terça-feira, 15 de setembro de 2020

Minas (in)consciente

Fonte: Estado de Minas (aqui).

Minas (in)consciente


No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

(Fragmento do Poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade)

 

Paulo Sérgio Ribeiro

 

Vivo em Minas Gerais. Mais precisamente em Viçosa, município situado na zona da mata mineira. Há mais de um ano, subia suas montanhas míticas, uma transição que, em algum momento, merecerá um olhar mais detido. Eis que, no meio do caminho tinha uma pandemia, tinha uma pandemia no meio do caminho, pedindo perdão desde já pela paráfrase mais que pobre dos versos imortais do poeta Carlos Drummond de Andrade, este sim um rochedo. 

 

Dada à desarticulação entre Governo Federal, governos estaduais e municipais quanto à execução de uma estratégia de prevenção e controle da pandemia de Covid-19, a gente vai se defendendo como pode diante de um sem número de realidades a se entrecruzarem em um cenário marcado por uma regressão histórica sem precedentes.

 

Até aí, nada de novo no horizonte, se levarmos a sério as iniquidades que a agenda de reformas vigente desde o governo ilegítimo de Temer até o (des)governo de Bolsonaro nos impõe. Mas há sempre uma variável a mais para complicar a equação, quando mal conseguíamos garantir o empate sem gols do cotidiano que se arrasta entre a tela do computador e... a tela do computador.

 

Isso, por óbvio, para quem tem o privilégio de morrer só de tédio em meio a uma mortandade que seria evitável, já que ela evidencia vulnerabilidades sociais – agravadas pela referida agenda - daqueles que engrossam o exército de reserva de uma economia em acelerada desindustrialização, bem como das categorias profissionais que prestam serviços essenciais, notadamente os chamados “linha de frente” nos serviços públicos de saúde, que padecem com a reposição irregular de insumos e equipamentos e que se veem destituídos de qualquer indenização específica para trabalhar em condições de risco extremo.

 

Doravante, a ausência deliberada no Poder Executivo Federal de um plano de contingência que indenizasse trabalhadores(as) urbanos(as) e rurais com focalização mais abrangente do que a empregada no incipiente auxílio-emergencial, bem como pequenos(as) e médios(as) empresários(as), enquanto um lockdown em escala nacional se impusesse pela necessidade de proteger o maior número possível de vidas, leva a toda sorte de mistificação.

 

Ausente um plano nacional, abre-se espaço para uma maior autonomia dos poderes locais em resposta a interesses privados cuja soma, não necessariamente, equivale ao interesse público em âmbito regional. Este é o caso do “Minas Consciente”[1], um plano de reabertura da economia que, à primeira vista, oferece em seu slogan um prognóstico alentador àqueles(as) que estão submetidos a tal medida: “retomando a economia do jeito certo”.

 

Desescalar, isto é, flexibilizar gradualmente as restrições às liberdades individuais em contexto pós-pandemia seria, em si, uma ação governamental não só aceitável como previsível quando provada a eficácia de limitações impostas à movimentação da população para o restabelecimento da segurança sanitária. Noutros termos, em um contexto em que a adesão coletiva ao lockdown tivesse sido para valer.

 

Assim sendo, uma pergunta se torna imperiosa: tivemos realmente um isolamento social amplo e irrestrito no Brasil? A dita “quarentena” que se distribui de modo fragmentado em nosso território mostrou-se suficiente para retroceder o número de contaminados e de vítimas fatais pela Covid-19? Aliás, a última pergunta deveria ser precedida de outra: em algum momento, dispomos de um mínimo de confiabilidade nas estatísticas oficiais acerca do contágio/óbitos sem testagem em massa da população? 



Fonte: Ministério da Saúde / El País (aqui).

