Vanguardas sul-americanas
A coragem é a virtude primária e fundante da ação política. Sem ela, não há atividade, não há luta, não há grandeza e não se conquista a glória. A coragem é uma virtude que requer o exercício permanente de sua pedagogia. Caso contrário, ela fenece e morre em um corpo político – Estado, partido ou movimento. (Aldo Fonazieri)
Paulo Sérgio Ribeiro
Vanguarda, palavra que acolhemos em nosso idioma com significado próximo de sua expressão original em francês: aquele que guarda posição avançada (avant-garde) em relação aos acontecimentos, demonstrando originalidade ou pioneirismo na maneira como os traduz e/ou neles intervém. Em sua política interna, Chile e Argentina, nossos vizinhos sul-americanos, se fazem vanguarda ao experimentar processos de mudança social com um potencial transformador, já que as comportas do poder instituído tiveram de abrir-se para dar vazão às energias utópicas que os movem.
Em abril de 2021, 155 constituintes serão eleitos, sendo metade homens e metade mulheres, para reescrever a Carta Magna do Chile, processo que atingiu seu ponto de inflexão com o plebiscito de outubro passado, quando chilenos(as) retomaram sua soberania para dizer, com quase 80% do total de votos, um sonoro “não” à Constituição promulgada pela ditatura de Augusto Pinochet no começo dos anos 1980. Uma vez alcançada a primeira versão do texto constitucional, uma nova consulta popular far-se-á necessária em 2022 para sua aprovação final.
Na Argentina, por sua vez, o Senado aprovou no último 30 de dezembro um projeto que reconhece a legalidade e o acesso ao aborto para mulheres até a 14ª semana de gestação. A despenalização da interrupção voluntária da gravidez foi uma demanda vocalizada por coletivos feministas de modo a ocupar por meses o debate público argentino, a ponto de reverter a corrente de opinião majoritária do seu país, não deixando, pois, alternativa ao Senado senão rever seu veto de dois anos atrás a semelhante projeto de lei.
Em ambos os cenários, um horizonte se avizinha: a equidade de gênero na sociedade política em conjunção com valores políticos recriados pela sociedade civil, na medida em que seus grupos minoritários, até então subalternizados, mostram-se capazes de encontrar uma nova direção na História ao mobilizar recursos próprios para dirigir a si mesmos.
Na Convenção Constituinte chilena, é bom frisar, há variáveis difíceis de prever ou controlar pelos seus atores políticos, pois, como salienta o sociólogo chileno Esteban Silva, ainda é uma questão em aberto a representatividade de associações e movimentos que emergem de setores sociais à margem da política institucional, bem como dos seus povos originários, haja vista a clivagem manifesta nos votos da capital, Santiago, que opuseram o “não” de suas regiões afluentes ao “sim” de suas periferias à reforma constitucional:
Volviendo à Argentina, as franquias conquistadas por suas cidadãs no âmbito dos direitos reprodutivos ganham ares de efeito-demonstração para povos sul e mesoamericanos bastante díspares no que respeita às lutas contra as opressões que encontram nas relações entre os sexos seu lócus concreto. Enquanto Argentina e Chile caminham a passos largos para devolver às mulheres os corpos que elas habitam, Brasil, Venezuela, Paraguai e Guatemala mantêm restrições legais que as empurram para a clandestinidade dos abortos e, logo, para a subcidadania ratificada pelas chances desiguais de sobreviver a eles.
Ora, alguém indagaria, por que voltar nossa atenção para a conjuntura chilena e a argentina enquanto o Brasil vive o seu pandemônio na pandemia? As respostas seriam muitas e cada uma delas guardaria em si o seu grão de complexidade, mas bem poderia resumir como a oportunidade de, pelas lentes da história comparada, avaliar como realidades nacionais não tão distantes assim do estado de coisas em que imergimos no Brasil podem servir de parâmetro para reencontrarmos a mobilização permanente da sociedade civil, um aggionarmento que não se confunde com o mero reagir às instituições, mas que toma a luta institucional como meio e não um fim em si mesmo, potencializando a revolta popular em torno de diretrizes consequentes para um novo pacto social.
Chile e Argentina estão dirigindo o seu futuro ao rever o seu passado autoritário. No Brasil, até quando a transição infinita da ditadura civil-militar será um saque irremissível ao nosso futuro?
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