Restaurante popular: notas
para um debate
Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Eis um tema que requer uma
crítica propositiva no campo progressista: a política municipal de segurança
alimentar e nutricional. Delinear tal crítica não é tarefa simples, sobretudo
pelo senso de urgência que a regressão dos indicadores sociais suscita no Brasil
pós-golpe. Em Campos dos Goytacazes-RJ, o retorno dessa pauta diz respeito ao
serviço, suspenso desde 2017, do "Restaurante Popular". No afã de
estabelecer sua marca distintiva, a atual gestão anuncia a mudança de nome do
restaurante em seu processo de reativação: "Centro de Segurança Alimentar
e Nutricional" (CESAN). Para Sana Gimenes, Secretária Municipal de
Desenvolvimento Humano e Social, trata-se não somente de rebatizá-lo, mas de
modificar o "modelo" dessa política social[1].
Para esboçar o que venha a ser
tal “modelo” no cenário local, temos de abordar preliminarmente o que é
segurança alimentar e nutricional. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA)[2], órgão de assessoramento imediato da
Presidência da República, expõe a razão de ser dessa política: o direito
universal ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em
quantidade suficiente que não comprometa o acesso a outras necessidades
essenciais. Sua prioridade é a oferta pública de práticas alimentares benéficas
à saúde que tenham por fundamento o respeito à diversidade cultural e que sejam
ambiental e economicamente sustentáveis.
Trata-se, pois, de aplicar um
conjunto de ações intersetoriais na gestão da cadeia produtiva de
alimentos que não relegue ao segundo plano questões como, por exemplo, a
fiscalização do uso de agrotóxicos nas lavouras comerciais – quando resulte em
ganhos de produtividade em descompasso com a saúde dos(as) trabalhadores(as) –,
bem como a redução da desigualdade de acesso à terra urbana e rural e ao
território, o fomento à agricultura familiar e o fortalecimento da produção
orgânica e agroecológica de alimentos, a regulação dos meios (um palavrão para
os “liberais morenos” que temos...), notadamente a publicidade infantil, no que
toca à redução do estímulo ao consumo de alimentos prejudiciais à saúde ou que
nos distanciem de hábitos alimentares tradicionais que constituam um bem
coletivo.
Tomando por referência o conceito
adotado pelo CONSEA, discutir segurança alimentar e nutricional implica avaliar
o quão próximo ou distante estamos da condição de soberania alimentar: o
direito que assiste aos povos de definir com autonomia as políticas sobre o que
produzir, para que produzir e em que condições produzir. Topamos aqui com um
fato e um dado: a crescente incapacidade do Estado que conduzir sua política
social sob a captura do capital financeiro. O diagnóstico aqui quase sempre é
destinado aos Estados nacionais, porém, ensina a doutrina administrativista,
municípios também são uma expressão do poder estatal enquanto entes dotados de
autonomia política desde à Constituição de 1988.
Fazer-se “soberano”, no sentido
bem compreendido do termo para uma prefeitura municipal, leva-nos a avaliar
possibilidades e limites da participação popular nas instâncias de decisão
competentes para a política de segurança alimentar e nutricional que se desenha
no momento. Desse modo, creio que tão importante quanto dimensionar recursos e
restrições para a sua execução orçamentária, é diagnosticar problemas de
concepção dessa política, pois traduzi-la é em si mesmo um desafio para o campo
progressista que queira construir mediações para a cidadania ativa dos futuros
usuários do CESAN.
Como a Prefeitura propõe a
retomada do serviço?
Projeta-se um acréscimo de 1000
refeições em comparação com o que se ofertava na primeira versão do Restaurante
Popular (em torno de 2500 refeições) e a inclusão do jantar (antes se
restringia ao café da manhã e ao almoço). É previsto gratuidade para pessoas em
situação de pobreza, extrema pobreza e em situação de rua, conforme dados do
Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) e, também, preços reduzidos à
metade para pessoas inscritas no CadÚnico que não se enquadrem em nenhuma das
situações mencionadas acima. Demais pessoas pagarão preços “normais”. Os preços
da refeições e a localização do CESAN ainda não foram definidos. Seus dias de
funcionamento serão de segunda a sexta-feira.
A prestação do serviço será
descentralizada: de um lado, contração, mediante licitação, de empresa
especializada para o preparo das refeições e manutenção dos equipamentos e
maquinário; de outro, uma parceria com os permissionários do Mercado Municipal
que doarão alimentos inadequados para comercialização, mas próprios para o
consumo humano, destinados a um “Banco de Alimentos”, que responderá
parcialmente pelo abastecimento. Para este fim, também é prevista a
participação da agricultura familiar e das cooperativas em pelo menos 30% dos
alimentos ofertados; outra articulação com o setor privado – a Liga
Gastronômica de Campos – é proposta com o objetivo de assegurar o funcionamento
do CESAN nos fins de semana. Cogita-se ainda oferecer aos sábados refeições no
CESAN aos assistidos pelo Centro de Referência Especializado para População em
Situação de Rua (CentroPop).
Feita essa rápida descrição do
rol de proposições da Prefeitura, chamo atenção para uma declaração da
secretária municipal de Desenvolvimento Humano e Social que sinaliza o tamanho
da expectativa em torno da retomada do "Restaurante Popular" (ainda
que com outro nome) para um governo cuja popularidade está em xeque:
A gente trabalha com a perspectiva
imediata de combater a fome, mas queremos construir uma política mais ampla, de
forma que a segurança alimentar e nutricional seja uma das principais bandeiras
de nossa gestão — disse Sana [Gimenes][3].
Nada contra (nem a favor) um
agrupamento político não medir esforços para manter e/ou ampliar o seu espaço
de poder. Lutar para demarcá-lo não é crime nem pecado, sobretudo se a
efetividade de um serviço público está em jogo. Mas cabe indagar se aquele
espaço é ou não um espaço democrático. Este caracteriza-se pela abertura que a
sociedade civil organizada tem para exercer o dissenso em processos de decisão
coletiva. Se o CESAN é um divisor de águas como se pretende, é fortuito que o
debate público seja ampliado para desfazer os nós em questões pendentes[4].
Contrapondo a fala da secretária com as proposições já descritas, não está
claro onde começa a universalização e termina a focalização dessa política de
segurança alimentar e nutricional.
Universalização e focalização são orientações
normativas e não conceitos estanques, podendo ser conjugadas de diversas
maneiras em casos concretos. Ao que tudo indica, há uma prevalência da
focalização no estilo de política social que se quer adotar, ainda que o
discurso oficial pareça dizer o contrário. Se isto é razoável ou não, dependerá
do arranjo que se pactue entre a administração municipal e a sociedade civil,
considerando que o município (Estado) pode ser um transferidor de renda para
cima ou para baixo segundo a constelação de interesses que guie seus atos administrativos. Considerando a amplitude do conceito de segurança alimentar
e nutricional, o experimento de proteção social anunciado em Campos dos Goytacazes
pode ser também uma política redistributiva para a cidade. Para tanto, há de se
esclarecer qual concepção de justiça social está posta na
mesa.
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