sexta-feira, 26 de abril de 2024

A cartilha Alt-Right em ataques à soberania nacional: os casos de Musk e Textor

 
(Colagem composta por imagens sem alteração dos aspectos originais) 
FONTES: Win McNamee/Getty Images (Elon Musk)Jorge Rodrigues/AGIF (John Textor)PX Media/Shutterstock (bandeira do Brasil ao fundo) e Innuendo Studios (Alt-Right Playbook).


Jefferson Nascimento*

Renato Nucci Jr.**


 (Este texto é uma atualização do artigo "Elon Musk, John Textor e a cartilha alt-right" enviado em 18 de abril e publicado ontem no site A Terra é Redonda. Portanto, não se trata apenas da republicação, mas da inserção de análises e descrições de fatos ocorridos após o dia 18 de abril. No entanto, os fatos ocorridos depois do dia 18 reforçam os argumentos e análises do texto original. A inclusão deles é para adicionar elementos que sustentam a análise.)


Não é razoável debater o questionamento de Elon Musk às ordens judiciais destinadas ao X/Twitter como se fosse uma oposição do magnata sul-africano ao ministro Alexandre de Moraes. Musk atua para garantir interesses econômicos predatórios sobre países pobres e em desenvolvimento: herdeiro da exploração de diamante na Zâmbia; defensor do golpe de Estado na Bolívia, em 2019 (daria “golpe onde fosse necessário” para manter seu acesso ao lítio); e, agora, ataca o ordenamento jurídico brasileiro. Apesar da importante atuação de Moraes, associar a defesa da democracia representativa ao seu engajamento e qualidades individuais diz muito sobre a instabilidade política atual, reforçando a fragilização das instituições. Tal associação não agrega para uma construção política popular: junto a outros ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), "Xandão" têm votado pela restrição de direitos e garantias trabalhistas.


Musk endereça esse ataque à figura de Alexandre Moraes como atalho para agitar os bolsonaristas brasileiros e a extrema-direita internacional. Porém, ele não está sozinho: vamos demonstrar que vai no mesmo sentido a atuação de John Charles Textor, dono da Eagle Football Holdings Limited[i] e da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Botafogo de Futebol e Regatas. Está em curso uma escalada em múltiplos campos contra a soberania nacional, com base no manual de comunicação Alt-Right, empreendida por diferentes atores individuais e coletivos. Começamos pela contextualização.

 

 

1. O contexto:

Em 08 de março, parlamentares brasileiros bolsonaristas, liderados por Eduardo Bolsonaro, estiveram no Congresso dos Estados Unidos (EUA) para denunciar o “sistema totalitário do judiciário brasileiro”, cujo ativismo judicial do STF e, principalmente de Alexandre de Moraes, estaria evidente nas decisões contra Jair Bolsonaro nos processos sobre as eleições de 2022 e contra golpistas de 08 de janeiro de 2023.


        O grupo não conseguiu a audiência com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, mas realizou uma “missão” no país norte-americano acusando a esquerda de dissimular a pauta dos direitos humanos seletiva e injustamente contra seus opositores. Notem que o bolsonarismo, os populistas autoritários de direita e a extrema-direita disfarçam seus projetos autoritários mobilizando termos como “liberdade” e “democracia”, associando os adversários à “censura” e “totalitarismo”. Para isso, ressignificam a noção de “democracia” e “povo”: enquanto os defensores da democracia liberal pensam em termos de pluralidade irredutível de indivíduos livres e iguais; bolsonaristas, populistas autoritários e extrema-direita se baseiam numa comunidade homogênea com identidade coletiva e defendem a vontade singular do povo, negando legitimidade aos opositores e combatendo quem não se enquadra na comunidade. A “liberdade” seria absoluta para os membros da comunidade e, assim, não existe abuso quando o emissor estiver consonante à respectiva identidade.


A ressignificação nega a busca pelo bem comum e ignora convenções internacionais. Por exemplo, para bolsonaristas, populistas e extremistas não faz sentido o adendo da Corte Americana de Direitos Humanos sobre liberdade de expressão: “A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” Afinal, adversários políticos e indivíduos “não-comunitários” devem ser estigmatizados para demarcá-los como ameaça à comunidade, à identidade histórica do grupo nacional e aos modos estabelecidos de vida, e/ou como parte de uma casta/elite que opera um mecanismo (ou sistema) que corrompe as instituições e os partidos e prejudicam os elementos comunitários. Por isso, a repetição de termos como corrupto/bandido, inimigo do povo, traidor, etc., independente de provas, é uma “justa” ferramenta na luta contra o “mal” encarnado pelos referidos adversários e outsiders.


Quem não compõe o demos não possui legitimidade para denunciar crime de ódio, mentira e incitação de violência oriunda de expressões e posicionamentos de elementos comunitários (“mimimi”): são ameaças. Crime é não compactuar com a identidade coletiva, logo não há intolerância religiosa contra não-cristãos, mas há cristofobia; não há racismo ao mesmo tempo que denunciam o racismo reverso; não há machismo ao mesmo tempo que o feminismo é distorcido como ataque à masculinidade; e a corrupção é uma marca do outro, jamais dos membros dessa “comunidade” - independente das provas. (Quando é o caso, a culpa é do sistema de justiça que seria parte da conspiração inimiga).


Essa visão de mundo e modo de comunicação ganharam impulso com as estratégias do Alt-Right. Esse movimento nasceu de um tipo de revista online, o webzine, chamada The Alternative Right, editada pelo ativista do “white nationalist movement” Richard Bertrand Spencer, e repercutida em sites/fóruns como 4chan e 8chan. Spencer defende o legado de George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazista Americano, a escravização de haitianos, a limpeza étnica nos EUA e propôs a conversão da União Europeia em um império racial branco. Criador do movimento e idealizador do termo Alt-Right, ele atraiu neonazistas, supremacistas branco e antissemitas, chegando ao auge de popularidade durante a campanha presidencial de 2016, quando apoiou Donald Trump, e na condução do evento Unite the Right (2017) em Charlottesville, na Virgínia. Spencer apoiou a nomeação de Steve Bannon para conselheiro de Trump e propôs aos seguidores "vamos festejar [a eleição de Trump] como se estivéssemos em 1933", em alusão à ascensão de Adolf Hitler.[ii]


Spencer deixou de apoiar Trump e admitiu a possibilidade de votar em Joe Biden, em 2020. Todavia, já havia perdido relevância desde uma série de problemas na justiça a partir de 2018 e o seu movimento se acomodou como uma importante fração autoritária da direita estadunidense representada por lideranças do Partido Republicano, como Ron DeSantis (governador da Flórida conhecido pelas propagandas extremistas, algumas associadas ao neonazismo) e Donald Trump.


O método de comunicação em massa desenvolvido pelo Alt-Right visa a manipulação do debate público por meio do compartilhamento de memes; uso de argumentos-espantalhos, da falácia ad hominem, negacionismo científico, desinformação e fakes news para desacreditar autoridades e instituições; postagens com apologia ao racismo, ao machismo e à xenofobia; ataque ao multiculturalismo; exortação à união frente a um inimigo público da comunidade e seus valores; uso narrativas conspiracionistas que afetam a confiança interpessoal e às instituições políticas; domínio do debate na internet através de sites (Textor concentrou as denúncias em sua página após a imprensa nacional diminuir a repercussão), YouTube e diversas redes sociais (dentre as quais X/Twitter promete ser o “paraíso” desde que Musk assumiu).


É importante lembrar que, no momento, líderes de extrema-direita com relevância internacional enfrentam protestos e queda de popularidade, como Viktor Orban da Hungria e Benjamin Netanyahu em Israel. Além disso, as eleições dos EUA se aproximam e as notícias dão conta do crescimento de Joe Biden nas pesquisas de intenção de voto - algumas indicam a ultrapassagem sobre Trump.


No Brasil, a gritaria de Musk agitou o debate em torno do PL2630/2020 (propõe a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), popularmente PL das Fake News. O texto aprovado no Senado, dentre outros, definia a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet com 21 membros, sendo: um do Senado, um da Câmara, um do Ministério da Justiça, um do Conselho Nacional de Justiça, um do Ministério Público, um da Polícia Federal e um das Polícias Civis (são sete representantes de instituições de Estado e de governo); cinco membros da sociedade civil, dois acadêmicos, dois do setor de Comunicação Social, dois representando os provedores, um representante das empresas de telecomunicação e um do CONAR - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (totalizando 14 representantes sem vínculo com o Estado).


Portanto, o PL não propunha Estado um controle estatal. É possível pensar em ajustes, mas está claro que a oposição ao PL não é a luta contra a tirania do Estado. É a defesa da tirania das bigs techs, que colocam seus interesses econômicos (e políticos) como absolutos, influenciando processos eleitorais, amplificando discursos de ódio, permitindo incitação da violência e disseminando notícias falsas.


Aproveitando a repercussão, o presidente da Câmara Arthur Lira interrompeu a tramitação e criou grupos de estudo. O debate voltou à estaca zero em uma Câmara cuja maioria defende as big techs impedindo uma regulamentação com participação da sociedade civil e permitindo a sobreposição das estratégias empresariais (pela manipulação dos algoritmos) aos interesses nacionais. Nesse cenário, toda hora aparece em artigos, editoriais ou redes sociais um argumento pretensamente “liberal” ignorando competências do STF segundo a legislação brasileira vigente, apoiando, contemporizando ou se calando sobre os boicotes ao esforço para uma legislação específica atualizada. 


Além disso, Jair Bolsonaro e seus aliados aproveitaram a agitação da sua base e realizaram uma manifestação em Copacabana, no Rio de Janeiro, em 21 de abril. Aproveitando a data que mitifica Tiradentes como mártir na luta pela liberdade (contra a Coroa Portuguesa), o ato serviu para o vitimismo de Bolsonaro e seus asseclas e para exaltação de Elon Musk e sua "cruzada pela liberdade". 


No dia seguinte, John Textor foi recebido pelos membros da CPI das Apostas Esportivas no Senado, com transmissão ao vivo pelo YoutTube. A comissão é dominada por bolsonaristas, com destaque ao relator Romário (PL-RJ), Eduardo Girão (PL-CE) e Dr. Hiran (PP-RR), apesar da presidência do governista Jorge Kajuru (PSB-GO). Outro não-bolsonarista com algum destaque é Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB). A seguir, tratamos dos interesses de Elon Musk.

 

 

2. Musk: interesses econômicos, adesão à extrema-direita e a ressignificação da “liberdade”

 

a) As acusações e a máscara de defensor da liberdade de expressão

No embate de Elon Musk contra a Justiça brasileira, o argumento da “liberdade de expressão” eclipsou a inação do X/Twitter no combate aos discursos de ódio, incitação à violência e notícias falsas sobre políticos, eleições e conflitos internacionais. Essa manobra destacou o autointitulado ativista pela liberdade de expressão Michael Shellenberger. Ele alegou ter provas das restrições à liberdade de expressão no Brasil (Moraes teria ameaçado de processo o advogado do X/Twitter) em seus Twitter Files. Porém, depois de desmentido em seu principal argumento, admitiu o erro; logo, não tinha como provar a principal acusação.[iii] O jornalista “confundiu” uma questão do advogado com o Ministério Público (MP) com uma retaliação de Moraes relacionada ao X/Twitter.


