Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Uma professora e pesquisadora de
uma das mais conceituadas universidades públicas do Brasil, Universidade de
Brasília (UnB), vê-se obrigada a exilar-se em seu próprio país em face das
ameaças de morte por seu posicionamento sobre a questão do aborto. Trata-se de Débora Diniz, antropóloga vinculada ao Instituto de Bioética (Anis)
e à Faculdade de Direito da UnB, além de redes profissionais de saúde e
associações de defesa do Direito das Mulheres em âmbito internacional. As agressões
que vem sofrendo são operadas tanto na Internet, o que motivou um boletim de
ocorrência na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) em junho,
quanto diretamente, ao ser abordada por um grupo de extrema-direita, todos
homens ao que consta, na saída de um evento em que ministrara palestra em 18 de julho.
Já tivemos oportunidade de
discutir aqui no blog outros casos de violação da
autonomia universitária e de censura ao pensamento científico. Não obstante, esse
episódio é emblemático das imbricações do conservadorismo moral, enquanto
corrente de opinião permanente entre nós, e do acossamento político de todo aquele
que exerça a dissidência no plano institucional, considerando que a
descriminalização do aborto, defendida por Diniz, é um divisor de águas sob um
governo ilegítimo cujos próceres flertam com os pânicos morais para galvanizar
o regime de força que o sustenta.
Débora Diniz não abdicou do seu
trabalho intelectual e tampouco de suas franquias como cidadã ao mudar-se de Brasília sem informar a cidade de destino, mas, tão somente, lançou mão de uma medida urgente em face da
regressão dos costumes na vida nacional que, no limite, inviabiliza a própria
divulgação científica e as mediações que esta pode oferecer à construção de
novos consensos no que toca às lutas por autonomia e reconhecimento das
mulheres. Sua defesa da descriminalização do aborto é uma cunha no debate nacional,
na medida em que põe em cheque as próprias bases psicossociais de escolhas de
foro íntimo que são feitas (por mulheres, exclusivamente) tais como se adquirissem
pertinência para a autoimagem da sociedade nacional.
Ora, a defesa da descriminalização do
aborto não colide com o direito à diferença dos membros de uma cultura
hegemônica como o cristianismo. Desenhemos: a quase totalidade das mulheres que interrompem
uma gravidez integram essa cultura hegemônica e, por conseguinte, não veem essa
escolha como redutível à sua confissão religiosa, pois o que está em jogo é a
própria definição de suas biografias em face das múltiplas filiações valorativas
que as constituem como indivíduos.
Assim sendo, importa refletir o
aborto como uma questão de justiça, considerando que é injustificável uma
mulher não ser reconhecida como membro integral em um Estado de direito por ter
recorrido ao aborto sem, antes, indagarmos se esse não reconhecimento é devido a padrões institucionais de valoração das práticas sociais que não foram construídos em condições de igualdade e que, portanto, subordinam indivíduos e grupos por suas características específicas ou pelas
características que lhe são atribuídas. Bastaria aqui mensurar a elevada vulnerabilidade social das mulheres pobres que praticam o aborto.
O reconhecimento de um atributo
do gênero feminino (não ser um mero apêndice de seu corpo na reprodução
biológica) vai ao encontro da reivindicação por igualdade de status
das mulheres. A interrupção desse debate, por sua vez, conduz à reprodução do
valor diferencial das mulheres quando o que está em jogo é a maior redução
possível do risco de morte e de sequelas físicas na prática do aborto.
Tematizar o aborto no terreno do universalismo
moral (e não do moralismo) pode indicar com maior clareza condições
intersubjetivas que assegurem a preservação da estima social como não
dependentes da posição relativa da mulher frente ao status de cidadania. Do contrário, persistirá uma situação de
injustiça social, pois apenas uma minoria de mulheres terá a prerrogativa de
igualdade equitativa quanto aos melhores meios de conduzir soberanamente a sua
vida reprodutiva. Noutros termos, uma meta pública se impõe: a ampliação da cobertura de um direito social – a saúde – fundamentada no mesmo valor moral dos membros do gênero feminino quanto às decisões que afetam a sua sexualidade e o seu bem-estar.
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