domingo, 21 de fevereiro de 2021

Débora volta às aulas*

 

Na noite da última quinta-feira, o site do Jornal Folha da Manhã noticiou a retomada das aulas presenciais em Campos dos Goytacazes. O secretário de Educação, Ciência e Tecnologia, Marcelo Feres, anunciou a retomada das aulas, em regime híbrido, “de 30% dos alunos em, no mínimo, 10% das escolas de educação infantil das redes municipal e privada a partir de 8 de março”. A proposta sugere ainda o retorno “presencial de 50% dos estudantes no final de março e o restante do alunado em abril”. O Sindicato dos Profissionais da Educação foi peremptoriamente contra a retomada e também foi peremptoriamente desconsiderado na tomada da decisão, afinal, “o município estaria embasado no aval da Secretaria Municipal de Saúde”.

Achei tudo muito interessante, sobretudo porque li essas notícias pouco depois de conversar com uma amiga sobre a retomada das atividades escolares. Na Antropologia valorizamos muito as histórias, pois é através delas que os eventos e fenômenos são registrados, transmitidos e interpretados. Como diria Wilhelm Schapp, estamos sempre envolvidos em histórias. E a história de Débora pode nos ajudar a pensar o retorno do ensino presencial. Ela é professora do ensino fundamental, em uma escola particular de classe média de uma cidade onde as escolas já estão funcionando em regime híbrido. Débora tem pouco mais de 30 anos e, como muita gente, sofreu de diferentes maneiras com os efeitos da pandemia. No carnaval, ela não buscou as aglomerações, mas acabou por marcar um encontro com sua amiga Daniele. Elas não se viam há tempos e aquele encontro era importante para que elas renovassem as energias. Elas iniciaram a cerimonia buscando preservar os “protocolos de segurança”, mas esses foram sendo paulatinamente abandonados à medida em que os copos de cerveja eram esvaziados. Ao final do sábado de carnaval, as duas já estavam dançando abraçadas no êxtase do reencontro.

Quis o destino que, poucos dias após aquele encontro, Daniele tropeçasse em uma calçada, lesionando o tornozelo. Ela procurou auxílio médico e ouviu que precisaria de uma cirurgia. De acordo com os protocolos hospitalares atuais, para a internação, Daniele precisou realizar exames para detectar se estava contaminada pelo coronavírus. O resultado foi positivo. Assintomática, Daniele telefonou para Débora para contar a história. Débora, por sua vez, achou de bom tom informar à Direção de sua escola que teve contato com pessoa que testou positivo para covid-19. A Diretora disse que não liberaria Débora das atividades presenciais se ela não apresentasse um exame com resultado positivo – e não disponibilizou o exame à professora. Débora, que não tem plano de saúde e não estava preparada para investir recursos próprios para custear o exame, retornará para o cuidado dos pequenos na próxima segunda, “seguindo todos os protocolos de segurança sanitária”.

É claro que é apenas uma história e que não podemos generalizar, não é mesmo? No entanto, quando pensamos no que foi narrado e na situação das escolas de Campos, muitas perguntas surgem. O retorno das atividades presenciais se dá em função do controle da pandemia ou de uma certa pressão das escolas particulares para reduzir suas perdas econômicas? Será que a Secretaria de Saúde possui legitimidade para impor sua opinião aos profissionais da Educação que conhecem o cotidiano e os bastidores das escolas da cidade? As condições arquitetônicas das escolas, sejam elas públicas ou particulares, garantem uma boa circulação do ar? Aqui vale destacar que parte substantiva das escolas de Campos funciona em casas que foram adaptadas para transformar quartos de dormir em salas de aula. Também me pergunto: como se dará a testagem dos atores envolvidos? Teremos testes para professores, estudantes e funcionários? Diária, semanal, mensal ou “nuncamente”? O que acontecerá quando um aluno tossir no fundo da sala? E se o porteiro testar positivo? Partiremos para o “novo normal” com a mesma estrutura do velho anormal, com aquele sistema de transporte baseado em vans, com as escolas sucateadas e com a segurança trazida pelos 10 leitos que a Prefeitura de Duque de Caxias nos emprestou?

É claro que o anúncio da retomada das atividades presenciais pode ter sido apenas um gesto para acalmar os ânimos de quem deseja/precisa que as aulas voltem ao normal; ou não. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes do Rio Paraíba do Sul. Todavia, fica a impressão de que as decisões estão sendo tomadas por algo que difere da análise sistemática do contexto sanitário que vivemos. Destarte, “no ar que se respira, nos gestos mais banais”, as necessidades econômicas fazem seu trottoir.

 

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

 

* Publicado originalmente em 19 de Fevereiro de 2021 em http://www.folha1.com.br/artigos/2021/02/1270100-carlos-valpassos-debora-volta-as-aulas.html 

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