Voltando a Musk, não é verdade que ele tenha entregue às autoridades dos EUA provas de que Alexandre de Moraes interferiu nas eleições de 2022 e a denúncia que o X/Twitter fez ao Congresso dos EUA relativa a ordens judiciais sobre moderação e derrubada de conteúdo reforça que a empresa de Musk estrategicamente transfere o debate sobre fatos relacionados ao Brasil para atores de um país com ordenamento jurídico diferente. Acessar uma instituição estrangeira demonstra a busca pela fragilização da soberania nacional, ocultada sob alegação de “exclusivismo” criado pelo ativismo do STF capitaneado por Alexandre de Moraes. Porém:

I) a Comissão Europeia investiga o X por violar normas de moderação e transparência definidas pela DSA (Lei de Serviços Digitais), inclusive permitindo informações e imagens falsas, cenas de videogames e vídeos antigos ou de outros conflitos para manipular a opinião pública sobre o massacre na Faixa de Gaza;

II) o órgão de vigilância eSafety da Austrália notificou o X em junho de 2023 pelo aumento da intensidade e quantidade de postagens violentas e de ódio desde que Elon Musk comprou a rede;

III) o Brasil, apesar de ser o quarto mercado, é apenas o 11° em pedidos legais de remoção e bloqueios de contas; ficando atrás, dentre outros, de Japão, Coreia do Sul e EUA - os quatro primeiros (Japão, Turquia, Rússia, Índia e Coreia do Sul) concentram 92% dos pedidos;

IV) o Brasil também não figura entre os primeiros em pedidos de informações realizados por autoridades: é apenas 10°, atrás de países como Japão, França, Reino Unido, França e EUA; solicitações de autoridades brasileiras não chegam a 5% das estadunidenses.[iv]


Ninguém lúcido nega que Austrália, EUA, França, Japão, Reino Unido e os membros da União Europeia se enquadram nas classificações de democracia representativa-liberal. Ademais, em dezembro de 2022, mais de 20 mecanismos e relatorias da ONU elaboraram uma carta acusando Musk de favorecer a disseminação da violência e cobrou medidas.


Musk age diferente na Índia, governada por Narendra Modi de extrema-direita. Lá, acata decisões judiciais que determinam exclusão de contas de opositores ao governo e veto aos links que redirecionam para o documentário “Índia: a questão Modi[v]. Além de afinidades ideológicas, Musk pretende investir US$3 bilhões em fábricas da Tesla na Índia para concorrer com a BYD no segmento de carros elétricos no Oriente.


Em 15 de abril, depois de toda agitação e mobilização política da extrema-direita, os advogados do X/Twitter afirmaram que cumprirão as decisões judiciais brasileiras. No entanto, passaram a apostar na visibilidade por meio de deputados republicanos no Congresso dos EUA para dar ares de institucionalidade e difundir a crença na legitimidade. Em 17 de abril, veio a denúncia de “censura” feita pela Comissão Judiciária da Câmara de Representantes dos EUA, presidida por Jim Jordan (republicano ultraconservador). O congressista ignorou diferenças da legislação brasileira sobre liberdade de expressão, repetiu mentiras sobre as eleições de 2022 e o 8 de janeiro de 2023, ocultou que solicitações desacompanhadas de fundamentação se relacionam a diferentes perfis de um mesmo usuário e que parte das ordens foram feitas para várias redes sociais e aplicativos de comunicação sem a mesma celeuma provocada por Musk. 



b) Modus operandi

Elon Musk é crítico ao Partido Democrata e acusa a mídia tradicional de servir a esse partido, ainda que seja conhecido o viés pró-Partido Republicano da Fox News, maior conglomerado de mídia. O sul-africano apoia a ala mais à direita dos Republicanos, liderada por DeSantis e Trump, cuja conta no X/Twitter foi liberada quando Musk comprou a rede social. O magnata, assim como Trump e Jim Jordan, defende anistia aos invasores do Capitólio. Em março, tratou com Trump sobre doação para a campanha presidencial.[vi]


    Quanto a Michael Shellenberger. A acusação sem provas, admitida como erro, decorre do “direito de mentir” no debate público? Da ignorância sobre o sistema de justiça brasileiro? Ou ambos, apostando no viés de confirmação de uma plateia desinformada e/ou mal-intencionada? Seja qual for, há coerência a trajetória: Shellenberger é famoso por um livro em que nega a emergência climática se baseando em argumentos ad hominem contra cientistas, argumentos-espantalhos que nunca foram enunciados por nenhum acadêmico para desmentir e supostamente refutar pesquisadores, demonstrando para leitores minimamente atentos que não domina a questão ambiental, a ponto de afirmar que: “Na realidade, em média, a biodiversidade nas ilhas ao redor do mundo dobrou graças à migração de ‘espécies invasoras’.” Questão basilar: a quantidade de espécies em uma unidade geográfica refere-se ao conceito de riqueza de espécie e não à biodiversidade. Aliás, estudos demonstram que espécies invasoras ameaçam a biodiversidade.[vii] É coerente que o negacionismo científico projete alguém como referência do bolsonarismo e da extrema-direita.


As críticas à trajetória de Shellenberger não são usadas para desqualificar as denúncias feitas por ele, estas caíram por serem incorretas, como ele admitiu. Logo, não se trata aqui da falácia ad hominem, mas da caracterização de um modus operandi. Tanto que, depois de desmentido, Shellenberger continuou a atacar Moraes com opiniões para o deleite de pessoas como Glenn Greenwald e supostos liberais brasileiros. Os ataques desconsideram que a legislação sobre liberdade de expressão aqui é diferente dos EUA, onde é permitida a atuação do Partido Nazista e da Ku Klux Klan; ao passo que o Brasil se alinha às convenções internacionais que proíbem expressões racistas, discriminatórias (gênero, origem étnica, etc.), apologia à violência e discurso de ódio[viii]. Além disso, inventa meios para acusar o STF de abuso de competência nesse caso[ix], qualificando as decisões judiciais como excepcionais, ao mesmo tempo em que contam com o apoio bolsonarista para evitar projetos de lei que regulamentem as redes sociais.

 

        Voltando ao chefe. Musk, ao endereçar os ataques ao STF e destacar Alexandre de Moraes, resgata o atalho difundido por Eduardo Bolsonaro e outros deputados da extrema-direita na “missão” nos EUA. De modo coordenado, houve amplificação interna e externa do assunto. São exemplos: a moção de aplauso e louvor concedida pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara brasileira; e, externamente, os apoios de André Ventura, do Chega (Portugal), Santiago Abascal, do Vox (Espanha), que se referiu a Moraes como “carcereiro de Lula”; e do presidente argentino Javier Milei. Notem a presença dos parâmetros do Alt-Right (ataques ad hominem, desinformação, conspiracionismo e unidade frente a um suposto inimigo público).


Musk buscou ares de legitimidade na comissão presidida pelo deputado Jim Jordan, como vimos. O importante não era o conteúdo e a consistência da denúncia, mas o ritual. Ao acusar o Brasil de usar instituições para minar a democracia (crítica comum a políticos de extrema-direita e populistas), empurrou uma acusação para os adversários, e misturou governo com STF para sugerir interferência partidária no Judiciário. Mirando o contexto eleitoral dos EUA, atacou a suposta inação do governo Biden no caso. Claramente, evocando o atropelo à soberania brasileira. Jordan usou diversas vezes estratégias Alt-Right: paralisou o governo para forçar a retirada do financiamento ao seguro saúde (Affordable Care Act - ACA), em 2013; apoiou a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo (2015); se opôs à vacinação obrigatória durante a pandemia de Covid-19; contestou os resultados eleitorais de 2020; defendeu os invasores do Capitólio; não compareceu para depor sobre a invasão; e chantageou o presidente ucraniano condicionando o apoio ao país na guerra contra Rússia ao avanço das investigações sobre o filho de Joe Biden e seus negócios na Ucrânia. No primeiro caso, Jordan foi chamado de “terrorista legislativo” pelo companheiro de Partido Republicano John Boehner. 


O ultraconservador Jordan foi investigado por omissão em um escândalo de abuso sexual na The Ohio State University, onde era técnico de Wrestling (2018); e, apoiado por Trump, foi rejeitado pelo partido como candidato a presidente da Câmara. Segundo a deputada republicana Liz Cheney: se Jordan fosse eleito, “não haveria nenhuma chance de argumentar que era possível contar com congressistas republicanos para defender a Constituição”.[x] Contudo, foi elevado a defensor da “democracia” brasileira por bolsonaristas.


Ironicamente, a mesma comissão, com voto favorável do mesmo Jordan, aprovou um projeto de censura ao TikTok alegando defesa da segurança nacional (impondo a venda da rede social chinesa para alguma empresa dos EUA ou sua descontinuidade no país). Jordan quer impor ao Brasil a lei estadunidense de liberdade de expressão, mas nem cogita considerar o direito das instituições brasileiras defenderem a segurança nacional. Afinal, a ameaça que o TikTok representaria aos EUA, por ser estrangeiro, o X/Twitter, sediado em San Francisco, na Califórnia, representa ao Brasil.

 

Para completar a hipocrisia, Musk já tentou censurar nos EUA pesquisadores do CCDH - Center for Countering Digital Hate (Centro de Combate ao Ódio Digital, antiga Brixton Endeavors) impedindo-os de divulgar avaliações sobre comportamento da rede social, sobretudo a comportamentos tóxicos. Esta ONG identificou que não foram tomadas medidas contra 99% das contas verificadas que disseminam discursos de ódio e que as postagens com insultos aumentaram em 202% sob gestão do magnata. Em reação, Musk recorreu à via judicial acusando a entidade de uso de dados ilegais e que a divulgação das informações afugentou publicidade e patrocinadores. Perdeu, mas ao que tudo indica, não é bem a absoluta liberdade de expressão que o move, mas a liberdade de alguns tipos de expressão que promovem sua ideologia e seus negócios a qualquer custo.


              

c) Interesses imediatos

O Brasil é um dos principais mercados do X/Twitter, cujas postagens discriminatórias, violentas e conspiratórias geram mais engajamento, e há outros interesses econômicos, como mostra The Intercept Brasil[xi]:

I) Lítio. O Serviço Geológico Brasileiro descobriu reservas de lítio no Vale do Jequitinhonha (norte de Minas). A área explorada pela brasileira Vale (umas das fornecedoras para de lítio e níquel para empresas de Elon Musk) e pelas empresas estrangeiras Sigma e AMG Mineração. A Sigma é uma empresa canadense que Elon Musk tem o interesse de comprar e a AMG é uma empresa holandesa. Musk se reuniu recentemente com Nicolai Tangen, CEO do Norges Bank, que possui ações dessas duas mineradoras estrangeiras que atuam no norte de Minas.

II) Carro elétrico. As negociações para a BYD investir no Brasil incluem a compra da antiga planta da Ford na Bahia. A efetivação desse acordo é prejudicial à Tesla; pois a BYD, que já cresceu 6900% em 2023 no Brasil, lidera a venda global de carros elétricos e, com a planta brasileira, pode ampliar a liderança no mercado com aumento das exportações para a América do Sul. Em 15 de abril, a Tesla anunciou que, em função da menor demanda por seus veículos, demitirá 10% dos seus funcionários, atingindo cerca de 14 mil trabalhadores.


