domingo, 31 de dezembro de 2017

Diniz um ano depois

Diniz um ano depois*

George Gomes Coutinho **

Discutir o governo Rafael Diniz após um ano é tarefa que envolve lidarmos com ¼ do período de mandato usual de um prefeito no Brasil, salvo contingências nada desprezíveis que interrompam a trajetória pautada pela periodicidade das eleições no momento em que a judicialização da política é um dado e um fato.

Neste momento de proximidade de um ano de Diniz na prefeitura, podemos afirmar que há uma agenda real de governo. Há um direcionamento, um ethos, que pode ser replicado pelos próximos três anos. Pelo menos há esta tendência dado que não sinalizam-se mudanças.  Em minha perspectiva se firmam as seguintes questões: 1) a melancolia das altas expectativas não cumpridas; 2) a fé em uma ótica gerencial de governo; 3) inovações periféricas e ainda tímidas; 4) o enfrentamento de políticas públicas clientelistas sem a substituição das mesmas por políticas públicas emancipatórias; 5) a reprodução previsível da relação por vezes constrangedora entre governo e sociedade local.

Dos cinco itens listados acima irei cuidar exclusivamente das expectativas pré-governo que não decantaram no último ano de “governo real”.

 Expectativas pré-governo

Nas eleições no ano de 2016 para prefeito, me recordo de uma cena que sintetizará certa frustração amarga posterior. Era ainda o domingo eleitoral quando o resultado das eleições foi divulgado para a surpresa de muita gente sendo a chapa Diniz/Conceição Santana declarada vencedora em primeiro turno. Passei em um dos bares da cidade situado em um bairro de classe média naquele momento e me deparei com um churrasco, oferecido e organizado por um dos proprietários do estabelecimento, para comemorar a vitória da chapa. Não foi um churrasco financiado por ninguém envolvido com a campanha ou com a chapa. Foi uma decisão espontânea de um dos proprietários.

Cabe dizer que não fui convidado para o churrasco e por lá cheguei inocentemente e de forma acidental enquanto mero consumidor. Porém, ao ver o clima de festa, que lembrava muitíssimo a final de um campeonato de futebol, fiquei perplexo. Decidi inquirir as pessoas, que estavam genuinamente sorridentes, sobre o que elas esperavam de fato do governo que tomaria posse. Primeiramente havia uma satisfação incontida com o que seria a morte política definitiva de Garotinho e sua entourage. Ou seja, os representantes individuais de diversos grupos campistas que ali estavam interpretaram a vitória da chapa Diniz/Santana como uma espécie de “revanche”, um tipo de vingança eleitoral contra o grupo que administrou a cidade, salvo variações e rachas entre Garotinho e seus seguidores, desde o início da Nova República.

Cabe dizer na verdade que a carreira de Garotinho se está em estado terminal isso se deve, neste estranho ano de 2017, ao fenômeno da judicialização da política. Antes disso, o primeiro ano do Governo Diniz lidou com um adversário derrotado nas urnas bastante engajado em atuar na oposição midiática e judicial. Portanto, embora a derrota eleitoral tenha abalado de forma inequívoca o capital político de Garotinho e seu clã na cidade, isto ainda não havia retirado o ex-prefeito e ex-governador do cenário. A justiça fez esse trabalho, como tem feito em inúmeras ocasiões no Brasil.

Retomando a expectativa quase foliona naquele domingo de 2016, compreendi que o resultado da eleição municipal soava como um hard reset da sociedade campista. Tal como se fosse um começar de novo para a cidade. O discurso moral lacerdista, eternamente reencarnado entre nós, apontava a possibilidade de “limpar tudo” com o novo governo. Embora o termo “limpar tudo” não seja nada preciso. Muitas vezes implica, na prática, que agentes que estavam no poder saem para dar lugar a outros, até então alijados, seguindo a mesma lógica.

Em silêncio, dado que detesto estragar a festa de quem quer que seja, fiquei pensando se seria razoável exigir a reforma da sociedade a partir de um governo. Desde então, em todas as minhas análises, venho repisando que esta é simplesmente uma expectativa inatingível. Governos podem produzir mudanças importantes certamente em uma dada sociedade caso tomem medidas estruturantes que se sustentem no médio prazo. Contudo, muitas vezes quando conseguem ser “bom governo” precisam é se defrontar com a lógica de funcionamento da sociedade em questão.

Após um ano, Campos obviamente não se tornou “outra cidade”. Reencontrei com alguns partícipes do tal churrasco e a frustração de que não sentiam a “grande mudança” ansiada é quase unânime. Penso que a melancolia seja justificável: a campanha da chapa Diniz/Santana realmente inflou em patamares surreais as expectativas dos eleitores. Não é um problema especificamente desta campanha. Na verdade a política necessita desta injeção de ânimo esperançoso até para se legitimar. Contudo, quanto mais altas as expectativas, mais alta é a queda. E o grande consenso nos arredores do governo, mais ou menos consolidado nos primeiros meses, se liquefez com apoiadores de primeira hora tornando-se críticos sistemáticos e atentos.

*   Texto publicado em 31 de dezembro de 2017 no jornal Folha da Manhã em Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 30 de dezembro de 2017

Glaucenirgate?

Glaucenirgate?*

George Gomes Coutinho **

Em meio aos festejos natalinos eis que circula um áudio na cidade. Supostamente atribuído ao juiz Glaucenir de Oliveira, o áudio apresentou observações nada lisonjeiras a respeito de Gilmar Mendes, ministro do STF e presidente do TSE, na sua atuação no caso Garotinho.

Não me cabe afirmar rigorosamente nada sobre a autoria do áudio. Tampouco imaginar as razões de quem quer que seja para fazer circular o material nas redes sociais. Por ora cabe notar que o conteúdo se concentra em críticas ad personam direcionadas a Mendes que carecem de provas. Isso a despeito do áudio ser realmente criatura do juiz Glaucenir.

Inclusive para fins analíticos de quem se preocupa tanto com o imaginário social quanto com a saúde das instituições, penso que seja irrelevante nos concentrarmos nos personagens citados. É preciso olhar mais além do que é fornecido na superfície. E o áudio, se apropriado enquanto discurso, sintetiza valores, visões de mundo e posicionamentos que estão circulando na própria sociedade neste momento.

Primeiramente, o áudio, a despeito de sua veracidade, reforça um elemento encontrado na avaliação do cidadão mediano: o judiciário, a despeito de certa aura de castidade reivindicada por parte por seus agentes, não é e jamais foi imune a todo tipo de influência política e econômica. Não considero este ponto nada insignificante. Cabe observar que nestes tempos de ativismo judicial parte do discurso de auto-legitimação contém traços de salvacionismo, heroísmo e santificação. Reforça uma fantasia que, justamente por ser uma ilusão, jamais entregará o que foi prometido. Simplesmente não irá “consertar” o real.

