terça-feira, 10 de maio de 2016

A conjuntura política: entre cognição fria e cognição quente

A conjuntura política: entre cognição fria e cognição quente

Por George Gomes Coutinho

A Ciência Política brasileira em seu mainstream contemporâneo aprendeu a apreciar de forma bastante detida a “racionalidade” dos agentes em interação no sistema político. Herdeira da Ciência Política de origem estadunidense, seus adeptos compreendem o agente político dentro de uma determinada cosmogonia e, arrisco dizer, padecem de um certo “encarceramento ontológico”. O agente político aqui é condenado ao que a teoria sociológica chama de racionalidade instrumental. Indivíduos auto-interessados, maximizadores de benefícios e minimizadores de déficits, só não partilham de uma verdadeira guerra desleal de todos contra todos por conta de relativo consenso sobre as regras do jogo e as consideram a partir da análise dos custos individuais: no limite,  para agentes auto-interessados, as regras do jogo só contam quando convém aos seus próprios interesses. Portanto, assim compreendemos a possibilidade de Golpes de Estado quando a suspensão de regras torna-se suficientemente vantajosa. O bom e velho homo homini lupus hobbesiano manda lembranças.

Desta forma, ponderando custos e benefícios, lá se vai o agente auto-interessado se movendo nas instituições, partidos e sistema político. Sem dúvida esta explicação sobre a política é poderosa, dotada de grandes possibilidades e nos auxilia sobremaneira a entendermos a rotina dos agentes políticos. Em relativa precariedade de equilíbrio, assim o sistema se move de forma mais ou menos lenta. Em momentos de convulsão, igualmente podemos assim interpretar, o sistema se movimenta de forma rápida e desconcertante. Neste momento o governo federal abraça tentativas de barganhar com grupos e indivíduos na tentativa de arrefecer um processo de impeachment. De outro lado, os grupos pró-impeachment, igualmente barganham de forma ostensiva para conseguir seu intento: ascender ao poder sem utilizar do mecanismo do voto que deve ocorrer em eleições periódicas. Na lógica amoral da escolha racional e instrumental, não há evidentemente qualquer espaço para a moralidade embora ambos os lados se apresentem ungidos desta velha senhora. Neste sentido, em termos gélidos e objetivos, vislumbrar qualquer superioridade moral tem algo de demagógico.

Esta maneira de compreender os fenômenos políticos na modernidade avançada chamarei de “cognição fria”. A cognição fria, termo que apreendi na leitura do instigante “Cultures of optmism” de Oliver Bennett lançado ano passado pela Palgrave Macmillan, é esta forma de interpretar o mundo circundante desprovido dos elementos que tornam a cognição “quente”: afetos, emoções e sentimentos. O auto-centramento da razão na escolha racional enxerga esses elementos expressivos da alma humana como desnecessários na construção interpretativa e, por vezes, torna-se um óbice importante para a consecução da adequação de meios a fins. A grande questão é que autores como Jon Elster já apontam há muito tempo a limitação evidente deste tipo de modelo explicativo. A redução de complexidade de se perceber o agente como dotado de pura racionalidade instrumental não mantém qualquer relação com os seres humanos reais. No mundo da teoria social pós-Freud no máximo teríamos aqui algo de wishfull thinking.

De outro lado, visando complementar as cognições frias, pouco capazes de dar conta da totalidade do cenário, temos o dever de observar as cognições quentes. A relação entre governantes e governados, a adesão a projetos, o engajamento que produz as ações coletivas se encontram em ponto de fervura na atual conjuntura no Brasil. O ódio, por exemplo, tem se mostrado o grande obstáculo que inviabiliza a possibilidade da construção de um novo consenso. Lendo, ouvindo e participando das diversas expressões da esfera pública, o que perpassa mídia, manifestações, redes sociais e todo tipo de encontro face a face concreto, é inegável a torrente de cognições quentes. A expressão comunicativa nos dias que correm é carregada de afeto. Ofensas de toda ordem, a desqualificação do argumento a priori, agressões, violência simbólica e ressentimento. Todos estes elementos, nos arredores do sistema político e no seu núcleo, se apresentam como desafiadores. No entanto, há ódios “novinhos em folha” e “ódios de média duração”.

Os “ódios de média duração” podem ser encontrados alhures pelo observador minimamente sensível que acompanhou os debates na Câmara dos Deputados e agora os vê transcorrendo no Senado Federal. Sendo o impeachment trauma estruturante do sistema político brasileiro, aqui falo especificamente do momento Collor e posteriormente das tentativas e pedidos de impedimento nos governos FHC e Lula, os grupos apresentam memórias dos processos em seus discursos em prol da legitimação de posturas e reivindicações do presente. Por um segundo a dinâmica discursiva, não desconsiderando o espaço formal e solene, lembra muitíssimo casais desgastados após anos de convívio e mágoas. Creio que quem não foi protagonista deste tipo de relação afetiva, em dado momento pode ter presenciado discussões homéricas sobre “aquele dia em que você me deixou esperando no restaurante” e outras faturas do passado que aparentemente não foram jamais quitadas... Mesmo que “aquele dia” tenha sido há meses, anos ou décadas atrás.

Por essa razão, pela persistência dos afetos no tempo e seu condicionamento na agência humana, talvez “politólogos” em geral devam considerar esta faceta menos tangível que o judiciário, as regras do jogo ou a “cognição fria” pura e simples. Justamente em países como o nosso onde não há “julgamentos da história” e tampouco tentativas de construção de caminhos coletivos ou individuais que sejam conciliatórios, vide os frustrantes resultados práticos da(s) Comissão(ões) da Verdade, estamos a patinar, a perder riqueza analítica e dotados de relativa inépcia na formulação de novos projetos que contem com a adesão de amplos setores da sociedade para esta segunda década do século XXI.

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