Na próxima seção, tratamos de John Textor.

 

 

3. Textor: low profile da extrema-direita, a instrumentalização da paixão pelo futebol e da luta contra corrupção

 

a) As acusações e a imagem de mártir contra a corrupção

Desde o final de 2023, John Textou lançou acusações para minar ainda mais a credibilidade da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Como Shellenberger e Musk, misturou denúncias com provas de outros casos para sustentar sua narrativa e gerar desconfiança em relação às entidades.


Ele começou com um relatório encomendado junto à empresa Good Game!, que apontava uma série de erros de arbitragem, classificando como erros graves inclusive lances em partidas que nenhuma decisão tinha sido contestada antes para sugerir manipulação do Campeonato Brasileiro da série A de 2023. Segundo o documento, o Botafogo deveria ter terminado com vários pontos à frente do Palmeiras.


Em março, afirmou ter gravação de um árbitro e lançou essa suspeita no meio da acusação de manipulação em favor do Palmeiras - mais especificamente citou um jogo de 2022 entre Palmeiras e Fortaleza. Porém, o áudio era de um árbitro de divisões inferiores do Rio de Janeiro. Percebem a semelhança com Shellenberger? (I) Uso de provas de outro caso para sustentar a narrativa; (II) como Shellenberger confundia atores do complexo sistema de justiça brasileiro, Textor mistura atribuições divididas pelo sistema de federações estaduais e confederação nacional. Ainda assim, se colocou como vítima: criticou O Globo por matéria que associava a gravação à série A do Brasileirão, dizendo não ter afirmado isso. Mas qual a lógica em falar da gravação no meio de acusações de que os últimos títulos brasileiros do Palmeiras não foram limpos? Sem dizer literalmente, acessando o viés de confirmação, alimentou a desconfiança e favoreceu o conspiracionismo.


Textor diz que alertou oficialmente a CBF ainda durante o Campeonato Brasileiro de 2023, mas o aviso foi feito em relação a uma partida do Brasileiro de 2022 e o representante da Good Game! afirmou que mandou o alerta para o e-mail da CBF. Sem saber, sequer, se o e-mail chegou para um responsável ou se foi para a caixa de spam. Ou seja, não houve notificação oficial. Apenas depois Textor entregou oficialmente ao STJD o relatório Good Game! com os supostos erros de arbitragens.


Além dos problemas na gestão do futebol, na contratação de um substituto para o técnico Luiz Castro, a SAF de Textor deve a clubes, como o São Paulo FC. Chega a ser curioso que o São Paulo tenha sido citado pelo cartola justamente no dia que anunciou que ingressaria com ação por falta de pagamento pela venda de Tchê Tchê ao Botafogo. O São Paulo também questiona o valor da venda do goleiro Lucas Perri do Botafogo a outro clube de Textor, o Lyon. O valor de €6,4 milhões por Perri e o zagueiro Adrielson, anunciado oficialmente, é inferior ao valor de mercado dos atletas e ajudou o Lyon a não atingir o limite do Fair Play Financeiro da Liga Francesa, lesando o São Paulo que detinha 18,5% dos direitos econômicos de Perri.


O timing, no mínimo, curioso não é o único problema. Textor acusou o envolvimento de atletas do São Paulo na manipulação favorável ao Palmeiras se baseando em outra análise de inteligência artificial da Good Game!, cujo CEO Thierry Hassanaly depôs em audiência pública no Senado (em 20/03/2024) deixando dúvidas, conforme matéria de Rodrigo Mattos[xii]. A empresa informou que, para análise de manipulação, considera apenas o comportamento técnico de atletas em campo por meio de inteligência artificial e análise de especialistas sem nenhum cruzamento com apostas ou supostos favorecimentos. Também informou que não faz monitoramento em larga escala de jogos no Brasil e que não poderia informar quais jogos foram manipulados. Por fim, admitiu não ter como saber os motivos e não explicou como concluíram que determinados atletas do Fortaleza e São Paulo manipularam jogos sem informações extracampo.


Em 22 de abril, Textor reafirmou na CPI do Senado o uso da inteligência artificial da Good Game! e admitiu que os documentos que apresentará em "sessão secreta no Senado junto com a empresa" mostram "como" o jogo foi manipulado e não "o motivo". Ele afirmou que manipulações ocorrem há décadas em todos os lugares e que, como ocorreu com o doping, ainda há resistência em acreditar que é um problema disseminado, principalmente nas divisões inferiores. Sobre a série A, admitiu que só tem os relatórios para o jogo Fortaleza e Palmeiras (2022) e Palmeiras e São Paulo (2023) e que contratou a empresa para jogos específicos. Quando questionado sobre a eficácia da IA para esse fim, deu exemplos de erros de arbitragem para depois falar de jogadores do São Paulo contra o Palmeiras e no fim disse: "não estou dizendo que esses jogadores manipularam, mas o jogo foi manipulado" (sic). Mencionou ainda um jogador da NBA punido recentemente, mas a liga norte-americana de basquete não é monitorada pela Good Game!, sim pela Sportradar.


Sportradar é a empresa responsável pelo monitoramento oficial de partidas no Brasil. Ela observou mais de nove mil partidas em 118 competições diferentes e identificou 109 partidas com indícios de manipulação: 94 em jogos de federações estaduais e apenas 15 em competições da CBF (uma da série B, uma da Copa Verde e 13 da série D)[xiii]. A Sportradar[xiv], fundada na Noruega, com sede na Suíça, usa um método validado pela Universidade de Liverpool e analisa simultaneamente padrões de apostas. Ela monitora os jogos da FIFA, UEFA e da Conmebol bem como atua em outros esportes: beisebol (para a MLB), hóquei (para a NHL), futebol americano (para a NFL), tênis (para a ATP Tour), handebol (Handball-Bundesliga), críquete (para a BCCI) e automobilismo (para a FIA e NASCAR). Os responsáveis pela Good Game!, por sua vez, não citaram no site ou na audiência pública do Senado nenhuma competição pela qual é responsável pelo monitoramento de integridade e admitem não haver muitos estudos científicos sobre o modelo de análise comportamental utilizado. A empresa sequer participou do Congresso de Integridade, realizado pela FIFA em Singapura, em 04 e 05 de abril.[xv]


 


b) Modus operandis

Casado com Deborah e pai de Christopher, John Charles Textor tem um de seus endereços registrado em Hobe Sound, na Flórida. Ele é (ou era até 2023) filiado ao Partido Republicano[xvi] e já defendeu publicamente o extremista Ron DeSantis[xvii] - o mesmo apoiado por Elon Musk. Portanto, independente de relações pessoais, há convergência ideológica e relações objetivas dele e de Musk com a extrema-direita estadunidense. Mais do que isso, a estratégia de Textor para supostamente denunciar a corrupção na CBF e no futebol brasileiro se assemelha ao modus operandi utilizado pelos adeptos do Alt-Right.


Além da filiação, outros fatos mostram vínculos de Textor com os republicanos. Ele esteve no centro de uma polêmica envolvendo recursos públicos e financiamento de campanha na Flórida. Em 2009, foi aprovada uma emenda que autorizou o então governador republicano Charlie Crist (2007-2011), a disponibilizar US$42 milhões para o desenvolvimento econômico; deste, o Projeto Bumblebee da Digital Domain, presidida por Textor na época, ficou com a metade. Em sequência, Textor fez doações de campanha para republicanos, gerando suspeição. Foram beneficiados para as eleições de 2010: o então governador; Kevin Ambler e David Rivera que, na ocasião, eram deputados estaduais e ajudaram na aprovação. Coincidência ou não, um dos parceiros comerciais de Textor, Dan Marino, participou da arrecadação de fundos para a campanha de Ambler.[xviii]


Há outra semelhança com Musk. Textor recorreu à justiça em 2016 para calar um crítico. Processou Alki David, dono de uma empresa de efeitos especiais concorrente à Digital Domain. David, dentre outras práticas acusadas de perseguição cibernética, divulgou processos judiciais contra a empresa de Textor (inclusive, a tentativa do Estado da Flórida reaver o dinheiro fornecido durante o governo Crist) e ironizou Textor nas redes sociais com uma foto de Hitler legendada com a frase: “Desculpa se ofendi algum #neonazi”, que pode se referir aos vínculos políticos que mencionamos antes, ao processo de censura ou a algo mais na biografia de Textor. A liminar contra David foi anulada no Tribunal de Apelação.[xix]


Textor pouco fala de preferências ideológicas e adesão partidária. Esse modo low profile é coerente com a busca por dissimular os sentidos políticos do futebol. Nesse caso, ele fez sua lição de casa ao se colocar em defesa da lisura e transparência do jogo contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), cujo histórico coloca em dúvida a credibilidade dos resultados futebolísticos no Brasil. Ele elogiou a iniciativa do Senado de instaurar a CPI e afirmou que isso pode fazer com que o Brasil "lidere" as investigações. No entanto, ao chegar para depor na CPI em 22 de abril, Textor fez questão de enfatizar que enxerga o caso como um "problema global". É como se lutasse no âmbito do futebol com interesses meramente esportivos que ultrapassam as fronteiras geográficas.


Textor disse ainda que tem interesses como um torcedor apaixonado, que não colocaria sua reputação em risco e que tem sido ameaçado de processos por dirigentes. Defendeu a inteligência artificial, dizendo ter feito fortuna com ela, podendo hoje investir no futebol. Percebam a estratégia: provoca empatia no telespectador (torcedor apaixonado), defende a tecnologia com base em experiência pessoal sem análise científica (construiu fortuna, conta quando os erros o alertaram, mas não menciona validação científica), se coloca como vítima (ameaçado de processos), usa argumentos-espantalhos (fala de doping para desqualificar os céticos) e mistura fatos no mesmo assunto (fala do erro de arbitragem que constava no primeiro relatório quando questionado sobre análise do comportamento de jogadores).


Como Musk, Textor recorreu à temática da "liberdade de expressão", ao afirmar que a CBF cerceou seu direito quando o puniu. Alertou que a SAF atrai interesses e que o "mundo" está atento ao que ocorre no Brasil. Também como no caso Musk, os bolsonaristas agiram para dar palanque na CPI. Romário (PL-RJ) iniciou as perguntas afirmando que Textor têm provas, Carlos Portinho (PL-RJ) foi mais longe: "Muito obrigado, John Textor, por investir no futebol brasileiro [...] O senhor é o mensageiro. Se a a gente matar o mensageiro, deixa de receber mensagens [...] aí o crime impera [...]". Portinho esclareceu que viu inconsistências na exposição dos representantes da Good Game!, mas disse: "Mesmo que suas denúncias estiverem 100% erradas, elas foram importantes." Portinho também defendeu o empresário: "Ele [Textor] não acusou [...] levantou questões de comportamento para ensejar investigação que ele não têm meios de fazer e que o STJD também não têm".  


O senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), mais cético, afirmou "[...] está provado que estão aqui no campo da subjetividade e não temos como avançar. Gostaria de propor que realizemos agora a sessão secreta. Se os documentos apresentarem algo objetivo [...] podemos avançar. Portinho divergiu e foi apoiado por outros senadores ao dizer que não eram perguntas subjetivas, mas preparatórias para a reunião da sessão secreta.


Após a tal sessão secreta ainda no dia 22 de abril, os senadores da CPI precisaram admitir que não poderiam tratar as informações mostradas por Textor como provas, apenas como indícios. Mesmo com o domínio bolsonarista com o botafoguense Dr. Hiran (PP-RR), o relator Romário (PL-RJ), Carlos Portinho (PL-RJ) e Eduardo Girão (PL-CE), a reunião terminou com a mesma conclusão já afirmada há semanas por jornalistas. Com uma única indicação: os elogios de Portinho à inteligência artificial e às novas tecnologias (Textor já havia falado em preço e interesse em financiar câmeras em estádios brasileiros). Nas redes é possível perceber que o mecanismo usado por Textor desde o final do ano acessou grupos da direita, como preconiza o manual Alt-Right. Veja a imagem:


 
Na parte superior, a imagem da esquerda mostra que o público faz a associação entre Textor e Musk; na imagem da direita, frases machistas e termos associados aos redpills (movimento misógino). Na parte inferior, à esquerda, a associação de Lula e Leila, sem algum fato público que justifique; à direita, como a desinformação funcionou: a pessoa que comenta fala das 109 partidas, identificadas pela Sportradar, como se fosse a de Textor - na verdade, ela desmente as acusações de Textor.

Em matéria sobre a presença de Textor no Facebook, é possível perceber o êxito em generalizar desconfiança sobre árbitros e CBF e pedido de intervenção; a justificativa de que as acusações são críveis porque o país é corrupto; a ideia da salvação vinda de fora por um estrangeiro; e novamente associação e exaltação de Textor e Musk.


  O MP de Goiás conduziu a Operação Penalidade Máxima, identificando e denunciando diversos jogadores - e nenhum árbitro - envolvidos com manipulação nas séries A e B em 2022 favorecendo grupos criminosos em apostas esportivas. Atletas foram punidos esportivas e responde criminalmente, como ocorre com os criminosos. O monitoramento da Sportradar indica um avanço, por não identificar partidas da série A. Logo, a questão com Textor não é a inexistência de manipulação, o que seria uma crença utópica. Porém, o empresário pega um problema geral, aproveita da desconfiança das pessoas, e faz acusações específicas para as quais não tem provas. Para sustentar a narrativa, busca outros casos e evoca a desconfiança em função do problema geral conhecido. O resultado é que ele amplia a insegurança das pessoas, fragiliza ainda mais as entidades e inverte o ônus da prova. Ao fim e ao cabo, a presunção da inocência - uma garantia legal - foi destruída e as entidades e pessoas acusadas passaram a ter que provar a inocência. 



c) O que está por trás?

Há uma intenção deliberada de gerar desconfiança sobre o futebol brasileiro, apontando irregularidades em outras divisões e competições para sustentar a seguinte pergunta: quem garante que não ocorreu ou ocorrerá na série A. Textor resolveu se vestir de “mártir” do combate à corrupção no futebol. Enquanto Musk, atuou numa seara de direito coletivo, se limitando a discursivamente lutar contra o Estado em defesa do “povo”, Textor escolheu um campo cuja denúncia demanda o apontamento de corruptor e beneficiário. Por isso, ele citou os cúmplices (CBF e STJD); mas, em que pese, afirmar ter citado nominalmente para Polícia Civil do Rio de Janeiro o rol de corrompidos dentre árbitros e jogadores de São Paulo e Fortaleza, ele não aponta corruptor e motivos - apenas um suposto beneficiário (o Palmeiras) favorecido sabe-se lá por quem e por quê.


Em 16 de abril, o jornalista Leandro Demori analisou no ICL Notícias a mudança nas armas geopolíticas dos EUA. A partir do governo de Richard Nixon (1969-74), a arma era o combate às drogas, cujos agentes da Drug Enforcement Administration (DEA), criada em 1973, atuavam como parte do sistema de inteligência. Essa arma ganhou recentemente o apoio de outra: o combate à corrupção. Por meio dela, agentes dos EUA obtêm acesso ao sistema de justiça e influenciam a atuação dos operadores do direito de outros países. O ordenamento jurídico estadunidense permite o uso das informações obtidas inclusive informalmente para processar empresas, organizações e instituições estrangeiras.[xx] Obviamente, essa nova arma é usada seletiva e estrategicamente para favorecer empresas, instituições e organizações yankees. Assim como garantir os interesses estratégicos e manter o poder hegemônico do imperialismo estadunidense. No caso da Operação Lava-Jato, acumulam-se cada vez mais evidências, reveladas por grandes meios de comunicação internacionais, de que o combate à corrupção foi instrumentalizado por setores da oposição e do Departamento de Estado dos EUA, para combater “a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionados pelo plano de criação dos ‘campeões nacionais’ patrocinado pelo BNDES, banco estatal de fomento empresarial”.[xxi] Para tal, provas obtidas informalmente serviram aos processos contra Odebrecht e Petrobras nos EUA. Mas não só.


O FifaGate (2015) resultou de investigações realizadas pelo FBI, a polícia federal dos EUA, resultando em prisão e afastamento de dirigentes da Fifa. As investigações envolviam corrupção, fraude, extorsão, lavagem de dinheiro e propinas referentes à definição de sedes para Copas do Mundo e acordos de marketing e direitos de transmissão desde 1991. A alegação para a ação na justiça estadunidense é que operações suspeitas passaram por bancos do país, algumas das tratativas para os crimes podem ter ocorrido no território e que o mercado televisivo do país foi afetado pelas irregularidades na comercialização dos direitos de transmissão - isso mesmo: o entendimento de que um caso ocorrido em qualquer lugar do mundo pode ser alvo do sistema de justiça dos EUA caso afete a economia do país. Coincidência ou não, após as operações, os EUA receberam da Fifa parte da Copa do Mundo de 2026 e o novo Mundial de Clubes de 2025 (SuperMundial de Clubes com 32 participantes).


As ações de Textor tendem a não ter o mesmo alcance da Operação Lava-Jato, mas o espaço já destinado a elas pelos senadores da CPI das Apostas Esportivas pode impactar na estrutura organizacional do futebol brasileiro, ainda mais se as autoridades dos EUA avaliarem a conveniência de continuar o avanço sobre o mercado do futebol. Os ataques à CBF e ao STJD não são banais, posto que o futebol brasileiro esteve no alvo no FifaGate: alguns dirigentes implicados eram brasileiros (José Maria Marin, Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero) e o empresário brasileiro José Hawilla foi um dos delatores e acusados de participar do esquema. Outrossim, ao menos duas SAFs tradicionais no Brasil são propriedade estadunidense: a 777 Partners, sediada em Miami, detém 70% da SAF do Clube de Regatas Vasco da Gama; e John Textor, estadunidense com endereço na Flórida, é dono de 90% da SAF do Botafogo - o nome dele é que aparece no Estatuto Social[xxii] e não o da Eagle, sediada em Londres. Eis a questão: isso pode ser considerado impacto sobre a economia yankee? E quanto às empresas patrocinadoras e demais investidores no futebol brasileiro com sede lá? Quantas dessas casas de apostas (bets) usam bancos e/ou provedores estadunidenses? Ou, mesmo que o processo não vá inteiramente para a justiça estadunidense, quais as informações formais e informais serão enviadas?


Textor teria meios mais efetivos para colaborar com um futebol limpo, caso apresentasse antes provas e/ou indícios para dar causa a uma abertura de inquérito via MP, Polícia Civil do Rio de Janeiro (PC-RJ) ou Polícia Federal. Mas, não é disso que se trata e ao menos uma mentira já veio à tona: o empresário afirmou ter comparecido voluntariamente para prestar depoimento na PC-RJ, no último 03 de abril, mas a versão oficial da polícia é que ele foi intimado.[xxiii] Em consequência, após meses de sensacionalismo, no último dia 12, entregou à PC-RJ os tais relatórios, vídeos e gravações que afirma provar a série de acusações. O presidente da CPI do futebol no Senado, Jorge Kajuru, já havia sinalizado que acionaria a Polícia Federal e obteve apoio dos bolsonaristas Eduardo Girão e de Carlos Portinho. É aí que a complexidade do futebol brasileiro desarma um observador externo menos atento: Girão já presidiu o Fortaleza e Portinho foi vice-presidente do Flamengo. Apesar de estarem ideologicamente próximos a Textor, o futebol brasileiro, como instituição política informal, produz seus efeitos políticos e constrange seus atores a prestar contas às suas bases eleitorais. Tanto é que Girão se dedicou a falar sobre a regulamentação das apostas esportivas, em linha com o que já defendia antes; e Portinho, apesar da cordialidade demonstrada em 22 de abril, reforçou as inconsistência da Good Game!.


Na CPI, Textor pediu para falar apenas 15 minutos e parte do tempo foi usada para elogiar o Senado pela Lei da SAF que abriu o "mercado do futebol para investimentos estrangeiros" e apresentou números sobre esse "mercado", enfatizando que o Brasil representa 10% do total de negociações mundiais de jogadores de futebol. Ademais, falou de sua trajetória no setor de tecnologia, custos de novas câmeras que viabilizam VAR 100% automatizado e o interesse de financiar a instalação em vários estádios. Como seria óbvio supor, o empresário focou no potencial econômico do esporte. 


Seja qual for a intenção imediata de Textor, a forma como age não é acidental e não está apartada do modo de agir de Musk. A ideia de que relatórios de uma empresa inexpressiva são suficientes para provar as denúncias poderia ser uma crença anormal na capacidade da Inteligência Artificial explicar o jogo de futebol por padrões? Logo o esporte que mais se caracteriza pelo improviso e pelo acaso. Se for isso, claramente a tecnologia não tem dado conta de ajudá-lo no futebol. Afinal, ele é mais conhecido por problemas em seus clubes na França, na Inglaterra e na Bélgica que pelo sucesso esportivo. Não acreditamos, porém, nessa inocência: no manual Alt-Right o que importa não é a qualidade das provas ou a veracidade das acusações, mas que tais denúncias sejam verossímeis para provocar um efeito na opinião pública e, com isso, influenciar a dinâmica social. Estamos falando de uma estratégia de manipulação da comunicação de massa no mundo virtual.


É possível questionar: qual a lógica de desvalorizar o mercado que atua? Essa questão tem origem na idealização da entrada do capital e da gestão empresarial no futebol, mas isso só seria invariavelmente incoerente se o objetivo dele fosse vender a SAF. Há uma crença generalizada entre torcedores que a entrada de uma empresa ou um empresário significará fatalmente a consolidação do seu clube de coração como grande competidor. Essa crença desconsidera que a finalidade do investimento privado é o lucro e, no futebol, há meios menos arriscados para acumulação que apostar nos títulos. O investidor pode buscar retorno pela exploração da estrutura física, pela revelação e desenvolvimento de talentos. Especialmente as últimas, são formas que dificilmente se compatibilizam de modo duradouro com conquistas de títulos em um meio competitivo como o Brasil.