Em segundo lugar, quem ainda fica perplexo com posicionamentos diferentes e disputas em uma instituição complexa como o judiciário igualmente está divorciado da realidade. Toda instituição, incluindo Forças Armadas ou religiões institucionalizadas, irá refletir as divisões da própria sociedade. Inclusive é algo que deveria ser encarado com naturalidade nas sociedades democráticas. O que causa espécie no momento é o grau de animosidade, sintoma que pode indicar um judiciário em rota de franca erosão na sua estabilidade interna. 

* Texto publicado em 30 de dezembro de 2017 no jornal Folha da Manhã em Campos dos Goytacazes, RJ.

** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes


sábado, 23 de dezembro de 2017

Nossa sociedade de castas

Nossa sociedade de castas*

George Gomes Coutinho **

Au Brésil, un air de société de castes. Assim o jornal francês Le Monde avaliou a sociedade brasileira no último dia 16 a partir dos dados fornecidos pelo The World Inequality Lab (Laboratório da Desigualdade Mundial) em seu relatório sobre a situação da distribuição/concentração de riquezas no mundo. Na interpretação dos autores da matéria do jornal francês: “No Brasil, um ar de sociedade de castas”.

Tomando a costumeira Índia, que se mantém enquanto caso exemplar de uma sociedade de castas no imaginário ocidental, neste tipo de estrutura não há mobilidade social. Ou seja, elementos culturais e simbólicos tornariam impossível o indivíduo ocupante de uma casta inferior transfigurar-se em membro de uma casta superior. E mesmo as novidades societárias contemporâneas não fazem ainda com que um raríssimo empreendedor indiano “sem casta”, não obstante ter se tornado rico, escape totalmente do seu destino original.

A brevíssima lembrança de antropologia básica foi apenas para fins didáticos. Afinal, suponho que para os franceses considerarem nosso país como uma “sociedade de castas” há excelentes razões e elas estão no Relatórioda Desigualdade Mundial (World Inequality Report) publicado pelo World Inequality Lab. Os números apontam o Brasil como o primeiro do ranking em concentração de riquezas nas mãos de pouquíssimos. Trata-se da fatia 1% mais rica detentora de 27,8% de toda a riqueza nacional. Este quadro faz com que o país supere até mesmo países do Oriente Médio, o que inclui evidentemente o Iraque com seu 1% mais rico abocanhando 22% da renda nacional.

A concentração de renda, que talvez até apresente hoje percentuais mais alarmantes dado que o período analisado compreendeu entre 2000 e 2015, produz inegáveis efeitos amplamente negativos na sociedade como um todo. Podemos afirmar que o abismo existente entre o topo da pirâmide e os setores intermediários e inferiores, para além da óbvia desigualdade de acesso a bens e serviços, torne qualquer discurso de ascensão social fictício em um cenário de distância social intransponível. Algo muito próximo do que imaginamos ser uma sociedade de castas.

* Texto publicado em 23 de dezembro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sábado, 16 de dezembro de 2017

Perigos da percepção

Perigos da percepção*

George Gomes Coutinho **

Desde Adam Smith, o fundamental economista escocês do século XVIII, os liberais mais conscientes jamais tiveram uma relação religiosa e dogmática com a “mão invisível”. Sabem que a tal “mão” do mercado não funciona enquanto entidade onipresente, onisciente e onipotente substituindo o Deus judaico-cristão. Há uma série de condições para que a racionalidade dos agentes tenha a possibilidade real de fazer intervenções de qualidade e que o mercado se auto-organize. Um destes elementos fundamentais envolve as informações que o sujeito detém ou não em uma transação. De outro modo as decisões humanas poderiam se contentar com conselhos de cartomantes, leitura da borra de café e outros métodos divinatórios.

Neste espírito é muitíssimo bem-vinda a pesquisa “Perils os Perception” (Perigos da Percepção) do Instituto Ipsos Moris divulgada na última semana. A pesquisa, realizada em 38 países centrais e “em desenvolvimento”, tenta mensurar a qualidade da percepção dos cidadãos comuns ante o real. Em outras edições a pesquisa tentou construir um “índice de ignorância” e agora optou-se pelo eufemismo “percepção distorcida”. Em suma, a pesquisa averigua o quanto o sujeito sabe de fato sobre os problemas e questões do seu país. O Brasil, dentre os 38, ficou no “vice-campeonato” dos que menos detém informações de qualidade sobre a realidade em que vivem. O primeiro lugar ficou com a África do Sul.

Este é mais um dos muitos alertas amarelos para o ano eleitoral de 2018. Afinal, o sistema de competição eleitoral, que mantém funcionamento análogo aos mercados, se pauta pela escolha dos eleitores diante de um leque de opções pré-determinado de candidatos e siglas. Tal como no mercado, sem informações de qualidade o eleitor tende a fazer escolhas “subótimas”. O problema é que os responsáveis por esse quadro de desinformação generalizada são muitos. Mídia impressa e televisiva, mercado, Estado e a própria sociedade. Como não é possível reverter a posição no “ranking da ignorância” no curto prazo, as agências e profissionais de “checagem de fatos” serão fundamentais para mitigar um cenário que já será bastante perverso. Afinal, não será raro votarem no que “acham que é”, embora de fato não o seja.

* Texto publicado em 16 de dezembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes, RJ.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Recebendo Le Jeune Karl Marx

Recebendo Le Jeune Karl Marx*

George Gomes Coutinho **

Le Jeune Karl Marx, o “Jovem Marx” em versão brasileira, é obra cinematográfica do diretor Raoul Peck e irá estrear entre nós oficialmente em 28 de dezembro. Todavia, não obstante o filme chegar ao circuito brasileiro somente no final deste ano, desde sua estréia no Festival de Berlin em fevereiro houve enorme burburinho. Creio que há algumas razões para tal.

Trata-se de um filme sobre o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) e só isto já causaria certo alvoroço, ou no mínimo curiosidade, entre boa parte da esquerda. Ainda, no Brasil polarizado ideologicamente boatos de que o filme estaria sendo boicotado pelos “cinemas burgueses” também surgiram, tal como supostas ameaças de grupos de extrema-direita que inviabilizariam a exibição do filme. Não testei a veracidade das informações. Contudo, imagino que o cenário de polarização acrescido dos boatos, verdadeiros ou não, gerou respostas no circuito cinéfilo nativo e seus adeptos. A primeira foi disponibilizar versões do filme na plataforma de mídia Youtube. A outra foram versões d´O Jovem Marx circulando em universidades, sindicatos, movimentos sociais e cineclubes alternativos. Como podem notar, a recepção do filme entre nós também vem sendo considerada um ato político, tanto pelo conteúdo da obra quanto por nosso contexto.

Assisti o filme em duas ocasiões. Há pouco mais de um mês atrás esbarrei em um link no Youtube com o áudio em francês, inglês e alemão. Não tudo ao mesmo tempo obviamente. Como Marx foi “convidado a se retirar” em mais de uma ocasião dos países europeus onde tentou fixar-se em seu tempo, vindo a falecer finalmente na Inglaterra, o diretor optou por certo realismo onde a língua falada muitas vezes acompanha o cenário/país. Advirto aos leitores neste momento que é inútil repassar o link. Fui conferir e já não é mais possível assistir o filme por lá.

A segunda ocasião foi no Cineclube Marighella, projeto alternativo orquestrado pelos bravos Léo Puglia e Gustavo Machado aqui em Campos.  Na platéia contavam-se aproximadamente 120 almas silenciosas e atentas. Nada mal para uma noite de sábado na exibição de um filme sobre um filósofo. Nonsense? Talvez a conjuntura nacional explique.


* Texto publicado em 09 de dezembro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.

** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Manifesto em defesa do Estado de Direito e da Universidade Pública no Brasil

Nós, intelectuais, professores, estudantes e dirigentes de instituições acadêmicas, vimos a público manifestar nossa perplexidade e nosso mais veemente protesto contra as ações judiciais e policiais realizadas contra a universidade pública que culminaram na invasão do campus da UFMG e na condução coercitiva de reitores, dirigentes e administradores dessa universidade pela Polícia Federal no dia 6 de dezembro de 2017.
O Brasil, nos últimos anos, vivencia a construção de elementos de exceção legal justificados pela necessidade de realizar o combate à corrupção. Prisões preventivas injustificáveis, conduções coercitivas ao arrepio do código penal tem se tornado rotina no país.
Neste momento amplia-se a excepcionalidade das operações policiais no sentido de negar o devido processo legal em todas as investigações relativas à corrupção violando-se diversos artigos da Constituição inclusive aquele que garante a autonomia da universidade.
É inadmissível que a sociedade brasileira continue tolerando a ruptura da tradição legal construída a duras penas a partir da democratização brasileira em nome de um moralismo espetacular que busca, via ancoragem midiática, o julgamento rápido, precário e realizado unicamente no campo da opinião pública.

Nos últimos meses, essas ações passaram a ter como alvo a universidade pública brasileira. Cabe lembrar aqui que a universidade pública, diferentemente de muitas das instâncias do sistema político, está submetida ao controle da CGU e do TCU, respeita todas as normas legais e todos os princípios da contabilidade pública em suas atividades e procedimentos. Portanto, não existe nenhum motivo pelo qual devam se estender a ela as ações espetaculares de combate à corrupção.


A universidade pública brasileira tem dado contribuições decisivas para o desenvolvimento da educação superior, da pós-graduação, da ciência e tecnologia que colocaram o Brasil no mapa dos países em desenvolvimento. Somente universidades públicas brasileiras estão entre as 20 melhores instituições de ensino e pesquisa da América Latina, de acordo com o Times Higher Education Ranking. A UFMG, sempre bem colocada nesses rankings internacionais, possui 33.000 alunos de graduação, 14.000 alunos de pós-graduação, conta com 75 cursos de graduação, 77 cursos de mestrado e 63 cursos de doutorado. Além de sua excelência em educação e pesquisa, a UFMG se destaca por suas ações de assistência e extensão nas áreas de saúde e educação.
Nesse sentido, intelectuais e membros da comunidade universitária exigem que seus dirigentes sejam respeitados e tratados com dignidade e que quaisquer investigações que se mostrarem necessárias com relação a atividades desenvolvidas na universidade sejam conduzidas de acordo com os princípios da justiça e da legalidade supostamente em vigência no país e não com o objetivo da espetacularização de ações policiais de combate à corrupção. Está se constituindo uma máquina repressiva insidiosa, visando não só coagir, mas intimidar e calar as vozes divergentes sob o pretexto de combater a corrupção. Seu verdadeiro alvo, porém, não é corrupção, mas o amordaçamento da sociedade, especialmente das instituições que, pela própria natureza de seu fazer, sempre se destacaram por examinar criticamente a vida nacional.
Não por acaso o alvo dessa violência contra a universidade e seus dirigentes foi exatamente um memorial que tenta recompor os princípios da justiça e do estado de direito extensamente violados durante o período autoritário que se seguiu ao golpe militar de 1964. O Memorial da Anistia tem como objetivo explicitar os abusos autoritários perpetrados nesses anos de exceção porque apenas a sua divulgação permitirá que as gerações futuras não repitam o mesmo erro.
Nesse sentido, intelectuais, professores e estudantes conclamamos todos os democratas desse país a repudiarem esse ato de agressão à justiça, à universidade pública, ao estado de direito e à memória desse país.


Assinam:


Paulo Sérgio Pinheiro (ex ministro da secretaria de estado de direitos humanos)


Boaventura de Sousa Santos (professor catedrático da Universidade de Coimbra)
André Singer (professor titular de ciência política usp e ex-secretário de imprensa da presidência)
Ennio Candotti    (ex-presidente e presidente de honra da SBPC)
Newton Bignotto (professor do Departamento de Filosofia da UFMG)
Leonardo Avritzer (ex-presidente da Associação Brasileira de Ciência Política)
Fabiano Guilherme dos Santos (presidente da ANPOCS)
Maria Victória Benevides (professora titular da Faculdade de Educação da USP)
Roberto Schwarz (professor titular de Literatura da Unicamp)
Renato Perissinoto (presidente Associação Brasileira de Ciência Política)
Fábio Wanderley Reis. (Professor Emérito da UFMG)
Cícero Araújo (Professor do Departamento de Ciência Política da USP)
Sérgio Cardoso  (Professor do Departamento de Filosofia da USP)
Marilena de Souza Chauí (Professora titular do Departamento de Filosofia da USP)
Fábio Konder Comparato (Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP)
Ângela Alonso (professora do Departamento de Sociologia da USP)
Juarez Guimarães (professor do Departamento de Ciência Política da UFMG)
Michel Löwy. (Pesquisador do CNRS, França)
Adauto Novaes (Arte e Pensamento)
Maria Rita Kehl (psicanalista)
Thomás Bustamante (Professor da Faculdade de Direito da UFMG)
Lilia Moritz Schwarcz (Professora do Departamento de Antropologia da USP)
Gabriel Cohn (ex-diretor da Faculdade de Filosofia da USP)
Marcelo Cattoni (professor da Faculdade de Direito da UFMG)
Amélia Cohn (professora do Departamento de  Medicina Preventiva da USP)
Dulce Pandolfi (Historiadores pela Democracia)
Bruno Pinheiro Reis (Vice-diretor e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG)
Oscar Vilhena Vieira (Diretor e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP)

sábado, 2 de dezembro de 2017

As muitas mortes dos comunistas

As muitas mortes dos comunistas*

George Gomes Coutinho **

Em maio de 2016 Eduardo Bolsonaro, deputado federal pelo PSC de São Paulo, apresentou o projeto de lei 5358/16. A proposta do ilustre deputado, nascido em 1984 e muito jovem para replicar clichês da Guerra Fria, envolve na melhor das hipóteses a reedição do Macartismo entre nós. Uma outra alternativa seria a confissão da mais profunda e orgulhosa ignorância histórica. Ou no pior, como diria meu avô, a proposição do projeto de lei é como colocar uma melancia no pescoço: uma forma um tanto tola de chamar a atenção.

Talvez na imaginação pouco informada do deputado o Partido Comunista Norte-Coreano e o Partido Comunista Britânico, mormente uma entediante reunião de senhores como disse o historiador Eric Hobsbwam (1917-2012) em sua autobiografia, sejam mesmíssima coisa.

Entre nós, olhando os comunistas brasileiros, não seria novidade este tipo de tentativa de eliminação inquisitorial. Afinal, como sempre frisava o cientista político alagoano Gildo Marçal Brandão (1949-2010), o Partidão entre 1922 e 1985 vivenciou pouco menos de 3 anos e meio na legalidade. Nada original, o projeto do jovem Bolsonaro seria só mais uma dentre as muitas mortes dos comunistas em nossa realidade. A ilegalidade mata como diria Brandão.

Não desconsiderando sua dualidade constitutiva no Brasil, entre a via insurrecional e a “civilista” ou institucional de ação, não custa lembrar que a partir do auto-reconhecimento das atrocidades cometidas nos regimes comunistas realmente existentes desde a década de 1950 do século passado, incontáveis e relevantes comunistas brasileiros firmaram postura intransigente em prol da democracia.

Desde a auto-crítica do Partido, que reconsiderou o papel de Vargas no processo de modernização do país e defendeu a normalidade institucional, até a participação dos comunistas na clandestinidade na Frente pela democratização no esfacelamento da ditadura civil-militar, vimos intervenções, militância e ações que incluem a necessidade da defesa sem tréguas das liberdades fundamentais. Postura diametralmente oposta do deputado e sua platéia. Ah! Cabe dizer que o tal projeto de lei anti-comuna continua parado. Deve ser por sua relevância.

* Texto publicado em 02 de dezembro no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Querelas e acertos sobre o pensamento político brasileiro (parte 2)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Considerando que o objeto da ciência social "fala" e assim o faz de maneira contingente, a incorporação de elementos do pensamento político-social formulado originariamente na Europa ocidental e na América do Norte no trabalho de pesquisadores do Sul não é em si problema se o estatuto de cientificidade da pesquisa social não depender, exclusivamente, de “citar a literatura da Metrópole e tornar-se parte do discurso lá produzido”, como lembra-nos Raewyn Connell[1]. 

Para a socióloga australiana, um turning point no velho questionamento ao imperialismo cultural nas ciências humanas é assinalável atualmente por meio de quatro proposições: a) afirmar as diferenças entre os estilos de trabalho intelectual em correspondência com a história das sociologias nacionais; b) buscar “sistemas indígenas de pensamento” [2] cuja origem externa ao sistema de pensamento eurocêntrico faculte uma base para a produção autônoma de conhecimento; c) desconstruir o pensamento europeu mediante a crítica pós-colonial; d) vislumbrar um “universalismo alternativo” [3] fora das tradições europeia e norte-americana. Sintonizado particularmente com a primeira proposição de R. Connell, Gildo Marçal Brandão também sinaliza em muitos estudos do pensamento político brasileiro uma inclinação à pobreza analítica dimensionada por Fábio Wanderley Reis como um entrave à formulação de um pensamento teórico em bases universais sem, digamos, perder de vista um sotaque e ideias próprios. 

O diagnóstico de G. M. Brandão, tal como o de F. W. Reis (parte 1), não dá margem alguma à auto-condescendência. Na maioria dos estudos pensamento político brasileiro, pontua Brandão, ainda impera a tentação de resolver o “problema da qualidade e da capacidade cognitiva e propositiva de uma teoria pela enésima remissão ao grau de institucionalidade da disciplina ou província acadêmica na qual ela surge”; de reiterar as “tradicionais ‘explicações’ de uma obra pela origem social do autor”; e de operar as “reduções de conteúdo e da forma de produção intelectual às estratégias institucionais ou de ascensão profissional ou social das coteries” [4]. Desse ângulo, seria razoável que a abordagem de G. M. Brandão confluísse com o programa mertoniano de pesquisa, ao admitir que a pesquisa teórica se torna inócua quando serve de incremento a uma história científica - cujo escopo se confunde com o prestígio auferido por um autor nos “colégios invisíveis” da academia em detrimento das ideias teóricas contidas na sua obra. 

Como lembra Jeffrey Alexander[5], no programa mertoniano não estaria vetado a historiadores da ciência e cientistas sociais compartilhar um referencial epistemológico através da leitura das grandes oeuvres, ainda que coubesse aos últimos convertê-la em novos pontos de partida na busca do conhecimento, pois, ao contrário de outras disciplinas cuja construção do objeto é heterônoma, as ciências sociais se revelariam pródigas ao forjar seus próprios instrumentos para se manterem cumulativas. No entanto, o consenso termina quando se põe em questão o que significa propriamente “cumulatividade”. 

É fortuito lembrar que o estudo do pensamento político é antípoda do relato da história da ciência que consagra a autoimagem das ciências naturais. Ora, as teorias e polêmicas das ciências sociais consubstanciam atos performativos que, no plano linguístico, assumem caráter multitudinário ao serem partilhados por indivíduos que, em determinada formação histórico-social, cada vez mais atribuem sentido à sua coexistência mediante os produtos acabados daquelas ciências, transformando-os, no decurso do tempo, em pré-noções acerca de uma identidade coletiva associada àquela formação. Eis o terreno acidentado no qual caminha o pesquisador instigado pela teoria social.

A “dupla hermenêutica” da pesquisa social encontra seu meio de realização numa acumulação teórica que, no caso brasileiro, é permeada por “formas de pensar extraordinariamente persistentes no tempo, modos intelectuais de se relacionar com a realidade que subsumem até mesmo os mais lídimos produtos da ciência institucionalizada”[6]. Portanto, analisar “formas de pensar” não condena o cientista social ao inventário das tradições de pensamento mortas. Ora, recorrer àquelas “formas de pensar” modula a nossa imaginação sociológica na justa medida em que usufruí-la com neutralidade axiológica implica reconhecer no ensaio sobre a formação nacional um elemento ativo na vinculação social da obra pesquisada às ideias de valor com as quais, inexoravelmente, erige-se um dissenso entre perspectivas do conhecimento:


Nessa condição, não há como não confrontar leituras distintas do pensamento político-social brasileiro, especialmente os principais modelos de interpretação formulados nas últimas décadas, ao mesmo tempo verificando em que medida há continuidade ou ruptura entre as formulações clássicas dos convencionalmente chamados “intérpretes do Brasil” e o trabalho intelectual que vem sendo produzido na universidade segundo os métodos de investigação especializada (BRANDÃO, 2010, p.32).

           
A aplicação desses métodos tem levado a bom termo as mediações entre “continuidade” e “ruptura” nas ciências sociais brasileiras? G. M. Brandão acolhe o tratamento dado à questão por Gabriel Cohn, o qual salienta a polêmica entre Guerreiros Ramos e Florestan Fernandes no início dos anos 1960 como a inflexão mais desafiadora que tivemos até hoje no debate sobre a episteme das ciências sociais[7]. Passado meio século desse debate, a teoria social ainda é empreendimento de poucos ou, como ironiza Cohn, um problema “a ser deixado para outros em melhores condições” [8].

Os parâmetros avaliativos pelos quais G. M. Brandão esmiúça essa questão inconclusa – a elaboração de teoria social no trabalho científico aqui produzido – suscitam o balanço das perdas e ganhos da institucionalização de nossa pós-graduação em ciências sociais, um processo que atingiu seu ponto de maturação sob o crivo da agenda “americana” de pesquisa entre os anos 1990 e 2000. Por um lado, G. M. Brandão e F. W. Reis concordam que a delegação do problema a “outros” simplesmente ratifica desvantagens cumulativas das ciências sociais brasileiras em sua circulação internacional; por outro, se Reis indaga por que os “ganhos” da institucionalização são ainda exíguos, Brandão assevera que suas “perdas” tendem a se acentuar com a adesão acrítica àquela agenda de pesquisa, na medida em que ela nada mais faz do que obscurecer a cumulatividade do pensamento político brasileiro.

Seria dispendioso prolongar esse contraponto. Conservemos dele que G. M. Brandão não é indiferente ao aperfeiçoamento de procedimentos metodológicos logrado na pós-graduação em ciências sociais no Brasil. Bastaria dizer que tal aperfeiçoamento qualificou a crítica às diversas formas de determinismo que há pouco tempo faziam pressupor as variáveis políticas como “subprodutos de tendências macrossociais e macroeconômicas” [9]. Todavia, o formalismo instrumental nas ciências sociais pode assumir um viés minimalista ao situar a “vocação nos limites da profissão” [10]. Tais limites corporificam os ardis da especialização, notadamente quando omitem que a aplicação do método em cada disciplina é uma condição necessária, mas não suficiente para a elaboração teórica do objeto dessas ciências:


[...] se não é possível eliminar a especialização por ato de vontade, não é também válido supor que qualquer disciplina, ou qualquer campo interno a uma disciplina, que tenha obtido cidadania acadêmica corresponda necessariamente a mudanças e a individualizações no ser social (BRANDÃO, 2010, p.193-194).
           

Redefinindo o pensamento político como uma área de fronteira do conhecimento, G. M. Brandão lança mão de um prognóstico: por um lado, é possível responder com originalidade à “crise das grandes teorias” [11] a partir da situação brasileira ou, precisamente, do exame das formas de pensar rotinizadas nos e pelos ensaios de interpretação da formação social brasileira com as quais, queiramos ou não, colocamos à prova o campo discursivo das ciências sociais que exercemos na divisão internacional do trabalho intelectual. 


Por outro, seria contraproducente apartar o esforço endógeno em teoria social da pesquisa sobre as obras deixadas pelos nossos ensaístas, pois as cautelas diante do anacronismo histórico podem, paradoxalmente, estabelecer um corte arbitrário entre seus momentos de formulação e recepção. Com efeito, os ensaios sobre a formação social brasileira têm uma amplitude heurística irredutível ao seu contexto de origem e, logo, apropriar-se deles não precisa nos ocupar em coligir ornamentos do passado, senão em viabilizar a cooperação entre teoria social e pesquisa sobre os textos históricos para investirmos cientificamente em temas e problemas da ordem do dia.




[1] Cf. Raewyn Connell, A iminente revolução na teoria social, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 27, n.º 80, out. 2012, p.11.
[2] Ibid. ibidem.
[3] Idem.
[4] Cf. Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro, São Paulo, Hucitec, 2010, p.22.
[5] Cf. Jeffrey Alexander, A importância dos clássicos in: Anthony Giddens & Jonathan Turner (orgs.), Teoria Social Hoje, São Paulo, Editora Unesp, 1999, p.23-89.
[6] Brandão, op. cit., p.29.
[7] Ibid., p.184.
[8] Apud. Brandão, op. cit., p.184.
[9] Brandão, op. cit, p.191.
[10] Ibid., p.185.
[11] Ibid., p.197.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Os perdedores

Os perdedores*

George Gomes Coutinho **

“De fato, sou um loser. Contudo, valeu a pena ter brigado pelas coisas nas quais eu acreditava, mesmo que o preço fosse o fracasso. A ética me consolou nas derrotas políticas. E eu sempre me lembrava de que, afinal (mal comparando), Antonio Gramsci e Walter Benjamin também foram losers. O conceito que cada loser faz de si mesmo depende da avaliação que ele faz do que pretende fazer. Se não pretende fazer nada, já está objetivamente acumpliciado com os winners.”.

Com estas palavras Leandro Konder (1936-2014) avaliou sinteticamente sua própria trajetória. É a auto-análise publicada em suas memórias na primeira década deste século. Konder foi militante do PCB, o Partidão.

O filósofo petropolitano resumiu certo sentimento de frustração de parte da esquerda no Brasil. Sentimento este que se atualiza contemporaneamente. Por vezes a cada dois dias.

Para mim um dos pontos culminantes do ano até agora (faço questão de ressaltar o “até agora”) foi um artigo publicado no jornal francês Liberátion no último 20 de novembro. O texto intitula-se Brésil, Le nouveau labo neoliberal, uma arguta análise de conjuntura da trinca Dany-Robert Dufour, Frédéric Vandenberghe e Carlos Gutierrez. Doeu. Não pelo fato dos autores estarem equivocados. Quem nos dera que estivessem.

