith Butler é doutora em Filosofia pela Universidade de Yale, professora na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde leciona no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Teoria Crítica, é autora de 15 livros, dos quais seis traduzidos no Brasil por diferentes editoras. Butler é uma das convidadas do colóquio “Os fins da democracia - Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca por Soberania Popular”, promoção conjunta entre Berkeley e a USP, no qual estão previstas as participações de outros tantos professores oriundos de diferentes universidades, como Humboldt Universität, Boğaziçi University, Université de Paris VII, Universidade de Buenos Aires etc.
São pesquisadores e pesquisadoras norte-americanos, latino-americanos e europeus que, como nós, professores brasileiros e brasileiras, desenvolvem um trabalho intelectual cuja premissa é a liberdade de pensamento, a possibilidade de crítica, e a capacidade de colocar em debate questões relevantes para o conjunto da sociedade. Essa liberdade, no entanto, está ameaça por grupos que pretendem impedir a vinda de Butler ao Brasil, a realização do seminário e o livre diálogo de ideias.
Nós, da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), que agrega 111 programas de pós-graduação de Antropologia, Ciência Política, Ciências Sociais e Sociologia no país, viemos a público manifestar nosso apoio integral à vinda da professora Judith Butler ao Brasil e o exercício de sua liberdade de expor seus argumentos, proposições e discussões que não acreditamos poder ser cerceadas. Uma mordaça sobre sua fala é uma ameaça para todos e todas nós, cuja vida acadêmica e intelectual não pode prescindir desta liberdade.

Nota original disponível no site da ANPOCS http://www.anpocs.com/