A opinião pública entende claramente a legitimidade dessa estratégia para o RB Bragantino Futebol Ltda. (uma pessoa jurídica empresarial distinta da SAF), mas finge não perceber que, apesar da tradição, algumas das SAF podem ser projetadas para essas finalidades e não para os incertos resultados esportivos. Podem existir para revelar e vender atletas jovens ou desenvolver jogadores para clubes prioritários dos grupos gestores. As transações de jogadores do Botafogo com outros clubes da Eagle estão aí para quem quiser ver. Textor, que se deslumbrou com a receptividade da torcida e com a possibilidade do título brasileiro em 2023, encontra nos ataques um argumento para se reposicionar coerentemente com as estratégias da Eagle para o futebol. Ao mesmo tempo em que atira contra o arranjo vigente no futebol para justificar os insucessos esportivos e dar legitimidade a propostas de organização do futebol que favoreçam seus objetivos mercantis.

 

 

4. Da cultura popular ao Judiciário: a promoção da desconfiança contra a soberania nacional

É importante ser claro: não estamos afirmando que Musk e Textor sentaram-se em uma mesa com os líderes da extrema-direita mundial para dividir as tarefas no ataque à soberania nacional (Musk) e a elementos da cultura popular brasileira (Textor). Porém, claramente o Brasil está sob ataque em múltiplos campos com a participação de diversos atores (individuais ou coletivos) que compartilham estratégias similares e recorrem a um modo de agir alinhado aos manuais do Alt-Right. Musk e Textor fazem parte disso. Em termos objetivos há um ambiente político, ideológico e institucional que parametriza as escolhas dos agentes do capitalismo norte-americano. Para estes o Brasil, como outros da América Latina, somos um país subordinado com fraquíssima vontade político-institucional de resguardar nacos de soberania nacional. Ao mesmo tempo encontram no plano doméstico setores sociais dispostos a fazer o serviço sujo dos interesses estrangeiros. Esse é o contexto mais geral que podemos concluir que claramente o Brasil está sob ataque. O professor Manuel Domingos Neto, em seu texto para o DCM, apontou um elemento fundamental:

 

Os que disputam a hegemonia do mundo criam expedientes capazes de atuar a seu favor [...] Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional. Musk não é um gênio sul-africano que se fez sozinho. Não iria longe sem parcerias com os gestores da estratégia de dominação estadunidense. Antes de tudo, Musk é um agente do Pentágono. Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios [...] Não é apenas a democracia que está em risco, mas a autonomia nacional [...] Musk não é um mero empresário. É um agente a serviço de Washington. Seus apoiadores não sabem o que seja defesa da pátria (grifos nossos).[xxiv]

 

O mesmo se aplica a Textor (“Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional”). Sem fazer qualquer ilação, é possível verificar, como dissemos antes, relações com lideranças políticas do Partido Republicano, alinhadas ao Alt-Right, tanto por parte do magnata sul-africano quanto do CEO do Botafogo. Desse modo, é possível que o objetivo maior seja potencializar suas atividades econômicas, mas ambos perceberam que o ataque à soberania nacional (Musk) e a implosão do arranjo institucional nacional vigente e a desconfiança a um elemento da cultura popular (Textor) facilita a realização desses interesses, sobretudo pela obtenção de apoio na opinião pública. Musk, como “guardião da liberdade”, e Textor, como “defensor da moralização da maior paixão nacional”, recorrem à desinformação (mistura acusações diferentes em um mesmo discurso) e contam com o viés de confirmação de pessoas que acreditam que: (1) o politicamente correto e os limites da liberdade de expressão favorecem a destruição dos seus valores comunitários em favor de uma agenda globalista/multicultural deletérios ao senso de pertencimento; (2) que seus clubes e, portanto, eles mesmo estejam sendo deixado para trás em função de uma conspiração (privação relativa). Enquanto Musk passou a ser visto como mártir que protegeria um instrumento e um meio para a luta política; Textor defenderia que certas identidades não fossem preteridas - uma vez que a identidade clubística compõe a identidade de parte da população brasileira e auxilia na construção de laços comunitários.


Os interesses econômicos de Elon Musk são motivos suficientes para tentar influenciar politicamente o Brasil. Musk tem o exemplo de Minas Gerais: havia um projeto encabeçado pela Codemge (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais) e a Companhia Brasileira de Lítio junto com a britânica Oxys e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração para explorar o lítio no estado e produzir as baterias no Brasil. A Oxys faliu em 2021 e, desde então, Zema, que se alinha em diversas pautas à extrema-direita, defendeu a retirada do estado do negócio. Isso inviabilizou a participação da Companhia Brasileira de Lítio, cujo estado de Minas Gerais possui 33% das ações, e da Codemge. Concomitante com o veto do governador à participação estatal, empresas estrangeiras passaram a explorar o lítio em Minas: além da Sigma e da AMG que já extraem o minério, Latin Resources, Atlas e Lithium Ionic negociam áreas. Nesse caso, a estratégia de fragilização nacional articulada com políticos locais conta com um histórico recente de êxito e favorece os interesses de Musk na compra da Sigma e na aproximação com o Norges Bank (acionista da Sigma e da AMG).


E quanto a John Textor? Em termos mais amplos, como disse o professor Manuel Domingos Neto, “Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios”. Para essa avaliação, veremos o grau de apoio que receberá para continuar seus ataques e/ou o modo que eles eventualmente serão dirimidos. De todo modo, a duração dessas ações até o momento demonstra não haver contradições com projetos político-econômicos mais amplos das instituições estadunidenses e sua exposição e maior frequência no Brasil (em comparação aos países dos outros clubes da Eagle) chama atenção para a existência de algo mais: a pauta anticorrupção e a publicidade ampliada com a nova CPI convergem com a nova arma geopolítica dos EUA e pode abrir caminho para órgãos de Estado norte-americanos acessem informações relevantes sobre aspectos jurídicos e o arranjo político-institucional do futebol brasileiro. Isso é reforçado pela qualificação como "problema global". Está claro que, caso Textor seja apenas um carona, isso não se deu ao acaso. Como vimos, sua discrição não esconde seus vínculos com a ala mais à direita do Partido Republicano.


Portanto, Musk e Textor usam estratégias com clara procedência política, mas se diferem pela pauta que mobilizam e o meio que atuam. A chance de êxito de Textor tende a ser menor porque a pauta da corrupção o coloca em rota de colisão com outros clubes e torcidas denunciados como corrompidos e beneficiários, fazendo com que o elemento ideológico seja minimizado pela identidade clubística confrontada. Além disso, o meio em que atua conta com entidades que compõem um arranjo institucionalizado formal e informalmente. A memória do FifaGate, por um lado, expõe a CBF pelos presidentes envolvidos em corrupção; por outro, ao afetar clubes, amplia o nível de reação organizada. Já Musk, além de ser mais conhecido, é dono de uma rede social que amplifica seu alcance, atua em uma área ainda em disputa (regulamentação da internet e das redes sociais) e recorre a uma pauta que supostamente o coloca em defesa de todos os cidadãos contra o arbítrio do Estado, sem se opor a entidades e instituições intermediárias que possam mobilizar reações populares mais orgânicas contra o ideal que dissimula seus interesses político-econômicos.

 

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* Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor do Instituto Federal de São Paulo, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia” (Appris).

 

** Renato Nucci Jr. é ativista da Organização Comunista Arma da Crítica (OCAC).

 



[i] A empresa tem sede em Londres na 57-59 Beak Street, S/N. Porém, é o nome de John Charles Textor que aparece como investidor no Estatuto Social da SAF do Botafogo, detentor de 90% das ações da SAF.

[xx] Essa prerrogativa foi consolidada a partir do USA Patriot Act (Public Law 107-56), que teria o objetivo de combater o terrorismo internacional. A sec.1004 altera o Foro em casos de corrupção e lavagem de dinheiro, permitindo que o sistema de justiça dos EUA processe empresas e cidadãos de quaisquer países, se o ato tiver em algum etapa passado pelo sistema financeiro do país, por provedores, afetar a economia ou alguma atividade relacionada à corrupção tenha sido realizada no território dos EUA (Cf.: https://www.congress.gov/107/plaws/publ56/PLAW-107publ56.htm).

terça-feira, 23 de abril de 2024

A inútil adulação ao mercado

 

Fonte: PalSand/Shutterstock, 2022, Copyright (c)

Renato Nucci Júnior*

    Entre os dias 14 e 19 de março, a Genial/Quaest fez uma nova rodada da pesquisa “O que pensa o mercado financeiro: o governo Lula”[i]. Foram entrevistados 101 operadores do mercado financeiro ligados a 101 fundos de investimentos com sedes em Rio de Janeiro e São Paulo.

    Para 96% dos pesquisados, Lula é pouco ou nada confiável. Já Roberto Campos Neto, o presidente do agora autônomo Banco Central, possui a confiança de 81% dessa gente. Apenas 1% dos pesquisados diz confiar muito em Lula.

    A mesma pesquisa havia sido feita em novembro de 2023. Àquela altura, 52% dos entrevistados afirmaram ter uma visão negativa do governo Lula. Nessa última pesquisa esse índice subiu para 64%, enquanto 30% tinha visão regular e apenas 6% uma visão positiva. Em contraste com o presidente, Fernando Haddad, ministro da Fazenda, é avaliado positivamente por 50% dos pesquisados. Já Campos Neto foi avaliado positivamente por 94%.

    A causa principal dessa rejeição do mercado financeiro a Lula está, para 50% dos pesquisados, no temor de que o governo aumente sua intervenção na economia. Esse temor é de longe maior do que um eventual estouro da meta fiscal, considerado um risco para 23% dos pesquisados.

    O ameaçador espectro do intervencionismo estatal declarado pelos pesquisados estaria nos constantes atritos de Lula com Campos Neto, presidente do BC, por causa das altas taxas de juros. Do mesmo modo o risco intervencionista estaria na recente decisão do governo de não remunerar com dividendos extraordinários os investidores da Petrobrás e nas críticas de Lula à política da Vale, que deveria estar alinhada ao projeto desenvolvimentista do governo.

    Para 97% dos pesquisados foi uma decisão errada o governo não pagar os dividendos extraordinários alcançados pela Petrobrás com os acionistas. No caso da Vale, 89% declarou que uma intervenção do governo na empresa poderia levar a uma diminuição dos investimentos estrangeiros no Brasil. O temor também se alastra sobre possíveis interferências no Banco Central, que é o responsável por manter uma política fiscal que mantém intacto os interesses do rentismo.

  Como o eixo da acumulação capitalista em nosso país está centrado na especulação financeira, entende-se o temor manifestado pelos agentes do mercado de o governo mexer na Petrobrás e na Vale. Afinal, em termos de volume, ambas são de longe as empresas nacionais que mais pagam dividendos aos seus acionistas.

    Essa é a intervenção estatal temida pelo mercado. É o governo se imiscuir na administração de empresas sobre as quais o rentismo detém relativo nível de participação acionária. Vistas pelo mercado financeiro como empresas cuja finalidade é dar lucro para remunerar acionistas, rejeitam qualquer ingerência estatal que busque redirecionar seu papel no sentido de atender o interesse público, o que afetaria o volume assombroso de lucros e dividendos por elas distribuídos.

