sábado, 13 de novembro de 2021

Lançamento "Irracionalismo de conveniência" – Sérgio Silva + Prefácio



Eis que que Sérgio Silva, o polímata da Unirio, coloca mais uma das suas criações no mundo.

“Irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade” nos chega pela editora curitibana Appris e sintetiza o conjunto de inquietações teóricas e politicas do autor. Sérgio não só revisita autores tão diferentes como Foucault ou Adorno. Bebe na fonte destes, penso que para ganhar fôlego e fúria, e os renova para decifrar os desafios destas inquietantes primeiras décadas do século XXI.

Para quem quiser ter um petisco do debate, recomendo o vídeo abaixo da conversa de Sérgio com o querido Fabrício Neves (Unb) sobre o trabalho recém-lançado:




Também abaixo socializo o prefácio que elaborei para este livro do Sérgio. Aos navegantes aviso que tive a honra de ter sido orientado por Sérgio em uma das minhas vidas na UENF. Hoje eu e ele podemos dizer que somos amigos na universidade e brothers de armas. Ou, para ser mais preciso, brothers nas artes das seis cordas.

Finalizo dizendo que igualmente muito me honrou o convite para escrever este prefácio. Sem dúvida minha contribuição não dá conta da complexidade e da sofisticação da proposta  corajosa de Sérgio. Mas, funciona como um convite para o leitor fazer o mergulho neste lançamento.

 Boa leitura!

 PS: O livro pode ser encontrado nas boas casas do ramo.. e, evidentemente, no site da editora Appris: https://www.editoraappris.com.br/


Das conveniências do irracionalismo - Prefácio de “O irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade, fake News e a psicopolítica do fascismo digital” de Sérgio Pereira da Silva. Editora Appris, Curitiba, 2021

 

George Gomes Coutinho

 

A crise do setor financeiro e imobiliário em 2008 nos EUA. A conformação das novas e perversas dinâmicas do sistema internacional. A ascensão e previsível queda da Terceira Via inventada, recauchutada, testada e torpedeada por seu perfil conciliatório e pusilânime com as estruturas sociais brutais do mundo pós-fordista. A persistência da pauperização, da precarização do mundo do trabalho, das promessas não cumpridas e tampouco remotamente entregues no mundo do caráter corroído discutido por Richard Sennett[1] há tempos atrás. O suposto empresário de si, o “empreendedor” envolto em fantasias e auto-mistificações falsamente douradas, incensado a partir de nada, frustrado, oprimido, adoecendo sistematicamente e criando índices de sofrimento mental ainda não detectados em outros momentos históricos. A mônada com pés de barro.

Em meio a tudo isso há ainda a pandemia de Covid-19 enquanto escrevo que denunciou e segue denunciando em cores, áudios, movimento e índices as diferentes faces da desigualdade em todos os aspectos por todo globo terrestre.

Esta sociedade complexa, intrigante e com traços distópicos incomoda e pressiona por respostas. É com este momento, onde temos tudo e não temos nada diante de nós, que Sérgio Silva e seu trabalho se defrontam. Diria que autor e obra corajosamente se defrontam com mais uma das grandes crises modernas nadando de peito aberto em mar revolto. Mas, não obstante a humanidade já ter passado por momentos disruptivos e francamente vertiginosos, Sérgio e seu livro ressaltam menos o que há de cíclico em nossa conjuntura, o retorno da roda, e mais os elementos particularmente trágicos que singularizam o que vivemos.  Trata-se de um trabalho de diagnóstico do tempo presente.

Antes de prosseguir penso ser relevante fazer um paralelo com um autor que se apresenta como alma gêmea e, não obstante a sua ausência no trabalho de Sérgio, apresentou um opúsculo em 2009 que se coloca em comunicação tão íntima com a proposta deste livro que podemos dizer que ambos funcionam como vasos comunicantes. Falo do crítico cultural Mark Fisher (1968-2017) e seu Realismo Capitalista[2].

Sérgio Luiz Silva e Mark Fisher são teóricos críticos em estilo livre[3]. Fisher assinalava com alguma ironia, por vezes sarcasmo e muita indignação o cenário de terra arrasada do mundo pós-neoliberal, tudo isso em uma narrativa que vai da cultura erudita ao pop na velocidade da luz. O ocidente após Thatcher, Reagan, Consenso de Washington e afins não enveredou acriticamente somente em fórmulas austericidas que redundaram em índices assassinos de concentração de riqueza. Esta sociedade que vivemos hoje e que não nasceu ontem, sendo tudo engendrado nas últimas décadas na verdade, contaminou algo além da imaginação de editoralistas da mídia convencional, policy makers e agentes coletivos ou individuais do setor financeiro.  Fisher denunciava nada menos que subjetividade humana mutilada, decepada pela violência simbólica de slogans como “there´s no alternative” tal como triunfante já bradou o thatcherismo. Tanto se fez, tanto se repetiu que não há nada além de capitalismo (e desta modalidade específica de capitalismo), que o homem comum assim olhou diante de si um abismo que fornece um presente eternamente cinzento e bárbaro. Um Dia da Marmota sem final feliz.  E, como sabemos, no risco de flertar em demasia com o abismo o observador pode ser engolido confundindo-se simbioticamente com a escuridão.