“Brasil, o novo laboratório neoliberal” de Dufour-Vandenberghe-Gutierrez é um excelente resumo crítico para o leitor progressista estrangeiro. Reconhece o golpe de Estado de “tipo novo” em 2016, aponta para o relativo pouco apreço pela democracia entre nós e pinta um quadro realista e tétrico do governo Temer, um presidente que governa com 5% de popularidade e contra a população. Ainda, dentre outras tantas cacetadas, acerta ao associar nosso país sob a Nova Lei Trabalhista a um experimento neoliberal no estilo de um Pinochet. Teríamos resusscitado até mesmo o neoliberalismo dado como morto após o cenário de terra arrasada deixado em praticamente todo o globo, algo que concordo com os autores. Diante de tudo isso o que dizer? Perdemos. Todos. No espírito de um Leandro Konder. Ao menos por enquanto.

* Texto publicado em 25 de novembro de 2017 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

Chamada Cineclube Marighella - O Jovem Karl Marx + Debate ‘O marxismo no mundo de hoje' - 02/12/2017


O Jovem Karl Marx + Debate ‘O marxismo no mundo de hoje’


No próximo sábado (2/12), o Cineclube Marighella exibe ‘O Jovem Karl Marx’, longa de Raoul Peck - mesmo diretor de 'Eu Não Sou Seu Negro' (2016) - sobre um período fundamental na vida do pensador alemão eleito pelos ouvintes da rádio britânica BBC, em 2005, como “o maior filósofo de todos os tempos".

Pois foi entre as lutas e deportações, tristezas e alegrias, que marcaram sua vida entre o fechamento do jornal ‘A Gazeta Renana’, em 1842, e o lançamento do ‘Manifesto Comunista’, em 1848, que Marx formulou os fundamentos do seu materialismo histórico.

Afinal, “até agora todos os filósofos apenas interpretaram o mundo, mas é preciso transformá-lo”. É o que afirma Marx ao amigo Engels após noite de bebedeira, num dos momentos marcantes do filme.

Além de mostrar o homem por trás do mito que provocou amor e ódio a ponto de inspirar a divisão do mundo em dois polos rivais, o longa de Peck segue a trilha da biografia ‘Amor e Capital’, de Mary Gabriel, ao chamar atenção para a importância não apenas do parceiro Engels, mas também de sua esposa Jenny, enquanto fortaleza afetiva e brilhante crítica de seu trabalho.

A autoria da obra de Marx, portanto, não pode ser atribuída apenas ao próprio, mas também a Jenny e Engels. Trata-se de uma obra coletiva, construída com sofrimento, esperança e afeto. Nada mais coerente para quem acreditava que a união dos trabalhadores poderia levar a um mundo de iguais.

É esse retrato sensível e cuidadoso da juventude do trio que o público campista pode esperar da exibição de ‘O Jovem Karl Marx’ que o Cineclube Marighella promove no dia 2/12, no Ponto B Restaurante. Em seguida, tem debate com o sociólogo Nelson Crespo, do IFF, e com George Coutinho, professor de Ciência Política da UFF/Campos.
 
Data
Sábado, 2 de dezembro de 2017

Local
Ponto B Restaurante
Rua Baronesa da Lagoa Dourada, N° 68  - Campos dos Goytacazes-RJ * **
 
* Vamos dispor de grande espaço reservado exclusivamente ao Cineclube Marighella. Cada um paga apenas o que consumir, mas é importante ressaltar que a consumação não será obrigatória. Quem quiser apenas assistir ao filme e participar do debate deve se sentir à vontade.

** Em virtude do horário de verão, o evento começará às 19h, iniciando a exibição do filme às 20h.
 
Evento no Facebook:   
https://www.facebook.com/events/617597795077259/
 
PROGRAMAÇÃO

19h – Início do evento

20h – Exibição do filme ‘O Jovem Karl Marx’ (2017)

22h – Debate aberto: ‘O marxismo no mundo de hoje’
           Com participação de

          - Nelson Freitas,
                            sociólogo e professor do IFF/campos.

          - George Coutinho,
                             prof. de Ciência Política na UFF/Campos.
          
* Classificação indicativa: 12 anos
 

(21) 995893877 - Léo Puglia
(22) 99864-0280 - Gustavo Machado

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Tudo novo de novo? - Breves reflexões sobre a ação coletiva

Tudo novo de novo?* - Breves reflexões sobre a ação coletiva**

George Gomes Coutinho ***

Quando eu elaborava meu primeiro trabalho acadêmico dotado de algum fôlego, no caso minha primeira monografia na UFF/Campos no início deste século, tive a afortunada experiência de ser orientado pelo professor José Luiz Vianna da Cruz, uma das rochas fundamentais da sociologia e dos estudos sobre desenvolvimento regional entre nós. Muita água correu no Paraíba do Sul desde então. O professor José Luiz, daquela relação formal entre orientador e orientando de graduação, se tornou posteriormente meu amigo, colega de Departamento de Ciências Sociais e prossegue sendo um interlocutor/conselheiro. Tanto é que hoje em dia ouso chamá-lo simplesmente de “Zé” em uma demonstração singular de respeito e carinho que tenho por ele.

Voltando ao início deste século, minha monografia tinha por tema os movimentos sociais na universidade pública. O Zé, do alto de sua experiência, me apresentou uma questão logo no início de nossos trabalhos formulada de maneira simples e objetiva. Afinal, se estávamos falando de movimentos sociais, o que os move? Se a pergunta era sintética e elegante, a resposta (ou as respostas) me levou a trafegar pelas águas turvas das noites em claro. A pergunta do Zé tocava realmente no que era fundamental. Quais seriam os “móveis” da ação coletiva? Arrisco dizer que de lá pra cá parte de meus trabalhos foram tentativas de responder a essa pergunta de forma direta ou indireta e certamente parcela do conhecimento sistemático sobre a política enquanto fenômeno se estrutura nos arredores dos dilemas da ação coletiva.

Na conjuntura atabalhoada em que vivemos Aluysio Abreu Barbosa em uma conversa telefônica amistosa decidiu reencarnar a pergunta do Zé trazendo para o nosso contexto. Senti na pele que de fato as grandes questões não desaparecem. Elas se atualizam de acordo com as especificidades de cada momento histórico. Aluysio inclusive não me colocou “pouca coisa”. Ele nota, de forma correta, que os grandes movimentos coletivos brasileiros ocorridos desde o arrefecimento da ditadura civil-militar até 2015, perpassando o Fora Collor de 1992 e o junho de 2013 nas regiões metropolitanas do país, não são tudo farinha do mesmo saco. De fato não são. Todavia, vamos tentar ver o mínimo estrutural que os aproxima e o muito que diferencia estes grandes movimentos que tem a rua por cenário. Causando estranheza ao leitor, justamente o que os assemelha e os distancia envolve responder a pergunta do Zé: quais os móveis?