    Do mesmo modo, torna-se inaceitável alterar a política básica de juros que remunera os títulos da dívida pública. Em 2017, os fundos de previdência (com 25,5%), fundos de investimentos (com 25,2%) e as instituições financeiras (com 22,3%), eram os principais controladores da dívida pública[ii].

    No Orçamento Geral da União está reservado, para de 2024, R$ 2,5 trilhões destinados a pagaar juros e amortizações da dívida. Segundo matéria do Brasil de Fato de 2016, as aplicações em Títulos e Valores Imobiliários representavam 43% das receitas auferidas pelos bancos nos dois anos anteriores[iii].

    Apesar de todo o falatório sobre as virtudes do mercado livre e das vantagens do Estado mínimo, na prática, impera uma apropriação privada do Estado por pouquíssimos grupos capitalistas, que o utilizam com o propósito exclusivo de facilitar uma acumulação parasitária de capital.

    Outro ponto interessante na pesquisa é o quesito confiança em líderes políticos. Neste caso, Lula é pouco ou nada confiável para 96% dos pesquisados. Nem mesmo Fernando Haddad, responsável por inviabilizar o governo por sua defesa da agenda neoliberal, é bem avaliado pelo mercado. Dentre os pesquisados, 48% confiam pouco ou nada no ministro.

    Para os membros do mercado financeiro que responderam à pesquisa, confiáveis mesmo são os políticos liberais puro-sangue. Aqueles que não cederiam a agenda “populista” da gastança e da irresponsabilidade fiscal. Neste quesito, já como um sinal do candidato preferido dos rentistas, o governador paulista Tarcísio de Freitas é considerado muito confiável para 62% dos pesquisados. Mas o campeão em confiabilidade do mercado é Roberto Campos Neto, cujo índice alcançou 81%.

    Essa pesquisa poderia ensinar ao governo em geral, e a Lula em particular, a inutilidade de adular o mercado financeiro. Manter uma política econômica que corresponde aos seus interesses, não garante apoio dessa gente ao governo e muito menos a Lula. Ao contrário, as desconfianças permanecem, e ainda por cima indispõe o governo com sua base político-eleitoral.

    A razão é simples: o rentismo não aceita discutir os termos do ajuste ultraliberal. Qualquer sinal de mínima alteração ou reforma no modelo é inadmitida e gera reações negativas e de desconfiança. Por isso a rejeição ao governo e a Lula. E pouco lhes importa que o ministro da economia, Fernando Haddad, adule o mercado com o anúncio de medidas antipopulares, como a de flexibilizar os pisos mínimos constitucionais da saúde e educação para garantir a meta do déficit zero[iv].

    O que o mercado quer é um compromisso total e absoluto com sua agenda. Governos que tenham uma base político-eleitoral formada pelas classes populares representam um problema, já que suas expectativas são contrárias a da especulação financeira, pois precisam de algum modo ser atendidas, mesmo que de forma limitada.

    Por isso, mesmo propostas rebaixadas que buscam se aproveitar de pequenas brechas no modelo ultraliberal, como o programa Nova Indústria Brasil, são rechaçados como repetição de velhas fórmulas fracassadas. Os agentes do mercado a justificam pelo temor de descontrole das contas públicas e de uma suposta desconexão do Brasil das cadeias globais de valor[v]. Outro exemplo foi a criminosa declaração de um porta-voz do mercado, de que o crescimento de 2,9% do PIB em 2023 estaria a causar pressões inflacionárias, devendo a expectativa de expansão ser reduzida para abaixo de 2%[vi].

    A política do mercado financeiro, muito interconectado ao sistema financeiro internacional, tem um “projeto” nacional, que é o de proibir a economia brasileira de crescer, de se desenvolver, de garantir algum nível de soberania nacional, de ter preocupações mínimas com geração de emprego e garantia de renda. Pretende-se no fundo manter o país em estado de estagnação e aprofundar uma política de saque e pilhagem da riqueza nacional via privatizações. Para essa malta, na divisão internacional do trabalho, o papel do Brasil é o de se limitar a produzir commodities agrominerais e de sermos um espaço de valorização do capital financeiro globalizado. E só.

    É por esse viés, da manutenção de uma política econômica que no fundamental não altera a vida do povo, mas que garante os enormes lucros da parasitagem financeira, é que a queda na popularidade e nos índices de aprovação do governo deve ser considerada. O problema do governo não é de falta de comunicação, mas falta de política. Se quiser mesmo afastar o risco de volta da extrema-direita na eleição de 2026, o governo precisa urgentemente parar com sua política de adulação ao mercado, que tem destruído o tecido social e alimentado a demagogia do protofascismo.


*Renato Nucci Júnior é ativista da Organização Comunista Arma da Crítica (OCAC). 



[i] https://twitter.com/genialinveste/status/1770442313690427856

[ii] https://monitormercantil.com.br/quem-s-o-os-detentores-da-d-vida-p-blica/

[iii] https://www.brasildefatorj.com.br/2016/07/20/quem-sao-os-proprietarios-da-divida-publica-brasileira

[iv] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/04/flexibilizar-pisos-de-saude-e-educacao-pode-liberar-r-131-bi-para-outros-gastos-ate-2033.shtml

[v] https://einvestidor.estadao.com.br/mercado/por-que-mercado-desaprova-nova-politica-industrial/

[vi] https://www.estadao.com.br/economia/entrevista-alexandre-schwartsman-pib-dificuldade-inflacao/

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

Porto do Jaraguá visto do bairro Farol, Maceió/AL. Fonte: Arquivo pessoal.

“Tudo que é sólido desmancha no ar” e lembranças maceioenses

 

Os membros da burguesia reprimem tanto a maravilha quanto o terror daquilo que fizeram: os possessos não desejam saber quão profundamente está possuídos. Conhecem apenas alguns momentos de ruína pessoal e geral – apenas, ou seja, quando já é tarde demais. (Marshall Berman)

Paulo Sérgio Ribeiro

Há seis anos, dizia adeus a Maceió, cidade em que aportei em 2010 e na qual posso dizer que vivi as dores e os amores que conferem alguma grandeza à vida breve e banal que levamos.

Em 2010, percorríamos um Brasil um tanto diferente do qual submergimos com o golpe de 2016 e do qual tentamos sobreviver com a chegada da extrema direita ao primeiro escalão da política nacional em 2018. A comparação de cenários poderia ser feita com diferentes chaves de leitura e os processos nela focalizados demandariam tratar de elementos da conjuntura que a especialização nas ciências sociais nos induz a enxergar como que dotados de vida própria diante das pretensões de devolvê-los à historicidade dos macroprocessos.

Longe de mim estar à altura de tais pretensões neste epílogo. Mas na Maceió que deixei para trás (e que me assalta toda vez que a pulsão de vida pede passagem...) um fato torna sua lembrança um alerta sobre as ilusões que a percepção in flux dos acontecimentos nos ocasiona ao olhar de frente o espírito da modernidade ou, melhor dizendo, a sua contraface mais impiedosa: a modernização capitalista. 

Uma premissa: o espírito da modernidade é uma expressão objetiva do domínio do capital e das ruínas deixadas para trás com o suceder das suas crises de acumulação. O fato: Maceió está afundando. 

Os bairros Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol estão literalmente afundando, resultado de mais de 40 anos de exploração das minas de sal-gema que os circundam pela empresa petroquímica Braskem. O drama derivado desse crime continuado se traduz em mais de 65 mil famílias expulsas de suas residências, quase cinco mil empreendedores que perderam renda e, sem alternativa, demitiram cerca de 30 mil trabalhadores. Pasme, a degradação do solo urbano é de tal monta que se registrou um terremoto de 2,5 graus na escala Richter na capital alagoana em 2018[1].

Ter lido essa notícia me remeteu a uma célebre passagem do Manifesto Comunista, de Marx e Engels, que tomei de empréstimo para o título:

“Tudo que é sólido desmancha no ar”.

Marx e Engels imprimiram naquele panfleto um autêntico testemunho das esperanças do oitocentos europeu atribuíveis à liberação das potencialidades humanas com o alvorecer da civilização burguesa sem, entretanto, ocultar seu fundamento na inevitável destruição dos modos de vida sob um sistema econômico cuja expansão ignora limites da vida material e destrona interdições da moral e da cultura tanto em vilarejos quanto em megalópoles.

Rever, pois, o desenvolvimentismo presente no Manifesto Comunista permite olharmos para a circunstância dos homens e mulheres maceioenses sem subestimar o enfrentamento das contradições que lhes atravessam e que, na referida obra, já se insinuavam na avaliação quase apologética da capacidade transformadora que a burguesia, enquanto classe que um dia foi revolucionária, revelaria ao mundo. Para tanto, nada melhor do que revisitar Marshall Berman, notadamente pelo modo como ele captou a dimensão fáustica de nossa civilização que o Manifesto ajudaria a iluminar.

Para o filósofo estadunidense, a maneira como Marx e Engels se deixavam levar pela torrente da vida moderna é a um só tempo crítica e “cúmplice” das revoluções burguesas. Em meio a acelerada transformação que delineava os contornos mais abrangentes da modernização capitalista – a emergência de um mercado mundial e a produção de massa capitalista que promoviam o êxodo de famílias campesinas despossuídas para engrossarem o proletariado das áreas urbanas cuja paisagem, por sua vez, confundia-se com as fábricas que tanto absorviam quanto solapavam os antigos mercados locais –, havia na verve incendiária de Marx a evocação de um ativismo burguês que, lembra Berman, surpreende o leitor do Manifesto por deixar os seus contemporâneos a um só tempo “excitados e perplexos”[2] ao descrever como a mudança social espelhada por aquele ativismo nos defrontava com a vida moderna enquanto uma “construção móvel que se agita e muda de forma sob os pés dos atores”[3]. Berman vai além:


O que é surpreendente nas páginas seguintes é que Marx parece empenhado não em enterrar a burguesia, mas em exaltá-la. Ele compõe uma apaixonada, entusiasmada e quase lírica celebração dos trabalhos, ideias e realizações da burguesia. Com efeito, nessas páginas ele exalta a burguesia com um vigor e uma profundidade que os próprios burgueses não seriam capazes de expressar (BERMAN, 1986, p.90).

Ora, mesmo em um autor não propriamente marxista como Yuval Harari, podemos escutar os ecos dessa revolução permanente quando o historiador israelense ressalta – de modo um tanto contraintuitivo[4] para consciências alardeadas pela crise climática – que o estoque de energia disponível no planeta não parou de crescer desde quando aprendemos a converter um tipo de energia em outro, viabilizando, pois, as bases técnicas para mudanças dos modos de produção as quais, para o bem e para o mal, permitiram ao gênero humano estender sua barganha com a natureza.

Por óbvio, devemos nos perguntar quais seriam os termos dessa “barganha” e até quando poderemos nos valer dela. 

Na obra de Marx, há um otimismo diante da janela histórica aberta pela revolução burguesa, a ponto de o pensador alemão arriscar a própria pele na organização do movimento operário europeu para contrapor-se às iniquidades da nova ordem do capital. Se assim o foi, indagaria o leitor, por que cargas d'água o “velho barbudo” quis enaltecer aquela revolução, se a ordem social que a sucedeu não teria outra consequência senão a mais atroz desumanização do trabalho? Haveria uma contradição em termos no Manifesto Comunista?

