sexta-feira, 22 de junho de 2018

O pesadelo americano


O pesadelo americano

Por Paulo Sérgio Ribeiro

A gestão de Donald Trump revela iniquidades próprias àquilo que, durante sua corrida presidencial à Casa Branca, confirmou-se como a reedição do velho slogan “America first”. Não é demais lembrar que Trump sofre aguda rejeição de segmentos influentes na opinião pública dos EUA e de que sua liderança no Partido Republicano já foi posta em questão pelo incômodo provocado por sua, digamos, completa falta de solenidade no exercício do poder. Tais ponderações, se corretas, afasta-nos de qualquer viés antiamericano, pois não se trata aqui de desperdiçar o tempo do leitor com estereótipos sobre a sociedade estadunidense. Esta é demasiado complexa para nos deixarmos levar por um visão unilateral de suas contradições, sobretudo quando elas evidenciam desafios comuns na modernidade tardia.

De todos os atos da gestão Trump, um em particular causou perplexidade capaz de pôr em suspenso quaisquer relativizações: a separação forçada de pais e filhos. Tal expediente vinha sendo aplicado na fronteira entre EUA e México de acordo com a política de “tolerância zero” de Trump para famílias em situação ilegal de imigração. Todavia, a repercussão negativa no exterior e, não menos, no establishment estadunidense, forçaram o anúncio da revisão do procedimento: as separações familiares serão interrompidas e conceder-se-á atendimento preferencial a pais acompanhados dos seus filhos no trâmite da imigração. De todo modo, a imagem de crianças chorando dentro de verdadeiras gaiolas humanas impõe indagar àqueles que postulam uma esfera pública “global” que medeie a relação entre os Estados se há mesmo alguma eficácia social na ideia de “humanidade”.

Não cabe subestimar a necessidade de controle do tráfego de pessoas em regiões de fronteiras, mas de avaliar em que medida a política de “tolerância zero” de Trump destinada a imigrantes ilegais tem sua pretensão de legitimidade vinculada a uma cultura normativa dos EUA. Para tal digressão, acolho doravante a abordagem de Jessé Souza sobre a modernidade à americana [1]. A ausência de um centro de poder político a reger os primeiros passos da colonização britânica (como nas possessões ibéricas no hemisfério sul) e, sobretudo, o predomínio dentre os seus pioneiros de uma ideia de igualdade religiosamente motivada propiciaram a excepcionalidade da formação social americana. Cotejando fontes clássicas (notadamente Tocqueville) e contemporâneas (o trabalho coletivo coordenado por Robert Bellah acerca da religião civil no contexto estadunidense), Jessé pontua que o “mito original americano” radica em um imaginário bíblico de sabor calvinista que possibilitou uma forte reflexividade institucional àquele experimento colonial.

A “Nova Inglaterra” não seria uma réplica das tradições do Velho Mundo, senão uma tentativa deliberada de povoar terras desconhecidas segundo um “contrato externo com Deus” cuja adesão pressupunha uma responsabilização individual advinda da conversão íntima às suas “cláusulas”, combinando, assim, uma vida civil cujas interdições morais não suprimiam a lógica específica da produção de conhecimento orientada por interesses privados e liberdades públicas não desvinculadas da religião como um pano de fundo do contrato social. Sendo assim, a autoconcepção dos estadunidenses estaria comprometida com a atualização de um imaginário em torno do “tema edênico” como racionalização exitosa de uma experiência social dotada de elementos originais em face da tradição civilizatória europeia.

Na apropriação do mito de origem cristão operada pelos founder fathers acabou prevalecendo a imagem do Novo Mundo como uma terra inóspita e hostil ou, simplesmente, uma “selva”. Domá-la exigiria não apenas uma eficiente adequação ao meio físico, mas, sobretudo, moldar eticamente um mundo onde tudo estava por fazer a partir de um redirecionamento da mensagem religiosa para a ação individual de modo a submetê-la ao controle dos desejos e das paixões – a dimensão intrasubjetiva da “selva”. Tal mensagem religiosa, partilhada por homens livres que viam a si mesmos como um povo eleito para recriar sua coexistência, configura, no caso americano, quase que um tipo puro da noção de ascese intramundana balizada pelo racionalismo protestante.

Essa cultura normativa, lastreada originariamente na democracia direta em experiências de associativismo local, enquanto uma “criação consciente e racional dos homens de acordo com princípios racionais”[2] é movimentada por códigos morais concorrentes que, na contemporaneidade, tendem a sobrepor o individualismo utilitário aos estímulos societários típicos da sua antiga tradição cívica. Esse conflito na cultura estadunidense assume contornos problemáticos no tocante à manutenção de um contrato social que tem sua amálgama na noção já mencionada de “povo escolhido”. Ressalta Jessé que o dinamismo daquela cultura logrado por sua capacidade associativista convive com a “possibilidade de interpretação exclusivista do contrato, especialmente em termos de pureza étnica”[3].

Crianças de origem latina apartadas de maneira infame dos seus pais confirmam em toda a sua crueza o potencial antissocial da exclusividade que Trump busca imprimir àquele contrato social como fonte de legitimação de um governo que parece não se inspirar no que há de melhor no “espírito americano”.




[1] Cf. SOUZA, Jessé. O caso dos Estados Unidos. In: ______. A modernização seletiva. Uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p.127-141.
[2] Op. cit., p.137.
[3] Ibid. p.140.

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