domingo, 20 de dezembro de 2020

O “caso ABIN”: colaboracionismo e recessão do radicalismo


Fonte: Revista Fórum.

O “caso ABIN”: colaboracionismo e recessão do radicalismo


Paulo Sérgio Ribeiro

 

É chegado dezembro. Um mês que, saturado de emoções como sempre o é, possui duração própria, dando de ombros para o mais do mesmo das folhas do calendário. Estas, é justo reconhecer, perderam qualquer serventia nos dias que se sucederam como um tempo morto, já que não é alvissareiro hipotecar nossas melhores expectativas para o virar de folha em janeiro sob uma democracia tutelada por militares revisionistas de 1964 e golpistas em 2016, consorciados de primeira hora[1] com interesses econômicos e corporativos que nos devolveram à “Belíndia” com a agenda ultraliberal de reformas a seguir seu curso.

 

Diante deste verdadeiro Mad Max chamado Governo Bolsonaro, bem poderíamos parar de batucar o teclado, admitir a derrota de 2018 em toda sua extensão e, tão logo, buscar distração com o que melhor nos apraz – isto, claro, para quem dispor de tempo e espaço sem sofrer pressões imediatas na luta pelo ganha-pão ou para, simplesmente, calar-se na rodinha de conversa –, mas recolher-se em meio a uma pandemia nos obriga a fazer o balanço entre escolhas individuais e um pacto coletivo.

 

Desde à emergência do Estado moderno enquanto forma-política do capital, a costura desse pacto se reedita a cada geração e, entre sua ascensão e declínio, os segmentos médios acabam por ter primazia na produção de símbolos que lhes emprestem, digamos, algum fator de coesão para uma "fuga para a frente" que acomodem as contradições do capitalismo em um mundo de trabalhadores(as) despossuídos(as). 

 

Tais símbolos, por óbvio, não se ofertam sem disputas por corações e mentes em torno de um projeto de nação, ainda que as visões correntes sobre a globalização e os discursos críticos do pós-colonialismo aparentem, por razões opostas, decretar-lhe sumariamente um fim. Nação: uma amálgama étnica e cultural que nos vincula a uma sociedade proteiforme cuja consciência coletiva se articula por um conjunto de narrativas sobre o passado e o futuro.

 

Já tivemos oportunidade de esboçar os liames entre Estado e nação em face da emergência da “socialidade em redes” e os prognósticos nada alentadores que ela acarreta[2], mas aqui gostaria de me deter nos dilemas próprios aos segmentos médios que azeitam essa relação entre poder e identidade tomando por mote o “caso ABIN”.  

 

Eis um preâmbulo do “caso ABIN”:

 

(1)  As advogadas do Senador Flávio Bolsonaro, filho do Presidente da República, Jair Bolsonaro, constituídas para defendê-lo no caso das “rachadinhas”, solicitaram uma reunião em 25 de agosto de 2020, no gabinete presidencial do Palácio do Planalto, com Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), apresentando-lhes documentos que supostamente evidenciariam o acesso ilegal, dentro da Receita Federal do Brasil (RFB), de informações levantadas por este órgão que alimentam os relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

 

(2)  Em um dos seus relatórios, o antigo COAF, rebatizado Unidade de Inteligência Financeira (UIF), detectou movimentações suspeitas na conta de Fabrício Queiroz, ex-assessor do então deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Tal relatório foi o estopim para uma investigação do Ministério Público Federal (MPF) sobre a possível existência de um esquema fraudulento no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na ALERJ que teria em Queiroz o seu, digamos, “homem da mala preta” a recolher a quase totalidade da remuneração de funcionários fantasmas contratados.

 

(3)  Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e mais 15 pessoas encontram-se denunciados pelo MPF por organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita, cabendo ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) aceitar ou não a denúncia. Caso aceite, Flávio Bolsonaro e os demais envolvidos serão réus.

 

Reportagem da Revista Época[3] aponta que a ABIN foi não só ouvidos para a defesa do senador Flávio Bolsonaro numa tarde qualquer de agosto, mas sua "consultora ad hoc" ao produzir relatórios que a orientassem sobre como obter documentos junto à RFB que balizassem a anulação do caso Queiroz, tendo por pressuposto a atuação de uma “organização criminosa” dentro daquele órgão que, alega a defesa do senador, operaria acessos não autorizados a dados fiscais protegidos por sigilo.

 

Os desdobramentos do caso das “rachadinhas” da inominável dupla Bolsonaro/Queiroz continuarão sendo um prato cheio para a crônica policial, gênero apropriado ao “clã Bolsonaro” em sua rota pavimentada entre o submundo da política fluminense e o distrito federal. Contudo, a exposição pública da ABIN, um órgão demasiado sensível para os interesses estratégicos do país, tornada suspeita de agir em defesa de um senador federal cujos rolos com a justiça, pasme, viraram assunto da segurança institucional da Presidência da República – a ABIN de Ramage é subordinada ao GSI de Heleno –, levou Moisés Mendes, um jornalista experiente e independente, a fazer uma provocação oportuna para o momento[4]: por que os servidores da ABIN e os demais quadros do Estado brasileiro não reagem à tamanha destruição institucional?

 

Para Mendes, além de especularmos sobre a base legal para o impedimento do presidente e a abertura de processos disciplinares nos órgãos envolvidos – ABIN e RFB –, cabe indagar como esses e demais órgãos estruturantes da república brasileira foram levados de roldão pelo colaboracionismo, na medida em que a extrema-direita instalada no poder testa, sem pudor nem temor, os controles internos daquelas instituições com o expediente típico de um Estado policial:

 

O uso da Abin só foi possível com a colaboração de gente de dentro de órgão, e não só de comandos. Quem colaborou?

Quem fez o serviço para os advogados de Bolsonaro dentro da Abin? Quem permitiu o acesso a informações que acabam denunciando, com nomes, os funcionários da Receita visados pela Abin?

[...]

Todos os que convivem com os operadores das tarefas determinadas pelos chefes a serviço de Bolsonaro sabem quem faz o quê e quem é vilipendiado por essas ações[5].

 

Perguntas certeiras, não resta dúvida. Contudo, creio que o colaboracionismo descrito pelo arguto jornalista não seja apenas o efeito de represálias em uma estrutura de comando corrompida pelo familismo amoral[6] do Governo Bolsonaro e blindada, de um lado, pelo corporativismo da caserna militar e, por outro, pelo reagrupamento da direita no parlamento com um Bolsonaro mercador de interesses fisiológicos do “centrão”. Ora, se Bolsonaro e sua criatura – o bolsonarismo – foram gestados bem antes de um governo de extrema-direita concretizar-se como um cenário sem volta, talvez possamos ler também esse colaboracionismo como um sinal perturbador da recessão do radicalismo da classe média.

 

Antônio Cândido[7] concebe o radicalismo enquanto conjunto de ideias e atitudes que serve de contrapeso ao movimento conservador que sempre predominou entre nós. Trata-se não propriamente de um pensamento revolucionário, pois, ao contrário de outras formações sociais como a uruguaia, a peruana, a chilena e a cubana, nunca fora decorrente de uma “doutrina politicamente avançada”[8] com suficiente abrangência em nosso debate público, mas de um posicionamento de autores outsiders cujas obras promovem um “modo progressista de reagir ao estímulo de problemas sociais prementes”[9].

 

O pensamento radical, sendo germinado nas classes médias e em certas frações das classes dominantes, é marcado pela ambivalência: ao mesmo tempo em que nos conduz a identificar-se com interesses pontuais do segmento potencialmente revolucionário da sociedade, as classes trabalhadoras, seus cultores se veem em rebelião contra sua própria classe, mas só até certo ponto. Assim, os problemas sociais na ótica do radicalismo de classe média, diante da impossibilidade de concebê-los enquanto expressão objetiva dos antagonismos entre as classes subalternas e a classe dominante, acabam circunscritos à nação como um todo, uma espécie de caução simbólica das soluções conciliatórias.

