sábado, 15 de dezembro de 2018

Restaurante popular: notas para um debate


Restaurante popular: notas para um debate 

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Eis um tema que requer uma crítica propositiva no campo progressista: a política municipal de segurança alimentar e nutricional. Delinear tal crítica não é tarefa simples, sobretudo pelo senso de urgência que a regressão dos indicadores sociais suscita no Brasil pós-golpe. Em Campos dos Goytacazes-RJ, o retorno dessa pauta diz respeito ao serviço, suspenso desde 2017, do "Restaurante Popular". No afã de estabelecer sua marca distintiva, a atual gestão anuncia a mudança de nome do restaurante em seu processo de reativação: "Centro de Segurança Alimentar e Nutricional" (CESAN). Para Sana Gimenes, Secretária Municipal de Desenvolvimento Humano e Social, trata-se não somente de rebatizá-lo, mas de modificar o "modelo" dessa política social[1]

Para esboçar o que venha a ser tal “modelo” no cenário local, temos de abordar preliminarmente o que é segurança alimentar e nutricional. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)[2], órgão de assessoramento imediato da Presidência da República, expõe a razão de ser dessa política: o direito universal ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente que não comprometa o acesso a outras necessidades essenciais. Sua prioridade é a oferta pública de práticas alimentares benéficas à saúde que tenham por fundamento o respeito à diversidade cultural e que sejam ambiental e economicamente sustentáveis.

Trata-se, pois, de aplicar um conjunto de ações intersetoriais na gestão da cadeia produtiva de alimentos que não relegue ao segundo plano questões como, por exemplo, a fiscalização do uso de agrotóxicos nas lavouras comerciais – quando resulte em ganhos de produtividade em descompasso com a saúde dos(as) trabalhadores(as) –, bem como a redução da desigualdade de acesso à terra urbana e rural e ao território, o fomento à agricultura familiar e o fortalecimento da produção orgânica e agroecológica de alimentos, a regulação dos meios (um palavrão para os “liberais morenos” que temos...), notadamente a publicidade infantil, no que toca à redução do estímulo ao consumo de alimentos prejudiciais à saúde ou que nos distanciem de hábitos alimentares tradicionais que constituam um bem coletivo.

Tomando por referência o conceito adotado pelo CONSEA, discutir segurança alimentar e nutricional implica avaliar o quão próximo ou distante estamos da condição de soberania alimentar: o direito que assiste aos povos de definir com autonomia as políticas sobre o que produzir, para que produzir e em que condições produzir. Topamos aqui com um fato e um dado: a crescente incapacidade do Estado que conduzir sua política social sob a captura do capital financeiro. O diagnóstico aqui quase sempre é destinado aos Estados nacionais, porém, ensina a doutrina administrativista, municípios também são uma expressão do poder estatal enquanto entes dotados de autonomia política desde à Constituição de 1988.

Fazer-se “soberano”, no sentido bem compreendido do termo para uma prefeitura municipal, leva-nos a avaliar possibilidades e limites da participação popular nas instâncias de decisão competentes para a política de segurança alimentar e nutricional que se desenha no momento. Desse modo, creio que tão importante quanto dimensionar recursos e restrições para a sua execução orçamentária, é diagnosticar problemas de concepção dessa política, pois traduzi-la é em si mesmo um desafio para o campo progressista que queira construir mediações para a cidadania ativa dos futuros usuários do CESAN.

Como a Prefeitura propõe a retomada do serviço?

Projeta-se um acréscimo de 1000 refeições em comparação com o que se ofertava na primeira versão do Restaurante Popular (em torno de 2500 refeições) e a inclusão do jantar (antes se restringia ao café da manhã e ao almoço). É previsto gratuidade para pessoas em situação de pobreza, extrema pobreza e em situação de rua, conforme dados do Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) e, também, preços reduzidos à metade para pessoas inscritas no CadÚnico que não se enquadrem em nenhuma das situações mencionadas acima. Demais pessoas pagarão preços “normais”. Os preços da refeições e a localização do CESAN ainda não foram definidos. Seus dias de funcionamento serão de segunda a sexta-feira.

A prestação do serviço será descentralizada: de um lado, contração, mediante licitação, de empresa especializada para o preparo das refeições e manutenção dos equipamentos e maquinário; de outro, uma parceria com os permissionários do Mercado Municipal que doarão alimentos inadequados para comercialização, mas próprios para o consumo humano, destinados a um “Banco de Alimentos”, que responderá parcialmente pelo abastecimento. Para este fim, também é prevista a participação da agricultura familiar e das cooperativas em pelo menos 30% dos alimentos ofertados; outra articulação com o setor privado – a Liga Gastronômica de Campos – é proposta com o objetivo de assegurar o funcionamento do CESAN nos fins de semana. Cogita-se ainda oferecer aos sábados refeições no CESAN aos assistidos pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (CentroPop).

Feita essa rápida descrição do rol de proposições da Prefeitura, chamo atenção para uma declaração da secretária municipal de Desenvolvimento Humano e Social que sinaliza o tamanho da expectativa em torno da retomada do "Restaurante Popular" (ainda que com outro nome) para um governo cuja popularidade está em xeque:

A gente trabalha com a perspectiva imediata de combater a fome, mas queremos construir uma política mais ampla, de forma que a segurança alimentar e nutricional seja uma das principais bandeiras de nossa gestão — disse Sana [Gimenes][3].

Nada contra (nem a favor) um agrupamento político não medir esforços para manter e/ou ampliar o seu espaço de poder. Lutar para demarcá-lo não é crime nem pecado, sobretudo se a efetividade de um serviço público está em jogo. Mas cabe indagar se aquele espaço é ou não um espaço democrático. Este caracteriza-se pela abertura que a sociedade civil organizada tem para exercer o dissenso em processos de decisão coletiva. Se o CESAN é um divisor de águas como se pretende, é fortuito que o debate público seja ampliado para desfazer os nós em questões pendentes[4]. Contrapondo a fala da secretária com as proposições já descritas, não está claro onde começa a universalização e termina a focalização dessa política de segurança alimentar e nutricional.

Universalização e focalização são orientações normativas e não conceitos estanques, podendo ser conjugadas de diversas maneiras em casos concretos. Ao que tudo indica, há uma prevalência da focalização no estilo de política social que se quer adotar, ainda que o discurso oficial pareça dizer o contrário. Se isto é razoável ou não, dependerá do arranjo que se pactue entre a administração municipal e a sociedade civil, considerando que o município (Estado) pode ser um transferidor de renda para cima ou para baixo segundo a constelação de interesses que guie seus atos administrativos. Considerando a amplitude do conceito de segurança alimentar e nutricional, o experimento de proteção social anunciado em Campos dos Goytacazes pode ser também uma política redistributiva para a cidade. Para tanto, há de se esclarecer qual concepção de justiça social está posta na mesa.

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