Berman observa que importava menos para Marx as inovações tecnológicas sobrevindas com o capitalismo e mais o dinamismo da civilização burguesa. O constante revolucionar dos meios de produção não deixaria margem à sacralização de um passado como o do ancien régime. De fato, a burguesia foi a primeira classe dominante cujo poder se estabeleceu não pela aceitação passiva das relações hierárquicas em uma estrutura social, mas pela pressão de inovar ativamente seus negócios em resposta à diuturna competição de uma economia de mercado. Ao fazê-lo, desvelaria um escopo inaudito da atividade humana promovendo uma “perpétua sublevação e renovação de todos os modos de vida pessoal e social”[5].

Contudo, esse novo ideal de “vida ativa” concernente à burguesia não poderia ser contemplado em todas as suas possibilidades, pois o seu papel revolucionário seria rapidamente suprimido pela redução de todos os processos ativos e esforços humanos que impulsionou a um único significado, a mercadoria, e a único propósito, acumular capital. Berman reconhece em Marx o seu débito com o “ideal desenvolvimentista da cultura humanística alemã”[6], uma tradição intelectual da qual ele se filiou de uma maneira sui generis: assimilando a estrutura de personalidade requerida pela economia burguesa ao mesmo tempo em que se fazia seu mais contundente crítico ao tentar “fazer história” formulando uma via emancipatória para os trabalhadores.  

O drama da modernidade, visto pelo prisma do materialismo histórico, é que realmente ninguém está alheio àquela estrutura de personalidade e que mudanças, por catastróficas que sejam, apenas confirmam que atividades humanas cada vez mais sofisticadas – como o extrativismo de minério em uma área urbana densamente povoada como a operada pela Braskem em Maceió – não têm um significado em si mesmas, pois são apenas meios para a consecução de um fim – fazer dinheiro , reservando às milhares de pessoas atingidas pela negligência a favor do lucro a impossibilidade de exercer a vida activa com a fluidez que uma sociedade supostamente aberta como a da economia de mercado estimularia.

A metamorfose do capital – sua transitoriedade quanto aos ramos de atividade em que é reinvestido –, será traduzida no futuro breve pelos novos anúncios do mercado imobiliário para a reconstrução dos bairros maceioenses afetados pela ação predatória da Braskem. Uma ordem grão-burguesa se consolida a despeito de vidas humanas e não-humanas serem aniquiladas por vorazes empreendimentos nas cidades litorâneas brasileiras como, entre tantos outros exemplos, construir torres residenciais fincadas no mar de Salvador[7]; o projeto de urbanização para o cais José Estelita, em Recife[8]; além claro do mundo bizarro criado com o alargamento da faixa de areia em Balneário Camboriú, em Santa Catarina[9].

A noção de “colapso” com a qual o noticiário reveste os dias de agonia na capital alagoana pode ser enganosa. Não há evidência alguma de que o que ocorre em Maceió e alhures seja um esgotamento da capacidade de o capital assumir novas formas em sua autodestruição inovadora. Mas esse prognóstico não nos desestimula a indagar, perante impactos ambientais cada vez mais severos, quais são as alternativas emancipatórias às “soluções” das grandes corporações cujo modelo econômico de sempre é agora requentado pelo discurso da transição verde”.



[1] Brasil 247. Documentário de Carlos Pronzato sobre o crime da Braskem que está afundando Maceió terá pré-lançamento em São Paulo. Edição de 19/07/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p.89.

[3] Idem.

[4] “O volume de energia armazenado em todo combustível fóssil na Terra é insignificante quando comparado ao volume que o Sol fornece todos os dias – e de graça. Embora apenas uma pequena fração de energia solar chegue até nós, ela equivale a 3 766 800 exajoules de energia a cada ano. [...] Todas as atividades humanas e indústrias combinadas consomem cerca de quinhentos exajoules por ano, o equivalente ao volume de energia que a Terra recebe do Sol em meros noventa minutos. E isso diz respeito apenas à energia solar. Além dela, estamos cercados de outras enormes fontes de energia, como a nuclear e a gravitacional – esta última mais evidente no poder das marés oceânicas causadas pela atração que a Lua exerce sobre a Terra”. Cf. HARARI, Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 359.

[5] Cf. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido demancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1986, p. 92.

[6] Op. cit., p.94.

[7] Blog  Nem amigo nem inimigo. A miamização da BTS. Acesso aqui.    

[8] Jornal Metrópoles. Sob críticas sociais e Lava-Jato, o Cais José Estelita, em Recife, é um problema. Edição de 23/05/2019. Acesso aqui.

[9] Diário do Centro do Mundo. Alargamento da faixa de praia consolida Balnerário Camboriú como o retrato escarrado da jequice bolsonarista. Edição de 28/08/2021. Acesso aqui

domingo, 10 de dezembro de 2023

Convite Voyeur Político n. 11


Aqui estamos com mais um episódio do projeto Voyeur Político! Estamos no terceiro ano do projeto, episódio nº11. Nossa conversa ao vivo irá acontecer na próxima terça-feira, 12/12, 10 da manhã (hora de Brasília) e as inscrições para acompanhar o papo podem ser feitas por aqui: https://forms.gle/nCzmHjXN8VREjmHJ6 . Como é a praxe, para quem não puder nos acompanhar ao vivo, a conversa ficará disponível no YouTube.

O papo será sobre segurança pública no final deste primeiro ano do mandato de Lula III, O Resiliente. Afinal, avançamos ou retrocedemos? Flavio Dino, o mais pop dos políticos brasileiros contemporâneos, aquele que até mesmo foi retratado como um dos Vingadores, convenceu como policy maker?

Para uma conversa tão complexa como essa receberemos Roberto Uchôa e Rodrigo Monteiro.

Uchôa é graduado em Direito pela UERJ, mestre em Sociologia Política pela UENF e doutorando em Democracia no Século XXI pela FEUC-Coimbra. Em sua vida institucional fora da universidade ele atuou na Polícia Civil no Rio de Janeiro e atualmente é Policial Federal da ativa. Com tudo isso Uchôa mantém uma vida engajada na arena pública brasileira, seja como membro do Conselho Administrativo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ou como intelectual público, intervindo em diversas discussões na mídia sobre a temática da violência urbana, controle de armas de fogo e etc. Publicou em 2021 “Armas para quem?: a busca por armas de fogo” pela editora Dialética.

Rodrigo Monteiro é prata da casa, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos e dr. em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ. Rodrigo atua também no PPG em Sociologia Política no IUPERJ-UCAM. Em sua vida profissional prolífica publicou, dentre uma variedade de temas, sobre o urbano, a violência e a criminalidade. Em 2003 lançou o seu “Torcer, Lutar, ao Inimigo Massacrar: Raça Rubro Negra”, pela editora da FGV.

Com essa dupla o projeto se despede de 2023 em grande estilo! Esperamos vcs na terça!

Voyeur Político é projeto de Extensão coordenado pelo professor George Coutinho (COC/UFF-Campos) e sediado no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.


 

domingo, 3 de dezembro de 2023

Causas materiais da frustração e horizonte nebuloso para o Brasil

Fonte da imagem: Freepick


Jefferson Nascimento*


Roger Eatwell e Mathew Goodwin escreveram o livro Nacional Populismo – A revolta contra a democracia liberal, publicado no Brasil pela Editora Record. Na obra, reconhecem que a base social é diferente, mas incluem o bolsonarismo como fenômeno associado ao nacional-populismo, cujos principais expoentes são Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França) e o movimento pelo Brexit (Reino Unido).¹ Os autores explicam que o movimento emergiu de um revolta crescente contra o sistema político e a liberalização dos costumes e argumentam que a influência sobre os outros partidos e o sistema político tende a ser duradoura. Considerando que Eatwell e Goodwin associam o bolsonarismo ao nacional-populismo, resgato alguns argumentos e projeto o contexto brasileiro para os próximos anos.

Eatwell e Goodwin identificam quatro mudanças sociais na origem desse movimento político. Existe crescente (1) desconfiança em relação aos políticos e às instituições; verifica-se forte rejeição à liberalização dos costumes pelo (2) medo da possível destruição das comunidades, da identidade histórica do grupo nacional e dos modos estabelecidos de vida; onde o nacional-populismo e movimentos associados mais se fortaleceram houve (3) desalinhamento de partidos tradicionais (no Brasil, o encolhimento do PSDB está relacionado às alterações significativas nas disputas eleitorais e no comportamento da centro-direita e da direita institucional); e, destaco aqui, (4) a privação relativa.

Os psicólogos chamam de privação relativa a crença de um indivíduo de que está perdendo em relação aos outros. A economia globalizada neoliberal fortaleceu essa sensação em função das crescentes desigualdades de renda e riqueza e da falta de expectativa em um futuro melhor. Essa sensação se relaciona com a maneira como as pessoas pensam a imigração, a identidade e a confiança nos políticos; e se traduz na crença de que o passado era melhor e de que o futuro será ainda pior. No entanto, Eatwell e Goodwin verificaram que nos Estados Unidos a maioria dos adeptos não são desempregados e dependentes de programas sociais e sequer está no degrau debaixo, mas partilham da convicção de que o arranjo atual é prejudicial para elas por priorizar outros indivíduos e segmentos sociais. Esse ponto não explica sozinho, mas ajuda a compreender a maciça adesão ao bolsonarismo de segmentos da classe média, pequenos e médios empresários e certos segmentos trabalhadores (como autônomos, informais, etc.).

Existe um processo silencioso no Brasil que favorece a sensação de privação relativa e que tende a fortalecer o campo bolsonarismo e seus aliados nas próximas eleições. E é principalmente disso que vamos tratar, buscando identificar causas materiais para essa sensação, sem reduzir a questão aos aspectos psicológicos. Estamos diante de uma redução do desemprego/desocupação aparentemente consistente. Observemos o gráfico abaixo:

No entanto, a euforia em torno desses números sobre ocupação, esconde que a geração de postos de emprego, apesar dos ótimos números de empregos formais, segundo o CAGED, tem sido puxada por ocupações de remunerações menores, com crescimento de modalidades mais precarizadas (intermitente, temporário e terceirizado). Ou seja, a queda do desemprego está combinada com uma recuperação do rendimento mensal médio muito tímida e inferior à inflação. Vejamos o gráfico a seguir.

Ora, é possível argumentar que o processo de recuperação é complexo e exige tempo. Estou de acordo com esse ponto, mas é preciso identificar as causas que tendem fortalecer o bolsonarismo e podem ser parte da queda de popularidade do governo Lula, nas últimas pesquisas. Para isso, é necessário pontuar problemas materiais e não efeitos da desinformação e/ou do claro viés oposicionista de alguns meios de comunicação, como Gazeta do Povo, Estadão e Folha de São Paulo. Assim, é preciso pontuar que apenas agora estamos retornando aos níveis de rendimento médio pré-pandemia e ainda abaixo que o primeiro trimestre de 2021. E há um agravante: no período, a inflação acumulada é de 19,46%. Isto é, para que o poder de compra fosse o mesmo do primeiro trimestre de 2021, o rendimento médio deveria estar em R$ 3.574,34 (e não estamos considerando o pico do rendimento médio, acima dos R$ 3.139,00 entre maio e setembro de 2020; que significaria um rendimento médio corrigido acima de R$ 3.749,00). É também disso que se trata a privação relativa: a euforia e os festejos em torno do crescimento da ocupação escondem a depreciação do poder de compra dos trabalhadores. A comemoração em torno de dados isolados como provas da melhoria da economia reforça a sensação de muitos trabalhadores de que estão realmente sendo deixados para trás.

As pesquisas mostram que não se trata de ilações. A aprovação do governo vem caindo consideravelmente e a avaliação sobre a economia é mais negativa que positiva. Na pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira — Economia e População feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), apesar 45% da população admitir a melhora da economia nos últimos seis meses, a avaliação negativa sobre o quadro econômico atual é maior que a positiva: 38% consideram ruim ou péssimo contra apenas 24% avaliando como bom ou ótimo. Outro ponto é que 22% da população creem na piora da situação nos próximos seis meses e 21% acreditam que nada deve mudar. Existe ainda uma maioria que acredita na melhora da economia nos próximos seis meses: 53%. A questão é: como não frustrar essas expectativas se o governo continuar a agir do mesmo modo?

Um exercício simples de projeção é o seguinte: o novo governo Lula, mais comprometido com o receituário neoliberal do que contavam suas propagandas eleitorais, tende a piorar as condições materiais da classe trabalhadora. A inexplicável promessa de déficit zero de Fernando Haddad ameaça uma série de funções sociais do Estado e promoverá um desinvestimento que contradiz as promessas de um novo PAC, como uma nova indução do crescimento econômico coordenada pelo governo. Todos esses fatores materiais são agravados pela péssima condução das estratégias de comunicação do governo com o povo.

Existe um erro nas premissas adotadas. É fato que os eleitores bolsonaristas, tal qual os eleitores do nacional-populismo, não são transacionais e que a melhoria pura e simples das condições materiais não desmobilizará o bolsonarismo. Portanto, trata-se de um movimento que prioriza a cultura e os interesses da nação fortemente relacionado à descrença em relação ao sistema político e a aversão à liberalização dos costumes. No entanto, também tal qual o nacional-populismo, promete dar voz a pessoas que se sentem negligenciadas e/ou desprezadas por elites políticas. E é justamente nesse ponto que o abandono até mesmo da conciliação de classes para um neoliberalismo completo e a incapacidade de dialogar com as pessoas desmobiliza uma base social que poderia sustentar o governo Lula e afugenta os eleitores pragmáticos que depositam em Lula a esperança de um novo 2003-2010 ou, ao menos, uma opção menos pior que o governo Bolsonaro. Em suma: a continuar desse modo, o governo Lula estará sendo o maior cabo eleitoral do bolsonarismo e/ou aliados para as eleições municipais de 2024 e para a nacional de 2026.

As escolhas de Lula são, em sua maioria questionáveis. Para começar, Lula deixa a impressão ao grande público de ter abandonado a chefia de governo em favor de um consórcio encabeçado pelos neoliberais, fazendo concessões ao Centrão e abandonando pautas à esquerda que foram bandeiras de campanha. Sobre os neoliberais, já mencionamos o Haddad; e, há ainda, Camilo Santana, encabeçando o Ministério da Educação, assumindo os compromissos que Izolda Cela já havia feito no Ceará com entidades empresariais interessadas na educação, como a Fundação Lehman. As concessões ao Centrão não configuram um estelionato eleitoral, Lula foi bem claro no segundo turno, ao afirmar que governaria com o Congresso eleito; o ponto é a ineficaz comunicação favorecendo a retórica bolsonarista, que se notabilizou pelo domínio da comunicação nas redes sociais e vem revertendo os efeitos deletérios da publicização da aliança Bolsonaro-Centrão. Por fim, padecem de inanição pastas cujos temas foram intensamente usados como estratégia de contraposição ao bolsonarismo, como Meio Ambiente, Igualdade Racial e Povos Indígenas, relegando ao ostracismo Marina Silva (apesar do afago feito por Lula na COP), Anielle Franco e Sônia Guajajara. Em outras palavras: Lula parece não governar.

O terceiro mandato, até o momento, se destaca pelas ações de chefia de Estado, notadamente nas relações exteriores. Lula reposicionou o Brasil com destaque nos grandes debates, como a questão climática, a Guerra da Ucrânia e o genocídio de Israel sobre os palestinos. Portanto, o sucesso do governo, com Mauro Vieira e o Itamaraty, está sendo nortear o Brasil rumo ao resgate do histórico destaque do Brasil nas políticas externas.

É quase o oposto de Bolsonaro, que concentrou a atuação na política externa em algumas alianças estratégicas, seja por motivos ideológicos (Trump, Estado de Israel, Orbán, etc.), seja por interesses econômicos de setores apoiadores da burguesia (Rússia, lideranças de países árabes como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, e outros). Em termos de grandes questões, Bolsonaro secundarizou o papel do Brasil. Inclusive, com acenos ideológicos e econômicos para seus apoiadores em questões climáticas e em questões de saúde durante a Covid-19. Excetuando, a sua tentativa de colar sua visita à Rússia e sua conversa com Putin à busca pela paz no conflito russo-ucraniano.

De modo distinto, Bolsonaro soube manter sua base social ativa. Cedeu mais diretamente a gestão da economia aos agentes do mercado, por meio de Paulo Guedes, e fez grandes concessões ao Centrão para garantir governabilidade – até mais evidentes que Lula. Porém, Bolsonaro não abriu mão de imprimir sua marca em elementos culturais caros aos seus eleitores. Na educação, apesar da dificuldade de avançar sobre as Universidades e Institutos Federais, devido à autonomia dessas instituições, Weintraub e Milton Ribeiro implementaram as escolas cívico-militares difundindo uma visão de sociedade e acomodando militares da reserva em cargos; também, manteve agitado debates sobre as questões relativas à história, diversidade e justiça social (gênero, temáticas étnico-raciais, Ditadura Militar, etc.). Essa agitação era complementada pela intensa atuação de Damares Alves no Ministério da Família, com acesso a uma importante rede de conselheiros tutelares pelo Brasil. Para tudo isso funcionar, Bolsonaro e sua equipe cuidou muito bem da comunicação, colocando em suspeição a mídia tradicional, atacou instituições, como o STF, e estabeleceu uma forma de acesso aos apoiadores sem mediação (grupos no Telegram, lives semanais, perfis nas redes sociais dele e de influencers apoiadores). Essa forma de agir garantia uma agitação constante e, dada a característica não-transacional, o bolsonarismo manteve uma ampla base social mesmo em um cenário de indicadores muito ruins com uma gestão catastrófica na pandemia de Covid-19.

Mesmo as nomeações para a PGR e o STF, foram muito coerentes e geraram condições políticas favoráveis para Bolsonaro perante sua base. Augusto Aras, ao atuar em sintonia com o governo, melhorou as condições para a comunicação bolsonarista vender a ideia de um governo quase sem corrupção, em oposição aos corruptos governos anteriores, e estava alinhado aos valores conservadores nas pautas morais (contra questões de gênero e contra criminalização da homofobia). Kássio Nunes Marques e André Mendonça têm votado sistematicamente favorável ao ideário bolsonarista, levando ao STF o conservadorismo moral, ampliação da base neoliberal na Suprema Corte e o compromisso com as lideranças políticas bolsonaristas e seus aliados. Os eleitores bolsonaristas, críticos ferrenhos do STF, passaram a ver os indicados de Bolsonaro como resistência aos supostos interesses dominantes do sistema político.

O governo Lula sequer consegue mobilizar constantemente sua base em temas caros aos chamados setores progressistas. Representantes desses setores, que eram considerados ideologicamente centrais (pelo menos durante a campanha), pouco aparecem e dispõem de poucos recursos para agir significativamente. Além disso, suas nomeações – como já tinha se tornado praxe nos 13 anos de presidência petista – não apresentam compromissos claros em temas morais nem em pautas econômicas. Zanin – supostamente indicado por ser garantista – agradou até bolsonaristas por suas posições morais conservadores e têm votado contra os trabalhadores. Para a PGR, Paulo Gonet Branco – que já foi sócio de Gilmar Mendes – possui uma trajetória técnica, mas possui perfil conservador com posições contrárias aos grupos que mais apoiam Lula (contra as cotas, contra a descriminalização do aborto e contra a criminalização da homofobia). Ainda que tenha votado favorável à inelegibilidade de Bolsonaro nas duas ações (reunião com embaixadores e uso do 7 de Setembro), ele dificilmente iniciará ações ou dará pareceres favoráveis às minorias. Resta avaliar como agirá Flávio Dino no STF.

Estamos diante de pistas muito claras de que as condições estão favoráveis ao bolsonarismo e aliados, ou outras lideranças que venha por uma posição similar entre a extrema-direita e o populismo autoritário de direita. A manutenção do núcleo de sua base social, que não é transacional e nem se guia apenas por questões econômicas, pode ser incrementada por uma quantidade significativa de trabalhadores que perdem qualidade de vida, dia após dia, e se deparam duramente com uma propaganda mal formulada que comemora dados recortando-os do seu contexto. 

A extrema-direita, os nacional-populistas mundo afora e o bolsonarismo no Brasil se especializaram em ser antissistêmico e em alimentar utopias que os políticos de esquerda abriram mão ao se integrarem a ordem. Defender o status quo e se acomodar às regras do jogo é entregar a maioria da população ao canto da sereia: apesar do discurso aparentemente inovador, se trata de uma radicalização das condições atuais. Na Europa e no trumpismo, um nacionalismo contrário aos imigrantes; no Brasil e outros países latino-americanos, um neoliberalismo ou ultraliberalismo acelerado por um Estado cada vez mais repressor, excluindo minorias políticas e grupos étnicos e gêneros politicamente subordinados. 

Me recordo de uma frase do professor argentino Emilio Taddei em uma aula sobre as transformações políticas na América Latina: o neoliberalismo tornou a dívida uma moratória do futuro. A riqueza dessa frase capta o problema do debate sobre austeridade e déficit zero, que sacrificam funções sociais do Estado – vitais para a maciça maioria da população. Do mesmo modo, o endividamento pessoal ou familiar rouba a possibilidade sonhar e torna o trabalho como um exercício diário de pagar o ontem. Nesse último ponto, sejamos justos, há ações do governo que podem resgatar o ânimo de parte da sociedade (Desenrola e quitação do Minha Casa Minha Vida para família inscrita no Cadastro Único). No entanto, surge uma importante questão: quais as ações contemplam a centralidade do trabalho na vida das pessoas em busca de dignidade?

Se o perdão de dívidas pode diminuir a massa que trabalha diariamente para pagar o ontem, a redução do rendimento médio ainda condena uma maioria a não projetar o amanhã. Se o neoliberalismo penhora seu futuro e a esquerda propõe acomodação, essas vertentes da direita autoritária se fortalecem ao não terem pudor de colocar fantasias antissistêmicas. 



*Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política (UFSCar), professor do IFSP, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia (Appris).


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