 

Todavia, Cândido não toma por menos a potencialidade transformadora do pensamento radical, uma vez que este venha a constituir-se em fator de ampliação da consciência do possível:

 

[...] em países como o Brasil o radical pode ter papel transformador de relevo, porque é capaz de avançar realmente, embora até certo ponto. Deste modo pode atenuar o imenso arbítrio das classes dominantes e, mais ainda, abrir caminho para soluções que, além de abalar a rija cidadela conservadora, contribuem para uma eventual ação revolucionária. Isso porque nos países subdesenvolvidos, marcados pela extrema desigualdade econômica e social, o nível de consciência política do povo não corresponde à sua potencialidade revolucionária. Nessas condições o radical pode assumir papel relevante para suscitar e desenvolver esta consciência e para definir medidas progressistas mais avançadas no que for possível. Digamos que ele pode tornar-se um agente do possível mais avançado[10].

 

Malgrado o radicalismo de classe média poder ser, em face de sua ambiguidade, também depositário de elementos de mitigação dos conflitos – algo que Cândido nomeia como “oportunismo inconsciente” – essa vertente do pensamento político é passível de contrapor-se ao velho transformismo, qual seja, ao conservar mudando. Desde as jornadas de junho de 2013 e, ato seguido, as manifestações de massa “verde-amarela” pelo impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, ficou patente que predomina nos segmentos médios uma interdição da imaginação política que recoloca o conservadorismo na ordem do dia.

 

O “caso ABIN” evidencia nada além do que o comprometimento de uma instituição que, pela própria excelência de sua atividade-fim, deveria estar melhor resguardada do “oportunismo” talvez nem tão inconsciente assim da fração proto-fascista da classe média nela recrutada por concurso público. Se houve um tempo em que conservadores e progressistas conciliaram pela defesa da soberania nacional – bastaria lembrar aqui da campanha “O petróleo é nosso!” nos anos 1950 –, agora prevalece o “salve-se quem puder” em carreiras de Estado cujos quadro técnicos carecem de uma visão de Brasil. 


Nem sei se seria o caso de recriminar aqueles(as) que queiram sair do Brasil, pois, sabe-se lá, não seja o Brasil que deles já se foi.



[1] Revista Fórum. “Villas-Bôas e Etchegoyen tiveram encontro secreto com Temer um ano antes do golpe”. Edição de 13/10/2020. Disponível aqui.

[2] Desenvolvemos esta análise no texto “Covid-19: um testa à resiliência dos Estados nacionais”, dividido em duas partes (aqui) e (aqui).

[3] Revista Época. "ABIN fez relatório para orientar defesa de Flávio Bolsonaro na anulação do caso Queiroz". Edição de 11/12/2020. Disponível para assinantes aqui

[4] Blog do Moisés Mendes. "Os servidores precisam reagir aos crimes de Bolsonaro". Publicado em 12/12/2020. Disponível aqui

[5] Idem.

[6] REIS, Elisa. Desigualdade e solidariedade: uma releitura do "familismo amoral" de Banfield. Encontro Anual da ANPOCS. Disponível aqui.

[7] CANDIDO, A. Radicalismos . Estudos Avançados[S. l.], v. 4, n. 8, p. 4-18, 1990. Disponível aqui

[8] Ibid., p.4.

[9] Idem.

[10] Ibid., p.5.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Repúdio à invasão violenta de evento acadêmico por bolsonaristas.


Repúdio à invasão violenta de evento acadêmico por bolsonaristas*.

 * Publicado originalmente em Change.org.

NOTA DE REPÚDIO

O Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas sobre a Democracia da Uerj (Cebrad/Uerj/CNPq) e o Laboratório de Alternativas Institucionais da UFF (LAI/UFF/CNPq) vêm a público manifestar seu mais veemente repúdio à ação perpetrada por militantes bolsonaristas que, no dia 03/12/2020, por volta das 19h, invadiram a live de lançamento do livro Bolsonarismo: teoria e prática, produzido em parceria pelos nossos núcleos de pesquisa e recém publicado pela Gramma Editora.

O evento, de cunho acadêmico, propunha-se a debater os temas ligados à natureza, desenvolvimentos e impactos do bolsonarismo como fenômeno sociológico e político sobre a sociedade e sobre as instituições políticas nacionais. Não havia nenhuma conotação partidária ou ideológica no encontro, cujo intuito era a livre discussão científica. Foi neste ambiente que militantes bolsonaristas se infiltraram e, aos gritos, tentaram silenciar os debatedores.

Não obtendo sucesso, postaram vídeos grotescos, de cunho pornográfico, com o objetivo de constranger os presentes e impedir o prosseguimento do debate. Ainda que tenhamos conseguido repelir os invasores e concluído com êxito a discussão, houve prejuízo para diversas pessoas que não puderam mais acessar a sala.

Os signatários desta nota entendem que é legítima a expressão de toda divergência política, ideológica ou teórica numa sociedade democrática, mas não podemos admitir práticas fascistas que têm por objetivo impor uma visão única e calar o divergente. Expressamos, assim, nossa repulsa a essa ação antidemocrática, que não pode prosperar na nossa sociedade.

Rio de Janeiro, 09 de dezembro de 2020

Geraldo Tadeu Monteiro, Coordenador do Cebrad/Uerj/CNPq

Carlos Sávio Teixeira, Coordenador do LAI/UFF/CNPq

Essa nota vai subscrita pelas seguintes entidades e pessoas, estando aberta à adesão de todas pessoas físicas e jurídicas que cerram fileiras na defesa dos Direitos Humanos e das liberdades democráticas.

Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais - Coordenação Regional do Rio de Janeiro;

APSERJ - Associação Profissional dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro

Sindicato dos Sociólogos do Estado do Rio de Janeiro

SINTIFRJ - Sindicato dos Trabalhadores do Instituto Federal do Rio de Janeiro

Professor Thiago de Jesus Esteves (IFRJ)

Professor Lier Pires Ferreira (Ibmec; CP2; Lepdesp)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A necessidade da luta, a urgência por justiça: uma nota para Cícero Guedes

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A necessidade da luta, a urgência por justiça: uma nota para Cícero Guedes*


* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.


Luciane Soares da Silva**


Hoje completamos um ano e dois dias do julgamento do assassinato de Cícero Guedes. Me dirijo especialmente aqueles que não conhecem a história de Cícero, alagoano, trabalhador da terra e mais um brasileiro negro a experienciar os horrores da condição de trabalho análogo a escravidão.


O julgamento de Cícero em 2019 foi importante para pensar o Brasil. Principalmente a ação do Judiciário. O resultado não diferiu de tantos outros. E a justiça não foi feita. Mas o que esperar de uma cidade marcada pelo braço de latifúndio e da cana, das relações desiguais e do racismo? A capacidade de organização e resistência de Cícero em Cambaíba nos servem de exemplo e dever. Exemplo de como é possível repensar o direito à terra e à justiça social. Dever de prática cotidiana com uma luta que seja capaz de alimentar os corpos e principalmente, libertar as consciências das formas de subalternização impostas pelas elites brasileiras no saudosismo autoritário que sentem da escravidão.


Cabe lembrar ainda do significado histórico de Cambaíba. Para a Comissão Nacional da Verdade, a usina pode ter sido utilizada para incineração de corpos sob o regime ditatorial em 1974. De lá para cá o local foi desfigurado em uma tentativa de apagamento da memória e das lutas populares. De lá para cá muita terra improdutiva permaneceu assim por obra e ação do Estado.


Temos como dever pela morte de Cícero e de tantos outros ativistas dos direitos humanos no Brasil, exigir a justiça e a partilha da terra. A forma de resolução de conflitos faz com que o Brasil ocupe desde 2019 o vergonhoso lugar de terceiro país que mais mata ativistas. Ficando atrás da Colômbia e das Filipinas. Particularmente ativistas ligados a luta pela terra e o meio ambiente.


O governo Bolsonaro intensificou estes ataques. Em 2019 foram ao menos 24 mortes, segundo reportagem do El País de julho deste ano. Chama atenção a morte de lideranças indígenas enquanto a Amazônia queima ao longo de meses sob a pasta de Ricardo Sales.


Cícero, conhecido de todos nós na cidade, dos movimentos sociais, estudantes, professores, população, significa a dignidade que nos falta nos momentos em que arrefecemos e acreditamos ser possível viver sem que se faça justiça aos mortos pelo Estado. Frequentemente a mando do capital que aqui tem a cara dos donos de terra. Proprietários  que enviaram jagunços para nos intimidar em agosto de 2019, quando visitamos Cambaíba[1] após declaração do presidente sobre a morte de Felipe Santa Cruz, torturado cruelmente nas mãos da ditadura civil militar brasileira.


No Dia Internacional dos Direitos Humanos faremos a necessária discussão sobre memória e justiça. Um ciclo que se fechou, dando esperanças de um futuro democrático, abre-se como uma roda nefasta girando sobre a cabeça daqueles que ousam opor-se a um governo recheado de militares. Um governo negacionista.


Ao voltar para o Mapa da Fome durante uma pandemia e sofrer o descaso do presidente, caberá a nós a tarefa de zelar e seguir exigindo saúde para famílias negras vivendo em miséria. E justiça para aqueles que tombaram sob o peso de um Estado que segue tratando a bala aqueles que ousaram exigir de volta à terra que lhes é devida. Porque a lavraram, a fizeram florir e alimentaram este país com seus braços.


Justiça para Cícero Guedes e para todos os mortos pelo Estado no Brasil.


[1] https://blogdopedlowski.com/2019/08/01/o-caso-riocentro-cambahyba-e-a-luta-pelo-direito-a-verdade/

 

**  Luciane Soares da Silva é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense  (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Divulgação: Seminário "Por que defender os direitos humanos no Brasil contemporâneo?"


Em 2020 torna-se especialmente importante discutir o legado da DECLARAÇÃO UNIVERSAL  DOS DIREITOS HUMANOS. A pandemia intensificou a desigualdade sobre o globo e no Brasil em particular, vivemos o caos na saúde e na educação sem respostas efetivas do governo federal e com mortes por COVID-19 aumentando exponencialmente nas últimas semanas. Ao mesmo tempo experenciamos formas autoritárias de resolução dos conflitos, intervenção na autonomia das Universidades e o Estado alvejando crianças nas favelas. A situação prisional também é grave. Assim como os dados de violência contra a mulher. E por último, a volta do Brasil ao Mapa da Fome revela que vivemos duas crises simultâneas: uma crise sanitária e uma crise humanitária. Este debate será feito pelo Núcleo Cidade Cultura e Conflito nesta quinta as 16 horas, Dia Internacional dos Direitos Humanos. 

Fonte: NUCC/UENF. Disponível em https://www.facebook.com/nuc.uenf

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Bate-Papo "O Brasil-Nação como Ideologia" com Fabrício Maciel

As Coordenações dos cursos de Ciências Sociais da UFF-Campos e o blog Autopoiese e Virtu em parceria realizaram em 09/07/2020 o bate-papo de lançamento do livro:

"O Brasil-Nação como Ideologia" Expositor:prof. Fabrício Maciel (UFF-Campos / PPGSP-UENF)
Mediação: prof. George Coutinho (UFF-Campos)



terça-feira, 24 de novembro de 2020

Entrevista - Campos refletida entre Wladimir e Caio como espelho do Brasil e do mundo

Fonte: Jotônio Vianna (aqui).

Entrevista - Campos refletida entre Wladimir e Caio como espelho do Brasil e do mundo*

 

Aluysio Abreu Barbosa

 

“Campos é o espelho do Brasil”? Na afirmativa, a frase é atribuída ao ex-presidente Getúlio Vargas, cujo legado ainda hoje divide cientistas sociais e cidadãos comuns. Como a cidade se dividiu, além do rio Paraíba do Sul que a formou, entre duas candidaturas na disputa do segundo turno a prefeito de Campos: Wladimir Garotinho (PSD) e Caio Vianna (PDT). Para saber o que esperar caso um ou outro vença o pleito final de 29 de novembro, a Folha ouviu, em ordem alfabética, o antropólogo Carlos Abraão de Moura Valpassos, professor da UFF-Campos; o advogado Carlos Alexandre de Azevedo Campos, professor da Uerj e Isecensa; a assistente social Erica Almeida, professora da UFF-Campos, a historiadora Guiomar Valdez, professora do IFF; e o cientista político Marcio Malta, professor da UFF. Além dos dois protagonistas do pleito, outros atores também estiveram sob análise, como sua revelação, a Professora Natália (Psol), e o atual prefeito, Rafael Diniz (Cidadania). Assim como a judicialização das urnas campistas de 15 de novembro, o monopólio masculino da nova Câmara Municipal “renovada” e o principal problema da cidade: sua grave crise financeira, em contraste com a miséria entre campistas que ela já gera. A partir de Campos, os cinco entrevistados deste painel também refletiram sobre a política do Brasil e do mundo.

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Folha da Manhã – É atribuída ao ex-presidente Getúlio Vargas a frase: “Campos é o espelho do Brasil”. Considerando as três últimas eleições, isso parece realmente ter se dado, com a busca do “novo” no pleito local a prefeito de 2016 e no presidencial, de 2018, para se refletir em 2020 no movimento de retorno à aparente segurança de nomes e grupos políticos tradicionais. Como você enxerga esse movimento na cidade e no país? Quais seriam suas causas?

 

Carlos Abraão Moura Valpassos – A frase sugere a ideia de que é possível pensar a questão “macro” através da análise do “micro”. Campos é influenciada pelo contexto nacional e, nesse sentido, reflete o Brasil, país que sofreu uma crise econômica e política ao longo da década de 2010, que resultou em um aumento drástico das taxas de desemprego e pobreza. Quando somamos a crise econômica às denúncias de corrupção e sua exploração coordenada através da internet, observamos uma forte rejeição aos mandatários do poder, novos atores foram então eleitos, não superaram a crise e prepararam o retorno de seus opositores.

 

Carlos Alexandre de Azevedo Campos – Acho as causas relativamente parecidas, nunca idênticas. Em Campos, além dos problemas jurídicos com Garotinho e Rosinha, tivemos problemas de gestão mesmo, de descontentamento. Rafael apareceu como uma nova política, mas não teve o sucesso esperado na gestão, não obstante eu entendo que tenha se empenhado. Problemas de gestão não permitiram a sua reeleição. No Brasil, Bolsonaro também apareceu como nova política, mas não só isso. Bolsonaro fez com que todo tipo de reacionarismo saísse do armário, ou seja, também representou uma virada ideológica. Hoje, acho que seus exageros ideológicos e sua falta de gestão fazem com que ele perca votos com o grande grupo não extremista que votou nele anteriormente, e isso pode fazer com que ele tenha o mesmo destino de Rafael. Os ciclos podem vir a ser os mesmos, mas as causas são só parecidas.

 

Erica Almeida – Não é sempre que a conjuntura nacional interfere nas eleições municipais. Todavia, as últimas eleições, para presidente e governador, em 2018, e para prefeito em 2016 e neste ano, não podem ser pensadas sem considerarmos as ações da Lava Jato e seus desdobramentos na política, particularmente, contra o PT e o impeachment da presidente Dilma. Além disso, também tivemos neste período a prisão do Cabral, as denúncias contra Pezão, Witzel e contra a gestão da prefeita Rosinha. Como se vê, foi um contexto marcado pela retórica contra a corrupção e que, de modo geral, teve um impacto nas escolhas dos eleitores, relegando as trajetórias e as pautas políticas.

 

Guiomar Valdez – Do ponto de vista da História não temos respostas ainda consistentes nesta conjuntura destacada. Entretanto é possível que suas causas estejam na convergência da crise do capitalismo a partir de 2008, perene, e não mais cíclica, com uma crise terminal da Nova República, abrindo uma transição com os infortúnios da insegurança. Assim, compreendo no Brasil e em Campos, que o “novo” confunde com o passado como segurança; que o “novo” se confunde com monstruosidades políticas. Situações típicas de períodos de transição, onde o “novo” não nasceu e o “velho” ainda não morreu. Daí…

 

Marcio Malta – As eleições de 2018 foram impulsionadas por muita fake news e uso indevidos das redes sociais, com impulsionamentos pagos indevidos. O fenômeno na verdade foi mundial e deu margem para aventureiros chegarem ao poder. A sociedade aprendeu com a experiência negativa e rechaçou esse campo nas eleições de domingo. Além do bolsonarismo, o neoliberalismo e seus desastres na economia, com sua prática de ajuste fiscal, também não tiveram vez.