Se longe estamos de obter respostas conclusivas àquelas indagações diante da flagrante subnotificação dos casos da Covid-19[2], tornam-se discutíveis medidas de flexibilização como as aplicadas em Minas Gerais. Até aqui, percorremos uma trilha consensual acerca dos impasses para a saúde coletiva dos(as) brasileiros(as) em sua relação com o mundo. O dissenso surge quando entra em jogo a definição de causas e efeitos de uma crise que não é apenas sanitária em se tratando da resposta que lhe é dada na formulação de uma política pública e, aqui, podemos retornar ao plano Minas Consciente a fim de avaliar seus pressupostos.

 

Tais pressupostos estão condensados, a nosso ver, na seção “Cenário econômico”, do referido plano. Nela, lança-se mão de um conjunto de dados de alcance nacional relativos à crise econômica, em geral, e a debilidades da economia mineira, em particular, tomando por recorte o impacto que a pandemia da Covid-19 representa nesse cenário regional. Dados não falam por si sós, pois carecem de um trabalho de interpretação que tem de confrontar criticamente uma dada concepção de mundo. Noutros termos, interpretar dados é, invariavelmente, uma análise qualitativa. Se assim o é, tais concepções de mundo são um fator interveniente na análise e, tão logo, demandam um tratamento teórico a fim de indicar o limite do estudo que se deseja.

 

Ora, ao mesmo tempo em que se aponta a obviedade de que a pandemia paralisa parcialmente as atividades econômicas em razão das medidas de isolamento social, estas são tratadas com dubiedade: são necessárias, porém devem ser mitigadas para o retorno à “normalidade” dos negócios. Recuperar o faturamento das empresas e os postos de trabalho dependeria, assim, do monitoramento sistemático daquele retorno de acordo com a setorização da economia estadual em “ondas”, isto é, operando diferentes graus de flexibilização das restrições impostas.

 

Não duvido da seriedade nem da competência da equipe técnica responsável pelo plano Minas Consciente. Duvido, somente, daquilo que não está dito, a saber, a orientação valorativa que preside seus atos administrativos: a suposição de que o regime de trocas de uma economia capitalista voltar ao seu “leito” equacionaria problemas sociais que a pandemia apenas desvelou em seus contornos mais dramáticos.

 

Pensemos: a que “normalidade” pretendem os executores do Minas Consciente fazer o caminho de volta? A do laissez-faire na veia para um corpo social respirando com a ajuda de aparelhos com o que ainda resta do Estado social esboçado no pacto constituinte de 1988? Poderia aqui discorrer sobre os limites estruturais do nosso capitalismo dependente que Francisco Oliveira tão bem decifrou em seu “O ornitorrinco”[3], mas opto por concluir este texto com o que venha a ser, talvez, o substrato da operação ideológica que perpetua aqueles limites.

 

Diante de uma maioria condenada a sobreviver e, pior, a transpor subjetivamente o esgotamento dos seus corpos pela necessidade de sujeitar-se a qualquer trabalho por qualquer valor – a renda per capita do brasileiro não ultrapassa 500 reais[4] – a súbita elevação da renda de parte desses(as) trabalhadores(as) com o auxílio-emergencial não desmente, senão redobra o hiper-realismo que a precarização da vida sempre lhes exigiu, imprimindo opacidade a qualquer ideia de futuro para além da desigualdade brutalmente instituída. E voilá: o Estado “vigia noturno” que liberais conservadores como Paulo Guedes et caterva tanto sonharam pode se tornar a (única) realidade a se conceber pela mão visível de governantes de extrema-direita para os quais sempre se fizeram acólitos de primeira hora.



[1] GOVERNO DE MINAS GERAIS. Minas Consciente: retomando a economia do jeito certo. Disponível (aqui). 

[2] Jornal A Tarde. IBGE revela que só 6% da população fez o teste para a Covid-19. Edição de 20 agosto de 2020. Disponível (aqui).

[3] OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

[4] Jornal Correio do Povo. Metade dos brasileiros sobrevive com menos de R$ 15 por dia, aponta IBGE. Edição de 15 de setembro de 2020. Disponível (aqui).

Nenhum comentário:

Postar um comentário