Teoricamente, de Karl Marx (1818-1883) a Mancur Olson (1932-1988), o que move grupos e classes que engendram ação coletiva, o “grande móvel”, é o interesse. É justamente o que aglutina e torna possível a ação coletiva e associativa dos sindicatos, movimentos sociais tradicionais, grupos de pressão, movimentos de massa, etc.. Seja a Associação Nacional de Rifles da América, o Greenpeace, O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo ou o pessoal da Tradição, Família e Propriedade. Coloquei exemplos tão discrepantes não tanto para causar desconforto ao leitor. Apenas quis demonstrar que estes grupos, a despeito do seu posicionamento no espectro político, se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores, todos se agrupam em prol de algum interesse comum e compartilhado. A associação “reduz custos” que seriam simplesmente impossíveis para um indivíduo isolado e a ação coletiva visa permitir que se alcance um objetivo ou um conjunto de objetivos.

Antes de prosseguir, venho declarar minha discordância sobre a morte da política ou o que seria um processo de despolitização no Brasil contemporâneo. Eu concordo que exista um arrefecimento da política tradicional sem dúvida, algo que está na raiz da crise da democracia representativa no mundo. Não por acaso partidos, seja aqui ou na Europa, apresentam um déficit de legitimidade considerável entre seus eleitores. Porém, a política envolve tomar decisões dotadas de caráter vinculante como diria o alemão Niklas Luhmann (1927-1998). Portanto, se a morte é inevitável para tudo o que é vivo, a política é inescapável para todos(as) que vivem em sociedade. Decisões que tem impacto coletivo, seja sobre os parâmetros curriculares do Ensino Médio ou regras de tributação, são da natureza da política. Porém, há a mudança de agendas, novos temas emergentes e das formas de se fazer política, algo que retomarei adiante.

Prosseguindo, se os interesses demarcam a ação coletiva para gregos, troianos e baianos, não podemos ignorar a modulação fornecida pelos valores, visões-de-mundo, ideologias, elementos simbólicos, etc.. Neste ponto TFP e MST tem obviamente posicionamentos inconciliáveis sobre a questão agrária por exemplo. As agendas dos movimentos, a maneira pela qual os interesses se particularizam e dão robustez para a operacionalização da ação, são obviamente distintos. Contudo, temos momentos em que estes movimentos, de natureza mais particularizada, transcendem seu público de adeptos e simpatizantes atingindo a sociedade como um todo. A pauta originária de um grupo torna-se uma pauta consensual entre diversos grupos e classes. Olhemos para o movimento “Diretas Já” na longínqua década de 1980.

Nas “Diretas” o contexto explica. Se a ditadura civil-militar jamais foi um consenso total na sociedade brasileira, o que redundou nos movimentos de resistência insurrecionais (luta armada) e civilistas (atuação nas instituições), é impossível não reconhecer que um regime que durou 21 anos não tenha gozado de legitimidade entre amplos setores da população. Todavia a ressaca produzida pelo “Milagre”, o cenário de hiperinflação galopante e pauperização, tornou o descontentamento incontrolável. Inclusive a atuação da grande mídia oligopolista, até então entusiasta de primeira hora ao golpe de 1964, deu sua contribuição e reverberou o processo de perda de legitimidade dos militares no poder.  Neste ponto da história o que era um movimento perene em prol do retorno dos ritos democráticos de uma contra-elite minoritária (partidos de esquerda, intelectuais e artistas), se tornou um movimento de massa que transcendeu classes e grupos. Só o amplo consenso formado explica em um mesmo palanque gente como Ulisses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva.

O movimento da “Diretas” foi um movimento de massa cujo interesse era o de reinstituir a normalidade democrática. Considero equivocado considerar a “Diretas” um movimento de esquerda, embora que atores tradicionais deste espectro político, o que inclui sindicatos, partidos e movimentos sociais, tenham dado suporte inegável ao que vimos no Brasil na década de 1980. Os atores tradicionais auxiliaram na fisionomia do movimento de massas inclusive pelo acúmulo de expertise em se manterem organizados, a despeito de terem atuado durante boa parte do século XX na ilegalidade ou semi-legalidade. Igualmente forneceram um discurso, muitas vezes contundente, expresso em palavras de ordem onde a crítica da situação econômica era absolutamente oportuna para o momento.

Também o “Fora Collor” na década de 1990 mantém alguns dos aspectos que citei acima:1) transcende a crítica de uma contra-elite minoritária; 2) encontra apoio e reverberação da mídia oligopolista; 3) é dotado de uma fisionomia de esquerda pelo protagonismo de certos atores tradicionais, embora que o consenso naquele momento quanto ao impeachment tenha abarcado diversos grupos sociais para além do espectro político mencionado. 

A questão é que o mundo mudou muitíssimo de lá para cá. A chamada “revolução informacional”, que se potencializa a partir do final da década de 1990, já inclui novas formas de comunicação e interação na sociedade. Ao mesmo tempo tivemos os anos do lulismo neste século XXI, onde os atores tradicionais da esquerda ingressaram nas instituições e tanto passaram a ser “vidraça” quanto tiveram sua atuação contestatória consideravelmente diminuída. Afinal, movimentos e partidos tornaram-se governo. Nesse ínterim novas pautas ganharam ainda mais corpo e possibilitaram o protagonismo de atores que não se sentiam plenamente contemplados pelos movimentos tradicionais de esquerda. Esse diagnóstico não é meu, boa parte da literatura sobre movimentos sociais aponta para esta questão. Aqui, dentre as novidades, falo do movimento ambiental, feminista, movimento negro, grupos LGBTT, etc.. A natureza, este agente difuso, ganha porta-vozes humanos. Jessé Souza (1960), sociólogo brasileiro, ironicamente chama este grupo de “classe média de Oslo”, brasileiros que adotam uma agenda ambiental e de sustentabilidade digna dos nórdicos.  E os afetos e a expressividade adquirem uma enorme relevância onde o clássico problema das diferenças materiais entre as classes sociais passa a ser secundário. Não por acaso o filósofo francês Luc Ferry (1951) aposta que a intimidade, as relações afetivas, é um tema amplamente mobilizador neste século XXI.