 

Folha – Em uma série de 11 painéis (confira-os aquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaquiaqui e aqui), entre 18 de julho a 26 de setembro, a Folha ouviu 34 representantes da sociedade civil organizada, entre especialistas em economia, finanças, ciência política, sociologia e antropologia, além de gestores universitários, sindicalistas, empresários e juristas, sobre a crise financeira do município. Que pode ser resumida em um orçamento para 2021 entre R$ 1,5 bilhão a R$ 1,7 bilhão, com previsão total de gastos de quase R$ 2 bilhões, sendo R$ 1,1 bilhão só com folha de pagamento de servidor. Como fechar essa conta?

 

Abraão – A conta não fecha e não vai fechar. A cidade precisa criar receitas e para isso atrair a instalação de fábricas e indústrias, estimular o comércio, favorecer a agricultura familiar, incentivar a pesca artesanal e atacar em todas as frentes possíveis, em uma movimentação em diferentes multifacetada. É importante destacar o papel crucial desempenhado pelos servidores públicos em Campos, pois eles prestam serviços essenciais e também possuem autonomia em uma cidade marcada pelo clientelismo. O ataque aos servidores pode proporcionar ainda mais manipulação política.

 

Alexandre – Como disse anteriormente, mesmo com cortes de gastos de pessoal terceirizado e com algum aumento de arrecadação tributária, o novo governo vai precisar contrair empréstimos públicos. Buscar verbas federais também será fundamental. Salvo essas medidas, a conta não fechará.

 

Erica – Em entrevista, o prefeito eleito de Cabo Frio (PDT) disse que o servidor público não pode ser penalizado, nem com cortes de salário, nem com atrasos, porque são eles que realizam o governo. Penso que ele está certíssimo e que nós precisamos refutar as teses neoliberais sobre Estado mínimo, ajuste fiscal e avanço das privatizações. Somos um município com muitos problemas no que se refere ao emprego, à renda, aos direitos sociais fundamentais como infraestrutura urbana, mobilidade, saúde e educação. Defendo que o governo local se volte prioritariamente para estas questões revendo contratos abusivos, a dívida ativa e os excessos com relação aos terceirizados.

 

Guiomar – Vou responder sem muito entusiasmo sobre esse desafio. Porque a superação passaria por uma radical ação de transparência e honestidade do Executivo com a população e seus servidores, tratando do histórico da crise de forma clara e objetiva, do atual déficit orçamentário, bem como, organizá-los pedagogicamente em busca do consenso e de proposições juntamente com o quadro de especialistas. Novos investimentos e atividades econômicas e a articulação com as universidades estariam neste horizonte. O segundo turno, “é o novo que é passado”, logo, incapacitados para ousar novas formas de gestão pública.

 

Marcio – A questão não se resume a contas matemáticas. É preciso responsabilidade, mas não necessariamente com austeridade fiscal. É fundamental impulsionar a economia local, com uma perspectiva desenvolvimentista, pautada na inclusão de setores que passaram ao largo da história. A criação de uma moeda local, do turismo, fortalecer o comércio e indústria são algumas das medidas que poderiam estar no horizonte. Os temidos programas sociais podem auxiliar a roda da economia campista. Outro aspecto fundamental é não depender exclusivamente do petróleo, pois o preço dessa commodity é extremamente volátil.

 

Folha – No lado mais cruel da crise, Campos tem mais de 40 mil famílias na extrema pobreza. Condição que se acentuou com as crises sanitária e econômica da Covid-19, e pode ser vista no grande número moradores de rua em todos os pontos da cidade. Com déficit municipal estimado para 2021 em R$ 17 milhões/mês, como dar assistência social a essas pessoas, mantendo a atual folha de pagamento de pessoal e número de equipamentos municipais?

 

Abraão – Acho necessário levantar questões: alguém, conhecendo o histórico de nossa cidade e de nosso país, acredita, sinceramente, que o corte na folha de pagamento de pessoal e de equipamentos municipais vai, de fato, ser revertido em assistência social? Quando tivemos fartura, investimos em assistência social sólida e equipamentos municipais relevantes, que se converteriam em legados para as próximas gerações, ou assistimos ao gasto em serviços que se desmancharam rapidamente e em equipamentos “cruciais” como o Cepop e os arcos da Beira-Valão? Campos precisa de administração séria e novas receitas; não de novos bodes expiatórios.

 

Alexandre – Penso ser essencial que o novo governo reserve parte do orçamento para retirar essas pessoas das ruas, o que pode ser feito mediante aluguel social. Alimentação e tratamento de saúde também serão essenciais. Deve também buscar parcerias privadas para oferta de empregos mediante a criação de novas atividades. Deve priorizar gastos com essas pessoas, seja por razões de dignidade, seja pelos benefícios sociais em geral, inclusive no campo da redução de violência. Penso ser uma prioridade orçamentária. Uma opção política quase obrigatória ante os efeitos nefastos da Covid. Remanejar gastos orçamentários para tanto será necessário.

 

Erica – O governo atual foi o que menos gastou em Assistência Social, ainda que o município atravessasse uma das suas mais graves crises sociais desde os anos de 1980.  Em março de 2020, estima-se, que os extremamente pobres, ou seja, aqueles que vivem com uma renda familiar mensal de até R$ 89,00 por cabeçaatingiram 21,43% da população de Campos. Em 2010, eles eram apenas 3,67%. Isso é motivo suficiente, para que o novo governo junto com a sociedade civil estabeleça um pacto político que privilegia a vida, a segurança alimentar, a saúde e a educação das nossas crianças e jovens e não o inverso. É preciso hierarquizar as prioridades e proteger os mais vulneráveis.

 

Guiomar – O pano de fundo seria uma política de honestidade e de transparência “dos números” de forma qualitativa estabelecendo as prioridades. É importante desmistificar a Lei de Responsabilidade Fiscal e outras legislações que estabelecem o limite de gastos com pessoal. Para cortes não bastariam os números dos gastos “em si e isolados”, isso que caracterizaria a qualidade nas decisões. Ter o desafio orçamentário e o programa do eleito como referência na Assistência Social e os servidores públicos concursados da área como consultores e propositores das prioridades, dos gastos e até dos cortes.

 

Marcio – No tocante à folha atual de pagamento é preciso acabar com os RPAs e estabelecer concursos públicos. Os equipamentos municipais quando bem administrados não são um problema em si. O Palácio da Cultura é um exemplo, foi reformado recentemente e poderia estar em pleno uso da população. Parece ser uma lógica invertida, onde não é priorizado o bem-estar da população. A pobreza em Campos é estrutural, mas foi agravada com a gestão neoliberal da atual Prefeitura, que fechou espaços fundamentais no combate à fome, como o Restaurante Popular. É preciso gerar emprego e incentivar mecanismos de transferência de renda.

 

Folha – De volta à questão político/eleitoral, como analisa a renovação de 80% da Câmara Municipal? Foi um movimento inverso, no pleito proporcional, do eleitor que na majoritária optou pelo retorno das duas principais oligarquias políticas da cidade? Olhando as 21 caras da nova Câmara, à exceção dos quatro reeleitos, há outros quatro que já foram vereadores e cinco nomes novos que representam velhos ocupantes, além da cadeira cativa em rodízio entre pastores da Igreja Universal. Esse novo é tão novo assim?

 

Abraão – É preciso destacar que existe uma prática, já antiga, de os vereadores indicarem seus aliados políticos para ocuparem postos de trabalho na Prefeitura. Desse modo, cada vereador acaba por “empregar” na Prefeitura um contingente de pessoas. Entendo que a eleição de vereadores acaba por colocar em oposição pessoas que possuem perspectiva de terem seus interesses atendidos por seus candidatos. E que os candidatos que apresentam maior capacidade de retribuição, de modo personalista, do apoio político recebido, acabam obtendo maior apoio e, consequentemente, sendo eleitos. Não observei mudança significativa nos atores dessa antiga peça.

 

Alexandre – Não vejo assim que o campista escolheu voltar ao velho na eleição majoritária. Não sou tão cruel assim com o fator hereditário. Filhos não devem carregar para as suas vidas os erros dos pais, nem serem punidos para tanto se não colaboraram com os erros. Não gostei do governo de Arnaldo; já disse aqui que, para mim, foi o pior de todos. Mas não culpo o seu filho por isso. De Caio, sei apenas que ele não possui qualquer experiência. Também não gostei dos governos de Garotinho e Rosinha, já os derrotei algumas vezes no Judiciário. Mas não atribuo a Wladimir qualquer culpa por eles. Ao contrário, acompanhei com grata surpresa o ótimo desempenho dele como deputado federal. Acho que o segundo turno é meio que uma renovação que fora desenhada desde a eleição passada, e que se firmou por conta dos problemas de gestão de Rafael. Sobre a Câmara, concordo que não há tanta novidade. Na realidade, muito pouca novidade. Acho que houve a dança das cadeiras natural, própria de Campos.

 

Erica – Parece que esse movimento de pulverização das siglas partidárias se deu em todo o país e, mais uma vez, eu penso que ele tem uma relação direta com as novas coalisões políticas que se desenharam a partir do impeachment da Dilma. Embora os acordos locais tenham uma certa autonomia, eles não são completamente descolados das alianças políticas nas escalas estaduais e nacional. E mesmo que o eleitor tenha escolhido nomes novos no cenário político local, os partidos não o são e muito menos as suas plataformas, basta observar a ausência das mulheres e de outros segmentos.

 

Guiomar – É fato o movimento inverso entre proporcional e majoritária. Nem sempre renovar, mudar, significam avanços qualitativos, superação de uma política para melhor, social e eticamente mais justa. Volto ao meu ponto de vista de que vivemos uma transição e à afirmação de Vargas acima citada: “Campos é o espelho do Brasil”. Ora, uma avaliação lúcida do pleito eleitoral local e nacional permite indicar o “retorno da política tradicional” com rostos novos e o crescimento dos partidos de direita e de centro-direita. Não é isso que está posto em nossa Câmara? Esse “novo” é “uma roupa que não se veste mais”!

 

Marcio – Esse é o paradoxo da tão apregoada renovação. Muitas vezes o novo já nasce velho. Campos perdeu uma oportunidade de renovar de verdade, tirando figurões tradicionais da Câmara Municipal. O sistema eleitoral possui barreiras difíceis de serem suplantadas, como a dificuldade do financiamento das campanhas, que ainda convivem com práticas clientelistas como a compra dos votos. E por último, é necessária uma mudança de mentalidade, saber da importância do Legislativo em fiscalizar o Executivo e propor leis que engrandeçam a cidade.

 

Folha – Outro questionamento na nova Câmara é a ausência de mulheres. Para uma cidade que tem Benta Pereira como heroína histórica e uma Casa do Povo cuja participação feminina foi inaugurada por uma negra, Hermeny Coutinho, em 1971, seguida de Antônia Leitão, eleita em 1972, passando em tempo mais recente por edis também atuantes, como Ivete Marins, Beth Couto e Odisséia Carvalho, entre outras, o monopólio masculino é um retrocesso? Por quê?

 

Abraão – A política em Campos reflete aspectos clientelistas, patrimonialistas e personalistas que estão no Brasil desde o nascimento de nossa República. Nesse contexto, esquecemos que a administração pública é… pública… e por isso deveria atender a diferentes interesses e necessidades presentes na população. Quando não temos mulheres na Câmara, questões importantes relativas às demandas femininas deixam de ser vislumbradas. O monopólio masculino na Câmara significa que demandas sociais legítimas, de parcelas significativas da população, não serão contempladas. A perda de diversidade representativa é a perda de diversidade em serviços e leis.

 

Alexandre – Um baita retrocesso. Acho que faltaram candidatas mais novas, com boa expressão política como a Professora Natália, candidata a prefeita. E isso é fatal em uma sociedade majoritariamente conservadora e machista como a campista. Mas veja um lado positivo: me impressionei muito com a Professora Natália; penso que ela tem um ótimo futuro político pela frente. Esse já é um ganho para a população feminina de Campos advindo destas eleições.

 

Erica – Em uma sociedade marcada pelas desigualdades socioespaciais e pelas opressões de gênero e étnico-racial, em um contexto de avanço do feminicídio, da violência doméstica e sexual, toda a forma de monopólio é um retrocesso. O monopólio feminino também seria. A proposta é que o Legislativo seja o mais representativo possível e isso demanda legisladores que representem as pautas e os interesses dos trabalhadores, de modo geral, e, também, de algumas particularidades vinculadas ao gênero, à etnia, à opção sexual… O Legislativo não pode ignorar as demandas apresentadas por esses grupos sociais, organizados em inúmeros movimentos e organizações.

 

Guiomar – Na vida política representativa não aprecio monopólio de qualquer tipo. Entretanto defendo que ser homem, mulher, negro, branco, indígena, pobre, lgbt, idoso, jovem, religioso, etc, em si, não significa, para mim, ser progressista, digno, honesto, responsável, solidário com quem vive-do-trabalho, etc. E é isso que busco em termos ético-humanistas, por exemplo, numa Câmara Municipal. O monopólio masculino e não progressista instalado que é um retrocesso. Pois tende a manutenção do injusto status quo para a maioria, bem como, a obstaculizar o avanço dos direitos humanos e do trabalho.

 

Marcio – Com certeza configura um retrocesso. Afinal Campos historicamente se marca pelo patriarcalismo. E entrou na pauta nacional com um caso como das “Meninas de Guarus”. Faz falta para a cidade não ter representatividade feminina, que em termos numéricos é a maior parte da população de acordo com dados censitários. Existiam diversas candidaturas femininas, o triste é o fato delas não terem sido contempladas nas urnas.

 

Folha – Em oposição à nova Câmara de Campos, quatro prefeitas foram reeleitas e uma eleita na região: Carla Machado (PP) em São João da Barra; Fátima Pacheco (DEM), em Quissamã; Francimara (SD), em São Francisco; Cristiane Cordeiro (PP), sub judice em Carapebus; e Geane (PSD), em Cardoso Moreira. Campos e RJ tiveram Rosinha Garotinho (hoje Pros) no Executivo. Assim como o Brasil teve Dilma Rousseff (PT). E os governos e legados das duas últimas foram e permanecem muito questionados. Como você vê? Há algo comum ao gênero no poder?

 

Abraão – Quando Rosinha foi prefeita e governadora, as pessoas acreditavam que quem governava, de fato, era seu marido. Quando a gasolina passou dos R$ 2,50 no governo Dilma, várias pessoas imprimiram um famigerado adesivo de uma mulher de pernas abertas, com o rosto de Dilma, e colaram na boca dos tanques de seus carros. Então surgem as perguntas: quando Garotinho foi prefeito e governador, diziam que era Rosinha a governante? Quando a gasolina passou dos R$ 5,00 no governo Temer e assim permaneceu com Bolsonaro, fizeram adesivos deles? Onde existem pessoas, existem questões de gênero; e na política isso é bastante explicitado.

 

Alexandre – Não correlaciono o desempenho ao gênero, não mesmo. Carla é um fenômeno muito positivo, uma campeã, já a Dilma, um desastre, que presenciei quando vivi em Brasília. Se eu fosse apontar algo comum, seria apenas a força representativa, o símbolo positivo da chegada de uma mulher ao poder em um país dominado por homens na política. Mas é necessário mostrar gestão, e Dilma não o fez.

 

Erica – O fato de ser um(a) politico(a) do sexo feminino, do sexto masculino ou transexual não dá conta de toda diversidade cultural e identitária e nem das divergências no campo ideológico. Nesse sentido, nem toda mulher pode ser considerada um avanço para a agenda feminista. A ministra Damares é um exemplo; ela é a contra agenda feminista. Infelizmente, além das múltiplas violências contra a mulher, o país tem sido marcado por ataques machistas e desqualificadores às candidatas, em especial, às mulheres negras e trans. A boa notícia é que há resistência e, muitas delas foram eleitas, mesmo neste cenário de regressão dos direitos.

 

Guiomar – Não! A questão de gênero não define tendências políticas no poder. O que define é a visão de mundo traduzida em opções partidárias. Um país cuja a história política de mais de 500 anos, que possui no máximo 50 anos, com interrupções, de exercício democrático, as heranças do autoritarismo, clientelismo, patrimonialismo, machismo, independem do gênero. Sem falar nas permanências econômicas e culturais. Por isso ter mulheres no poder, em si, não significa ruptura com essas heranças. Observem os partidos que elas representam. Tem, sim, densidade simbólica para o histórico das lutas feministas.

 

Marcio – A representatividade feminina é importante, mas não basta. Essas mulheres têm que possuir uma conduta política ilibada, que combatam a corrupção e representem os anseios femininos nas políticas públicas. Uma perspectiva de conduta justa é fundamental. A região de fato elegeu muitas mulheres e algumas se contrapõem ao bolsonarismo, como o caso de Carla Machado e Fátima Pacheco, que derrotaram setores conservadores de suas cidades. Mas é preciso aprofundar conquistas sociais e ter uma perspectiva de incluir setores pobres da sociedade.

 

Folha – Sem sair da participação feminina na política, é unânime reconhecer que a Professora Natália (Psol) foi a grande revelação da eleição majoritária. Candidata pela primeira vez, ela teve 11.622 votos (4,68%), apenas 1.728 a menos do que os 13.350 (5,45%) dados ao prefeito Rafael Diniz (Cidadania), com a máquina municipal na mão. Como vê o desempenho de uma e do outro, eleito ainda no primeiro turno de 2016 com 151.462 votos (55,19% daquele pleito)?

 

Abraão – Em 2016 Rafael Diniz foi eleito no primeiro turno, em uma manifestação clara de insatisfação com os governos anteriores. Ao longo de seu governo, a população não observou melhoras na cidade e isso levou ao resultado da eleição. Muita gente insatisfeita com a gestão de Rafael e contrária ao que representam os outros candidatos, viram na Professora Natália uma candidata bem articulada, inteligente e com uma pauta progressista. Por isso votaram nela, mesmo sabendo de suas parcas chances de ser eleita. A Professora Natália chegou como desconhecida e saiu fortalecida do pleito, ao contrário de Rafael, que viu nas urnas a reprovação de sua gestão.

 

Alexandre – Como eu disse acima, fiquei encantado com o discurso da Professora Natália e a firmeza de suas exposições. Ela mereceu os votos. Quanto a Rafael, tenho uma enorme simpatia pessoal por ele, o considero um prefeito que buscou o melhor, mas esbarrou em limitações que não soube contornar, ou mesmo eram impossíveis de contornar. Enfim, teve problemas de gestão que resultaram na fraca votação, o que já me parecia previsível.

 

Erica – Natália chama atenção para essa outra Campos. Seus eleitores querem um governo parametrado por outras métricas, por outra lógica que não aquela vinculada aos interesses econômicos e corporativos. Esse movimento também foi vitorioso nessas eleições. O país não elegeu só os candidatos dos partidos liberais e conservadores; foram eleitos também, vereadores e prefeitos de esquerda e centro-esquerda, transsexuais, mulheres negras, quilombolas e indígenas, demonstrando a necessidade de inclusão das pautas feministas e de gênero, antirracistas e socioambientais.

 

Guiomar – Concordo com este reconhecimento. O Psol em Campos refletiu positivamente a performance nacional do partido nesta eleição, um avanço localizado nos seus passos para consolidar-se no campo progressista. Exemplo maior é sua presença no segundo turno na cidade de São Paulo, independente do lulismo. Quanto ao desempenho pífio do prefeito de Campos, dentre outras razões, destaco o seu “ensimesmamento” no poder, impedindo um diálogo com a população organizada sobre a profunda crise financeira que herdou e suas consequências para todas as áreas. Inclusive na divulgação dos seus feitos neste contexto.

 

Marcio – De fato, a figura da Professora Natália foi saudada por muitos especialistas como o principal fato novo destas eleições. Oxigenou o cenário e trouxe um posicionamento propositivo e embasado. O resultado mostra que existem setores da cidade que anseiam por essa renovação e se enxergam nessa candidatura que reivindicou o respeito à educação, aos negros e a orientação socialista. Por outro lado, a derrota estrondosa de Rafael Diniz é fruto de sua política neoliberal, de esvaziamento dos programas sociais. Não mostrou a que veio. E venceu em 2016 tão somente por um desgaste da família Garotinho na época.

 

Folha – Entre os militantes de Natália, houve queixa do resultado das urnas. O fato é que a esquerda goitacá sempre fez, no máximo, uma cadeira na Câmara, este ano ausente. Para prefeito, o melhor desempenho foi em 2012, com o segundo lugar do saudoso Makhoul Moussallem. Não impediu a reeleição de Rosinha Garotinho (hoje, Pros) no primeiro turno, mas fez 61.143 votos (25,52%). Que o médico conquistou por ter excedido pessoalmente o PT. Qual o caminho à esquerda em Campos? O Psol assume nele o protagonismo? E no Brasil?

 

Abraão – Aqui vale recordar a frase da primeira pergunta: “Campos é o espelho do Brasil”. No cenário atual, o Psol se destaca como partido progressista, defensor de uma política preocupada com os trabalhadores e as parcelas mais pobres do país. A esquerda imaculada hoje está no Psol, pois o PT foi estigmatizado ao longo dos últimos anos. Apesar de relevante, a esquerda no país, e em Campos, é marcada por muitas fissuras. São muitas disputas internas que prejudicam a formulação de estratégias de articulação para o sucesso no pleito eleitoral. A criação de alianças e a formulação de estratégias, para além das divergências, parece ser crucial para a esquerda.

 

Alexandre – Esses conceitos são complicados. Garotinho, em 1988, quando eleito pela primeira vez, no PDT, não era o “candidato da esquerda” contra a direita liberal e conservadora que governou Campos por tantos anos? Penso que sim. Depois, infelizmente, descambou para o populismo puro. Acho que o caminho da esquerda no Brasil é levantar alto a bandeira do antibolsonarismo, mas sem flertar com o mesmo extremismo de Bolsonaro. Se o Psol souber fazer isso, poderá ganhar ainda mais espaço, o espaço que já foi do PT em todo o Brasil.

 

Erica – Eu só posso responder como uma eleitora da esquerda. Antes de pensar na hegemonia deste ou daquele partido, me interessa o avanço das pautas da esquerda: emprego, direitos civis, proteção social, direitos humanos, proteção ambiental, ou seja, tudo aquilo que a sociedade brasileira construiu na Constituição de 1988 e que vem sendo destruído pelos representantes do ultraneoliberalismo desde 2016. Penso que as alianças serão fundamentais, não só entre os partidos de centro-esquerda, mas, também, com os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil que não podem ser desprezados na reconstrução deste país.

 

Guiomar – A tarefa da esquerda em Campos, como a nível nacional, será árdua! O resultado dessa eleição mostrou também em números o aprofundamento da sua crise, iniciada já no primeiro governo Lula, escancarada em 2013, anunciando um definhamento em 2016 e em 2018. Vai exigir coragem, resiliência, a prática radical dos valores ético-humanistas para a superação das amarras históricas do autoritarismo, populismo e personalismos, que estruturalmente permaneceram nos partidos de esquerda. Acho cedo demais historicamente para afirmar neste momento que o Psol aqui ou nacionalmente assumirá o protagonismo na esquerda.

 

Marcio – Em termos nacionais o Psol tem ocupado esse vácuo deixado pelo PT, que caminhou ao centro, compondo alianças muitas vezes questionáveis. Em Campos não foi diferente e o Psol tanto na eleição de 2018, quanto nessa, soube aproveitar e defender esse legado da resistência a projetos excludentes. Ao que tudo indica tem grandes chances de conquista frutos no legislativo em uma próxima eleição, à medida que é um partido que reorganizou recentemente seu diretório municipal. A própria Professora Natália parece ter futuro promissor.

 

Folha – A eleição presidencial de Joe Biden nos EUA e o primeiro turno nos municípios brasileiros parecem marcar a derrota da extrema-direita, mas com inflexão ao centro, não à esquerda. Como você vê? Em Campos, o segundo turno entre Wladimir Garotinho (PSD) e Caio Vianna (PDT, mas com vice do PSL) reflete isso? Jair Bolsonaro foi o grande perdedor das urnas de 15 de novembro? E o PT, fora do turno final em todas as capitais brasileiras, à exceção do Recife?

 

Abraão – A eleição de Campos constitui uma alternância de poder entre famílias de antigos governantes e parece não possuir as marcas da oposição entre esquerda e direita que caracteriza a polarização nacional. Políticos de centro ocupam o poder há décadas por aqui. Bolsonaro, por sua vez, não foi um sucesso como cabo eleitoral, mas é preciso lembrar que as eleições municipais são diferentes das eleições presidenciais; sentimentos e interesses distintos caracterizam os pleitos. Nesse sentido, observar o fracasso dos candidatos bolsonaristas não é uma garantia de que o próprio Bolsonaro vá fracassar em sua reeleição, ainda mais com a estigmatização do PT.

 

Alexandre – Concordo com você. A eleição de Biden e os resultados de nossa eleição refletem um refluxo, e rápido, de políticas como o trumpismo e o bolsonarismo. Esse modo extremo de pensar a política, para alguns, de não fazer política, não vai acabar, mesmo perdendo eleições, mas vai se enfraquecendo. Bolsonaro não tem partido, mas a sua forma de fazer política saiu derrotada nas eleições. Ele tem que ser muito burro ou arrogante para não enxergar a derrota pessoal. Os seus eleitores preferem falar na “diminuição do PT”, como se o contraponto sempre fosse o crescimento de Bolsonaro. Esquecem que existe a virada ao centro, seja mais à direita, seja mais à esquerda. O segundo turno de Campos reflete isso. E mais: candidata do Psol, Natália deu uma surra nos dois candidatos, juntos, que se declararam bolsonaristas, Tadeu e Jonathan Paes. Isso diz muito.

 

Erica – Concordo com as análises que identificam a derrota da extrema-direita, do negacionismo e da política do ódio representada pelo presidente da República. Sobre os partidos liberais, chefiados pelos “velhos” políticos ligados às oligarquias regionais, o seu crescimento tem relação com os episódios recentes na política. É preciso lembrar que quem comandou o impeachment de 2016 não foi Bolsonaro. Portanto, o protagonismo destas forças políticas hoje já era esperado. Mas, vale ressaltar que além do PT saíram dessa eleição de primeiro turno com menos prefeituras: PSB, PSDB e MDB. O que mostra a rearticulação dos partidos mais à direita.

 

Guiomar – A vitória de Joe Biden na eleição presidencial, de fato, é um “respiro civilizatório” diante das vitórias da irracionalidade na política, mas, sem nenhum romantismo de mudança de lugar do nosso país no mundo. É também fato que neste momento podemos constatar a derrota eleitoral da extrema-direita, do bolsonarismo. Entretanto, não dá ainda para termos esperanças em 2022, já que a mudança na correlação de forças caminhou para a centro-direita. O segundo turno em Campos reflete isso, sem dúvidas. O PT lulista pós-eleição talvez esteja vivendo uma “junção de epílogo e posfácio”, se nada acontecer de novo.

 

Marcio – O ciclo neoliberal dá sinais de esgotamento por todo o mundo. Para além dos Estados Unidos, o mesmo ocorreu na Bolívia, Argentina, dentre outros países. Parece que no Brasil o mesmo ocorreu no último domingo. Mais um rechaço plebiscitário contra essas políticas públicas de Estado mínimo que um crescimento real da esquerda, por isso o crescimento do centro e um não avanço do PT. Ainda é cedo para falarmos de fim do bolsonarismo, afinal os próximos dois anos são essenciais na disputa de horizontes a serem construídos.

 

Folha – Dos espectros políticos à realidade dos números, Wladimir teve 42,94% (105.526 votos) no primeiro turno, contra 27,71% (68.732 eleitores) de Caio. Para que este consiga tirar essa grande diferença e se eleger prefeito, teria que conquistar pelo menos três em cada quatro dos 72.817 votos dados a outros candidatos no primeiro turno, sem abstenção, branco ou nulo no segundo. Matematicamente, é possível. E eleitoralmente? Por quê?

 

Abraão – Caio e Wladimir, apesar de adversários no pleito, se assemelham em diferentes aspectos. Ambos são jovens, filhos de ex-prefeitos e não possuem uma identidade política com inclinação de esquerda ou direita. Assim, dificilmente os eleitores da Professora Natália vão aderir a um dos candidatos, por exemplo. Imagino que, a não ser que algo muito extraordinário ocorra, a tendência seja de um aumento nas abstenções, nos votos brancos e nulos. O desafio de Caio é atrair os votos de um eleitorado que não se sente representado por ele, e isso em um intervalo de tempo muito curto.

 

Alexandre – Em política, quase tudo é possível, né? Acho que tudo vai depender das alianças. Só que a campanha de Wladimir teve algo inusitado para mim: muitas pessoas que conheço, que não suportam politicamente os seus pais, votaram nele porque enxergaram algo diferente, além de considerá-lo o mais preparado. Acho que ele aproveitou bem a sua passagem na Câmara dos Deputados, e isso foi decisivo para ele convencer esse grupo de pessoas, que não acredita no garotismo, mas confia em Wladimir. Se Rafael tivesse obtido os resultados de gestão que a maioria esperava, ele seria o favorito. Sem Rafael no páreo, penso que Wladimir é o favorito.

 

Erica – Penso que o primeiro desafio de ambos será convencer os eleitores a irem votar, particularmente aqueles que parecem não se identificar com nenhum dos dois projetos. Por outro lado, a votação nos demais candidatos derrotados no primeiro turno, indica, ao meu ver, uma dificuldade dos eleitores em reconhecer o Caio como uma liderança política. Mas, segundo turno é uma outra conversa, com novas alianças, negociações e perspectivas. Talvez, a novidade esteja em se desvencilhar das experiencias passadas e oferecer um outro modo de governo, mais transparente, menos clientelista e mais abertos às demandas populares.

 

Guiomar – Mesmo diante dos dados explicitados na pergunta, nada é impossível de acontecer eleitoralmente. A história da política brasileira mostra isso, inclusive, recentemente. Agora, é improvável que Caio Viana vença este segundo turno. Considerando o perfil partidário/eleitoral de centro-direita da nova Câmara e de outros candidatos que perderam, lembro que este espectro político tem em sua natureza o fisiologismo e o pragmatismo. O velho clientelismo não resistirá às chances dos 42,94%. A ver.

 

Marcio – A política não se resume em matemática. A eleição do segundo turno é uma outra composição. Nesse ano em específico, Caio teria que correr atrás daqueles que se abstiveram e tentar estabelecer composições com os derrotados, que muitas das vezes é difícil por conta da disputa no primeiro turno.

 

Folha – Wladimir talvez tenha seu maior obstáculo na Justiça Eleitoral. Não pela “Chequinho” dos seus pais, mas pela desincompatibilização fora do prazo do seu vice, Frederico Paes (MDB), do Hospital Plantadores de Cana (HPC). Que teve a candidatura indeferida no Tribunal Regional Eleitoral (TRE), fazendo com que os votos da chapa fossem divulgados como “Anulado Sub Judice”. A decisão final caberá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E parece dividida em dois juízos de mérito: a condição do vice e a contaminação, ou não, da chapa. Como você projeta?

 

Abraão – As regras do processo eleitoral são as mesmas para todos os candidatos. É espantoso que um erro dessa natureza aconteça na formação de uma chapa com grande potencial de sucesso em uma cidade do porte de Campos. E, uma vez constatada a irregularidade, as instituições competentes passam a atuar. Agora, cabe ao Tribunal Superior Eleitoral cumprir seu papel de analisar e julgar. Infelizmente tudo isso se dá em um contexto de grande questionamento e insegurança em relação às instituições. Mais uma vez o processo eleitoral em Campos é marcado por irregularidades e incertezas.

 

Alexandre – Há diversos precedentes do TSE no sentido de não haver a contaminação, ou seja, de as condições de elegibilidade serem pessoais, do vice e do prefeito, de forma que a chapa não seja contaminada pela ausência em relação a um desses integrantes. Na chapa, o problema foi com o vice, o que pode acarretar o indeferimento do seu registro, sem que isso importe em anular o registro da chapa toda. Muitos desses precedentes envolveram casos de improbidade administrativa, inclusive. No caso da chapa de Wladimir, o problema foi só o do tempo de desincompatibilização, o que pode ajudar. Em casos análogos, o ministro Barroso, hoje presidente do TSE, entende que só em casos muito extremos não deva prevalecer a vontade das urnas, caso o verdadeiro cabeça da chapa for o candidato a prefeito, de forma que a impugnação do vice não deve contaminar toda a chapa eleita pela maioria dos votos. Este é caso em Campos, ao menos no primeiro turno. A briga vai ser boa, mas vejo boas chances para o deferimento, ao menos, para Wladimir.

 

Erica – Mais recentemente, o Brasil tem experimentado sentenças inusitadas e, muitas vezes, ao gosto do freguês, geralmente as elites. O protagonismo político de alguns juízes tem sido duramente criticado pelos próprios pares. A judicialização da política é um caminho perigoso e extremamente nocivo à democratização. Por mais que a democracia apresente problemas, e a democracia brasileira tem muitos limites, ela é a melhor opção às ditaduras militares e ao fascismo. Quanto à questão da chapa em particular, não saberia analisar. No entanto, penso que a Justiça deva se esforçar sempre para respeitar a vontade do eleitor, ela deve ser soberana sempre.

 

Guiomar – Dado o atual perfil dos magistrados do TSE, para mim, judicialistas, em especial, o presidente desta Corte, Luís Roberto Barroso, existe uma probabilidade alta de indeferimento da chapa.

 

Marcio – Existe jurisprudência favorável à aprovação da chapa. O jogo ainda não está decidido. Caberá também ao posicionamento dos juízes em questão. Foi um erro infantil a não desincompatibilização do vice em tempo hábil, mas pode ser ainda ser revertido. O lado negativo é que traz uma insegurança institucional para o pleito, mesmo depois do mesmo decorrido.

 

Folha – A depender do resultado e do tempo da decisão do TSE, não se descarta nem o adiamento do segundo turno para reinseminação das urnas, ou a anulação do pleito. Tudo isso cai por terra se o TSE deferir a candidatura de Frederico, ou se entender que um indeferimento não afetaria Wladimir. De qualquer maneira, como vê o fato do processo eleitoral de Campos ser mais uma vez definido pelo Judiciário?

 

Abraão – O tempo do Direito não é igual ao tempo da política. O TSE foi acionado em função de uma irregularidade no processo e agora precisa definir as consequências disso. A decisão sobre o processo, no entanto, pode não se dar em consonância com o calendário político, o que cria uma grande incerteza. E mesmo com essa indefinição e a possibilidade de anulação da candidatura, a chapa questionada foi a mais votada na cidade, com ampla maioria de votos. A população, que foi a Zonas Eleitorais muitas vezes lotadas em pleno contexto de pandemia e aumento do número de casos, continua sem saber sobre a validade de seus votos. Situação muito ruim.

 

Alexandre – Muito ruim, mas infelizmente parece que naturalizamos, no Brasil todo, a judicialização não apenas da política, mas das crises políticas e dos resultados eleitorais. Isso tem ocorrido nos três níveis federativos. Nesse caso, acho que o Brasil se tornou o espelho de Campos.

 

Erica – Como já disse na questão anterior, o Judiciário existe para cumprir a lei que não é construída por ele e sim pelo Legislativo. Nesse sentido, penso que ele deve sempre se ater à Constituição de 1988 e às demais legislações. Não vejo com bons olhos a politização nem do Judiciário, nem do MP.

 

Guiomar – Vejo a judicialização da política, não apenas no âmbito eleitoral, como um fenômeno da crise final da Nova República, do esgotamento do seu modus operandi traçado e levado às últimas consequências da velha forma de se fazer política. É frustrante esse processo. Nosso município, afirmado em pergunta anterior, é, segundo Vargas, “o espelho do Brasil”, não me estranha as constantes judicializações dos pleitos e dos candidatos eleitos já empossados. Repito, é frustrante a naturalização deste fenômeno. Como ainda o “novo não nasceu”… haja paciência histórica!

 

Marcio – A judicialização da política não é salutar, pois traz incertezas e esvazia a importância do sufrágio e da vontade popular. Porém, nesse caso específico não é por si só uma discussão política, mas muito mais técnica, que acaba por se revestir em última instância em uma discussão também de ideias, afinal os juízes não vivem apartados da sociedade.

 

Folha – Como avalia as candidaturas de Wladimir e Caio? Quais são, em seu entender, a maior virtude e defeito de ambos? O que projeta para Campos no governo de um e do outro? Vê o risco de qualquer um deles, se eleito, sair da Prefeitura em 1º de janeiro de 2025 com tanta ou mais rejeição popular que Rafael? Se isso acontecer, o atual prefeito, que antes foi vereador de brilho na oposição, pode ser popularmente redimido?

 

Abraão – A futurologia é muito arriscada, por isso é mais fácil falar sobre o que já aconteceu ou sobre o que está acontecendo. Wladimir e Caio carregam nas costas o fardo de serem descendentes de famílias que fizeram administrações desastrosas de nossa cidade. Ao mesmo tempo, como aqueles foram tempos de fartura, suas famílias estiveram à frente do governo em tempos de melhores condições de assistência social, emprego e renda. O destaque que recebem decorre desses “tempos melhores”, ainda lembrados pela população. A questão é: serão eles capazes de promover o crescimento da cidade e do bem-estar social com os recursos atuais?

 

Alexandre – Acho que ambos possuem uma carga negativa de seus pais como administradores, políticos cassados, com problemas de gestões acusadas de fraude e corrupção. Quanto à virtude, no campo político, acho que Wladimir pode se orgulhar do ótimo desempenho que teve como deputado federal, inclusive ajudando Campos em diferentes momentos com verbas federais. Quanto ao Caio, não conheço, sinceramente, acerca de seu desempenho político. Projeto dificuldades para ambos, ante a falta de recursos que tanto prejudicou Rafael. Claro que podem sair desgastados, como podem sair consagrados por conseguirem contornar os problemas. Vão precisar buscar parcerias públicas e privadas, fazer surgirem receitas novas. Sobre Rafael Diniz, penso, sim, que sua história ainda não acabou como político de Campos, seu valor ainda pode ser reconhecido no futuro. Ele merece isso.

 

Erica – Acredito que ambos tenham qualidades pessoais e políticas, senão não chegariam onde chegaram. Mas, fazer política é administrar conflitos e escolher prioridades sobre onde utilizar o recurso público. Nesse sentido, penso que ambos podem resgatar os acertos do seu grupo político e deixar de lado a velha política clientelista que tanto machuca a cidadania. As pessoas rejeitam o clientelismo, mesmo tendo que recorrer a ele na ausência de políticas públicas universais. Eles querem ser tratados como cidadãos de direito e como protagonistas da vida pública. Penso que sempre é hora para começar a conduzir o governo local com a participação popular. Por que não?

 

Guiomar – As duas candidaturas têm gêneses de rompimento com o “coronelismo e personalismo de velho tipo”, portanto, se autoproclamavam o “novo e moderno” neste município. A História mostrou uma nova versão do populismo conservador e um escancaramento da apropriação privada da coisa pública. Ambos cresceram imersos nesta cultura. Por isso não tenho condições de falar das suas virtudes políticas, são frágeis as experiências de ambos. A não reeleição é sempre possível, e, nestes tempos de transição, se nada for feito de redistributivo na área social com ajuste fiscal, a “redenção” em 2025 passa a ser um cenário viável!

 

Marcio – A candidatura de Wladimir traz como grande peso e ao mesmo tempo benefício a trajetória de seus pais. Por si só o deputado federal representa um polo sadio ao tentar estabelecer um comportamento por vezes republicano, como no caso da emenda para a construção dos novos prédios da UFF-Campos, onde teve atitude suprapartidária. Por vezes seu destempero, como no caso da tentativa de agredir um cidadão que insultou seus pais, pode atrapalhar. Ou por ter faltado aos debates e não demonstrar compromisso cívico. Por sua vez, Caio Vianna também traz esse legado da família tradicional de Campos, o que também lhe prejudica e ao mesmo tempo beneficia ao ganhar votos por conta da herança. Mas também faltou aos debates e parece sempre agir na espreita ao tentar costurar apoios como do PSL e não parece fazer um debate público de peso e de grandes projetos. Ambos terão que se comportar com a grandeza e responsabilidade que o cargo exige e precisam amadurecer muito ainda.  Por último, vejo poucas chances de Rafael Diniz ser redimido. Sua gestão ficará marcada na história como um traço negativo.

 

* Publicado originalmente no blog Opiniões dirigido pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa. Link do post original da entrevista: http://opinioes.folha1.com.br/2020/11/21/campos-refletida-entre-wladimir-e-caio-como-espelho-do-brasil-e-do-mundo. Acesso em 24/11/2020.