Neste cenário em que o arbítrio se coloca como relação necessária e o interesse mal compreendido impõe uma ontologia postiça é que se apresentam os sintomas discutidos por Sérgio em nossa contemporaneidade. Pós-verdade, fake news, barbarização da opinião pública, autoritarismo, reedição do fascismo em versão atualizada 2.0 e necropolítica. Em meio a tudo isso um capitalismo mais do que anti-iluminista que se apresenta até mesmo com traços pós-humanos. Pulsão de morte em ritmo de videoclipe.

As consequências desta sociedade não redundaram somente em indivíduos dopados em um ciclo de consumo dia após dia de sujeitos aprisionados na maldição da obsolescência programada. O projeto é de uma sociedade de tiranos e narcisicamente orientada. Algo que a filosofia política há poucos séculos atrás chamaria simplesmente pelo nome de guerra de todos contra todos. Minha base humanista não vê a menor chance de isso render bons frutos. E não tem dado.

Desta franca deterioração situada além dos limites da opinião pública, que redundou na ressurgência dos projetos autoritários em diferentes graus e vitoriosos nos processos de concorrência eleitoral, é difícil não reconhecer que ambos os lados do espectro político contribuíram de maneira direta ou indireta. Nos governos no flanco esquerdo, para além de abraçarem sem maiores questionamentos o receituário fiscal, há aquela arrogância costumeira. Oras, aos campeões morais o sucesso é inevitável! No lado direito, compartilhando a mesma cartilha de políticas públicas fornecida pelo ultraliberalismo, a insuficiência de enfrentarem de maneira honesta seus próprios demônios. Entre progressistas e conservadores, em uníssimo, a falta de imaginação política e de compreensão das experiências do século XX e das demandas do século XXI. Neste ínterim, segue o mundo concreto desabando na cabeça de milhões de pessoas que não sonhavam e não imaginavam mais qualquer outro tipo de futuro. Eis o cenário onde grassa o chorume analisado neste trabalho.

Sérgio compreendeu o caráter multivariado das patologias do nosso tempo. Se armou com as armas de uma teoria crítica renovada que não abre mão da tradição do materialismo multidisciplinar. Desejo e necessidade são olhados com lupa em suas contradições, complementariedades e dinâmica. Teoria social, psicanálise, sociologia e epistemologia são ferramentas habilmente combinadas. Como se não bastasse ainda há Habermas, Foucault, Adorno, Elias, dentre outros, que são mobilizados criativamente em novas sínteses arriscadas e que, por vezes, podem fazer com que ortodoxos de diferentes matizes sintam certo desconforto. Mas, pouco importa. O objeto em sua complexidade se coloca em posição de prioridade analítica e as ousadias teóricas se justificam mais do que qualquer outra coisa. Importa é compreender em minúcias o inferno semiótico em que estamos.

O livro de Sérgio é critica e compreensão. Fornece um quadro interpretativo poderoso para compreendermos como a opinião pública se tornou o ringue de vale tudo que conhecemos. E há, também, em meio aos meandros argumentativos e analíticos que explicam o fascismo nosso de cada dia, espaço para uma esperança rebelde e sutilmente subversiva. A utopia de Sérgio envolve a aposta em uma terapêutica do diálogo como cura para a barbárie.  Uma atuação voltada interativamente para o entendimento, um uso da razão em uma plenitude expressiva muito além do embotamento coisificado fornecido pela sociedade dos cliques de curtir/descurtir. A utopia de Sérgio é pulsão de vida. É interesse bem compreendido embebido do que há de melhor na tradição iluminista com a qual Sérgio se agarra angustiado.

Por fim, tal como o título denuncia, temos sim um Irracionalismo de conveniência cinicamente mobilizado como resposta aos afetos, frustrações e desalentos do horizonte árido dado pelo realismo capitalista. Mas, o trabalho do Sérgio apresenta, na verdade, todas as inconveniências deste irracionalismo. O preço a ser pago pelo uso de tal playbook pode ser alto demais, insuportável eu diria. A questão é que temos tempo ainda de evitarmos um ponto de não retorno. E este livro dá, nas brechas, algumas possibilidades enquanto nos explica o funcionamento da hidra.

 

Campos dos Goytacazes, 13 de maio de 2021.

 

Referências

BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

FISHER, Mark. Capitalism realism: is there no alternative? London: Zero Books, 2009.

HOLLERAN, Max. Marshall Berman´s freestyle marxismo. In: New Republic. New York City, New Republic, n. 14, abr. 2017.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo: Rio de Janeiro: Record, 1999.



[1] SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

[2] A edição brasileira foi publicada pela Autonomia Literária em 2020.

[3] Devo esta expressão a Max Holleran em artigo publicado no ano de 2017 na revista New Republic. Holleran definiu o não menos inventivo Marshall Berman como praticante de um marxismo em estilo livre (freestyle marxism). Penso que o termo aqui se adeque como mão e luva.

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