Um outro ponto, ao qual não canso de lembrar, é o da fadiga das democracias representativas liberais no mundo todo na nossa conjuntura. Devo este diagnóstico ao sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). A alta financeirização das economias nacionais, processo que se inicia na década de 1970, torna os governos reféns diretos da pauta fornecida pelas grandes instituições financeiras. Em suma: o que prometem nas campanhas eleitorais não é efetivamente realizado inclusive por constrangimentos e acordos que moldam os orçamentos governamentais. Parte da crise de legitimidade da social democracia européia é explicada por este fator. Na esteira da fragilização dos partidos social democratas, os partidos tradicionais moderados sofrem por inércia. Portanto, a crise da democracia representativa liberal é seguramente também uma crise dos partidos e lideranças tradicionais, um problema que não é só brasileiro.

O junho de 2013 no Brasil se insere neste macro contexto absolutamente complexo. Não foram os atores tradicionais de esquerda que organizaram os movimentos. Pelo contrário. Em várias cidades brasileiras estes atores foram até mesmo hostilizados. Naquele momento muitos analistas ficaram atônitos. O que houve?

Junho de 2013 foi um dos maiores testes da capacidade de aglutinação coletiva das novas formas de comunicação e interação. Como vimos, é inegável o barulho causado. Naquele momento o slogan “Vem Pra Rua” ou o Movimento Passe Livre sintetizam uma pauta reivindicatória que envolveu desde o seu estopim, no caso a revogação do aumento do preço das passagens urbanas, até a crítica ao uso de dinheiro público para as grandes obras que seriam necessárias para a realização dos mega-eventos vindouros. Tanto a Copa do Mundo quanto as Olimpíadas do Rio estavam na lista de prioridades do Estado brasileiro.

Notem que por mais que tenham se apresentado como “movimentos pulverizados”, haviam pautas reivindicatórias que apontavam tanto para o direito de mobilidade urbana quanto implicavam, mesmo que de forma um tanto inábil, na tentativa de influir no processo de tomada de decisão sobre os orçamentos governamentais. Em contraposição ao investimento nos mega-eventos os manifestantes clamavam, mesmo que sem muita precisão, por mais investimentos em saúde e educação. Neste ínterim, até pelo caráter inovador, os grupos políticos tradicionais não conseguiram interlocução ou mesmo captar as demandas apresentadas, dotá-las de objetividade política.

Ali abriu-se uma caixa de Pandora. Os métodos de mobilização, até então jamais vistos no cenário tupiniquim, foram depois largamente utilizados. Inclusive há semelhanças de métodos com o que ocorreu aqui e na Primavera Árabe: redes sociais, novas formas dinâmicas de interação, etc..

Cabe notar que os movimentos da chamada “nova direita” no Brasil se utilizaram depois fartamente tanto da estética de mobilização dos grupos de junho de 2013 quanto até mesmo de nomenclaturas e slogans. Afinal, o “Movimento Passe Livre”, o MPL, de alguma inspirou o “Movimento Brasil Livre”, não por acaso MBL. O slogan “Vem Pra Rua” tornou-se um movimento homônimo.

Nesse ínterim uma pletora de questões aflorou. Trata-se de uma constelação de fatores. Aqui a frustração econômica causada pelo término da era das commodities implicou uma enorme dificuldade de manutenção das políticas econômicas e sociais do lulismo continuadas por Dilma Rousseff. Este é um ponto crucial para entendermos a insatisfação que gerou os movimentos de massa pós-2013. Para além disso os movimentos da “nova direita” passam a vocalizar demandas e perspectivas de grupos da sociedade que até então não encontravam representantes dotados da capacidade de síntese necessária e com enorme habilidade em utilizar as redes sociais. Não quer dizer que não existissem as visões-de-mundo mais conservadoras. Apenas não haviam encontrado grupos que vocalizassem esses sentimentos difusos.

Nesse ínterim, já desde ação penal 470, o “mensalão”, a grande mídia monopolista engrossou de forma sistemática a narrativa que associou o Partido dos Trabalhadores de forma inequívoca, por vezes quase exclusiva, ao fenômeno da corrupção. Por outro lado, no âmbito da política tradicional, Dilma lidou diretamente com um governo dotado de capacidade decisória limitada e um Congresso Nacional rebelde liderado por Eduardo Cunha.

O que tornou os movimentos de massa diferenciados não foi tanto o uso das táticas de comunicação novas já experimentadas em 2013. O que há de novo é o conteúdo apresentado e pela primeira vez desde a redemocratização a ausência de atores ou pautas usualmente apresentadas pela esquerda tradicional. Até 2013 encontrávamos pautas de reivindicação inclusivas, de ampliação direitos. De 2013 em diante não houve sequer a fisionomia de esquerda. Neste ponto do diagnóstico concordo plenamente com Aluysio que me chamou a atenção para este fato.

Contudo é difícil dizer, conforme afirmei anteriormente, que a “política morreu”. Outros grupos, dotados de alta capacidade de negociação jamais arrefeceram. As mudanças que vivenciamos de 2016 para cá na legislação social são obra de grupos que se não redundam em grandes movimentos de massa, até pela natureza silenciosa com que atuam, são tão ou mais eficientes no diálogo com o sistema político tradicional. São grupos de pressão dotados de alto poder de fogo oriundos das 6 mil famílias que concentram boa parte da riqueza nacional. Promovem uma ação coletiva menos visível dado o convencimento promovido pelo dinheiro. Neste sentido na atual conjuntura é desnecessário inflar grandes movimentos da nova direita nas ruas e lidamos com uma contra-elite, pelo flanco esquerdo, profundamente fragilizada e carente de legitimidade.

O que ficará disso tudo? Como já disse Wanderley Guilherme dos Santos (1935), um dos decanos da ciência política brasileira, “o futuro não é materialmente verificável”. O que temos certeza é que a revolução informacional das últimas décadas, se modificou o cotidiano das nossas sociedades, não poderia ter efeito muito diferente nas mobilizações coletivas. Estas, tal como outrora, permanecem guiadas por interesses sendo este o móvel aglutinador. Todo o restante sobre o amanhã ainda “não decantou”. Aguardemos.  Porém, os “móveis” da questão do Zé prosseguem.

* Uma confissão tardia, sincera e necessária neste 03 de dezembro de 2017. Tomei de empréstimo o título do "cantautor" brasileiro Paulinho Moska. Moska lançou em 2003 o disco e a canção "Tudo novo de novo" que inspirou diretamente a forma como batizei esse texto. Se todos somos um pouco ladrões, e creio que somos, espero que a minha condição de réu confesso pelo menos amenize a pena vindoura.

** Texto publicado originalmente  em 24 de novembro de 2017 no blog "Opiniões" do jornalista Aluysio Abreu Barbosa. O blog "Opiniões" é parte do grupo Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ. Disponível em: http://opinioes.folha1.com.br/2017/11/24/origem-da-serie-ruas-do-brasil-resumida-por-george-gomes-coutinho/


*** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes