domingo, 25 de setembro de 2016

Cultura de Estupro

Cultura de Estupro *

George Gomes Coutinho **

Durante a semana o Datafolha, instituto privado de pesquisas, trouxe para a opinião pública dados feitos sob encomenda do Fórum Brasileiro de Segurança Pública acerca da percepção dos brasileiros sobre uma questão abjeta: o estupro. A repercussão foi imediata em diversas mídias, ainda mais pelo resultado alcançado no que tange a questão de se a vestimenta da mulher seria uma motivação legítima para a violência sexual. No universo de 3.625 entrevistados, 30%, dentre homens e mulheres, disseram sim. A vestimenta de uma mulher é justificativa para que seu corpo seja violado. Que a vítima não reclame. A partir daí a sociedade viu o reflexo do monstro que ela própria alimenta na divulgação da pesquisa.

Esta resposta certamente não surpreende em uma sociedade hipererotizada. Mas, apavora qualquer um que deseje um marco civilizatório onde impere a igualdade civil, política e social a despeito de gênero. Ou seja, dentro do estereótipo do crime sexual, usualmente onde a imaginação social projeta o cenário de uma mulher no espaço público solitária ou não, o tipo de roupa que se usa é um convite. Portanto, a perspectiva de que as mulheres são donas de seu próprio corpo é ignorada em dois aspectos: a) ela não deve utilizar a roupa que julgar melhor para si. A moral não permite a priori; b) se utilizar, dado que não deve haver transgressão sem punição, que não reclame se sofre assédio, abuso ou simplesmente o estupro em si.

Quando utilizamos o termo “cultura” estamos nos referindo a um conjunto de elementos simbólicos, expressos materialmente ou não, que articulados conferem identidade a indivíduos, grupos, práticas, etc.. Legitimam ações e instituições. Neste sentido, se não há uma cultura de estupro legítimo entre nós, realmente não sei o que mais os números supracitados poderiam nos informar. Afirmo isto a despeito dos outros 70% que discordam da vestimenta ser um pretexto para violência sexual. Minha preocupação é com os 30% que irão reproduzir a barbárie.

Só restou uma luz tênue no final do túnel. Dentre indivíduos com diploma universitário, a justificativa da vestimenta para o crime sexual cai para 16%. Ou seja, a educação formal pode amenizar as coisas. Contudo, só pelos 16% persistentes, já sabemos que não fará milagres.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 24 de setembro de 2016

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes


domingo, 18 de setembro de 2016

Consenso de Washington reloaded

Consenso de Washington reloaded*

George Gomes Coutinho **

Matrix, trilogia cinematográfica orquestrada pelos irmãos Wachowski, causou furor na virada do século XX para o nosso século XXI. O segundo filme da seqüência, lançado em 2003, foi batizado de “Matrix Reloaded” e desde então o termo “reloaded” é utilizado como referência para sensações de continuidade nem sempre alvissareiras em diversas reflexões. Nesta toada, a sensação de déjà vu com os anos 1990 causada pela agenda do governo Temer nos remete necessariamente ao inglório Consenso de Washington. Interpreto como um verdadeiro Consenso de Washington reloaded.

Situando o leitor, o Consenso de Washington encabeçado pelo tesouro norte-americano agradou elites financeiras dos países mais ricos do mundo e diversos grupos da América Latina, o que inclui parte de suas oligarquias. Na prática consistiu em um conjunto de remédios liberais amargos que quase levou os seus pacientes a óbito. Naquela ocasião, propostas de privatização, desregulamentação de direitos trabalhistas e sociais, liberalização da economia, desmantelamento do Estado e sua capacidade de investimento afloraram como soluções inquestionáveis pretensamente capazes de produzir o paraíso terrestre.

O conjunto de medidas recessivas se traduziu em nações com baixa capacidade de distribuição de renda e a perda de soberania decisória dos executivos nacionais no que tange o gerenciamento de suas próprias economias. Naquele momento o Fundo Monetário Internacional gozava de prerrogativas que negavam até mesmo a mais remota pretensão de soberania.

Neste 2016, o FMI não é o mesmo e reconhece em prosa e verso os equívocos que destruíram economias ao redor do mundo com seu receituário. Todavia, o mea culpa parece não ter seduzido os tomadores de decisão nativos. Cabe um alerta: as medidas recessivas produziram um efeito não desejado para os liberais de então e pode se repetir agora com a resistência derivando na aglutinação de movimentos sociais, sindicatos e partidos na esquerda do espectro político. Os resultados eleitorais todos sabemos. Medidas recessivas não são sedutoras mesmo que tentem vender hoje o mesmo discurso de pouco mais de duas décadas atrás.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 17 de setembro de 2016.


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Show - The Daytrippers - Beatles Rock Band - 11º Encontro de Motociclistas de São Fidélis - 23/09/2016

Prezad@s,
No dia 23/09, uma sexta-feira, a banda The Daytrippers fará sua estréia no 11º Encontro de Motociclistas de São Fidélis.

A banda é composta por este que vos escreve (guitarra/voz), Bruno Cartaxo Gastrol (guitarra solo),Sérgio Gomes (baixo/voz) e Emil Mansur (bateria). Trata-se de um repertório constituído por canções dos Beatles em uma leitura menos ortodoxa.

Também advirto que não se trata de um repertório com os lugares comuns que vocês estão acostumados... Nada contra obviamente, mas, não tocaremos Help, Twist and Shout e congêneres.. Contudo, prometemos mostrar versões que irão divertir vocês.
Quem for de São Fidélis ou estiver de passagem por lá na ocasião, sintam-se convidad@s. Está no pacote de promessas fazer uma apresentação memorável após alguns meses de ensaio. 



:)

domingo, 11 de setembro de 2016

A estranha pauta do Movimento Escola Sem Partido

A estranha pauta do Movimento Escola Sem Partido *

George Gomes Coutinho **

A democracia nas sociedades complexas necessita ser polifônica. É um critério para sua sobrevivência e o caminho oposto flerta com soluções autoritárias. Há um conjunto de vozes diversas em nossa sociedade, com reivindicações de diferentes naturezas e o puro e simples aniquilamento artificial da circulação de discursos e demandas simplesmente não combina com a própria democracia. Como já alertou Alexis de Tocqueville (1805-1859), se as democracias modernas tendem a derivar em verdadeiras “tiranias da maioria”, as minorias devem ser resguardadas inclusive no direito de circulação de suas narrativas.

Não obstante esses pressupostos, causa espécie a notoriedade alcançada pelo Movimento Escola Sem Partido, doravante MESP. Não se trata de simplesmente coibir os seus idealizadores de proporem qualquer coisa, vide as linhas no parágrafo anterior. As idéias e proposições surgem, sejam estas grandiosas ou medíocres a despeito do espectro político. Mas, o que choca é quanto o gesto de levantar uma lebre esquálida dessas, cujo idealizador do movimento se trata de um pai que ficou indignado com uma analogia feita por uma professora entre Ernesto Guevara e Francisco de Assis, tenha conquistado editoriais, circulado em redes sociais e estabelecido movimentos na direção oposta.

Ao acompanhar a divulgação dos dados da educação brasileira alcançados em 2015 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o famoso Ideb, a situação é muito mais preocupante do que qualquer entusiasta ou opositor do MESP tem contemplado. Em mais uma ocasião nenhuma das metas do Ideb foram alcançadas. Dentre os projetos de lei que tive acesso e afinados com as diretrizes do MESP, no caso o PL 7180/2014 do deputado Erivelton Santana (PEN/BA), não consta uma vírgula sobre questões de infra-estrutura escolar, estímulo para a qualificação continuada dos professores, planos de carreira e salários, etc.. Nem a merenda escolar, questão básica no ensino público, é mencionada. Nada. Apenas fala em “convicções” da família. O debate soa como engodo e desperdício de energia que encobre questões mais graves. E talvez seja mais um sintoma da pequenez de nossa opinião pública contemporânea.


* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 10 de setembro de 2016. Na versão impressa o título original foi "A estranha pauta do MESP".

**Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

domingo, 4 de setembro de 2016

31 de agosto de 2016: o dia que não terminou

31 de agosto de 2016: o dia que não terminou*

George Gomes Coutinho **

Há datações que se tornam paradigmáticas na história humana. Elas não indicam que há um congelamento da dinâmica da sociedade, algo que qualquer observador poderia atestar sem dificuldade. Contudo, determinadas datas adquirem grande relevância por redundarem em grandes conseqüências nas relações, pactos e interpretações que um Estado-Nação, constituído por seus agentes, constrói sobre si. Neste raciocínio, o jornalista e escritor Zuenir Ventura, por exemplo, elegeu 1968 como marco para ilustrar um destes momentos fortemente simbólicos e paradigmáticos em uma de suas obras. O livro de Ventura, lançado em 1988, trazia o subtítulo “o ano que não terminou” que tomei de empréstimo para esta reflexão.  A sensação de algo inacabado, uma gestalt histórica aberta, paira igualmente sobre o 31 de agosto de 2016.

Ao término da votação no Senado Federal do processo que culminou no impedimento de Dilma Roussef, é pouco provável que observadores mais atentos tenham acreditado que qualquer coisa tenha efetivamente se encerrado. Mesmo para os entusiastas de curtíssimo prazo cabe traçar como alerta um paralelo didático com processo análogo sofrido por Fernando Collor em 1992. O movimento Fora Collor, que contou com ampla adesão de diversos setores da sociedade e angariou o apoio de grupos de quase todo espectro político, foi bem sucedido inclusive pela ampla faixa de consenso obtido. O processo Collor visto em retrospectiva se mostrou eivado de falhas legais e de manobras políticas nos bastidores que fariam corar até o mais cínico observador da política contemporânea.  Todavia, havia o forte consenso.

No caso Dilma, as controvérsias surgiram em tempo real, não necessitando sequer do olhar retrospectivo. Primeiramente, o forte consenso na própria sociedade não foi construído. Ou seja, o questionamento ruidoso prosseguiu durante o desenrolar dos acontecimentos e prosseguirá como um eco a ressoar nos próximos tempos até pela quantidade de contradições que cercaram o processo. O dissenso envolveu pelejas discursivas nas searas do sistema político, do sistema jurídico, na área econômica e até mesmo, pasmem, no rol dos debates morais. 31 de agosto de 2016 não findou na última quarta-feira. Apenas iniciou uma nova e imprevisível fase.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 03 de setembro de 2016


** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes