A dor não acolhida dos (meninos)-jogadores da seleção brasileira
Tábata
Berg**
Quem me conhece, sabe que sou apaixonada por futebol, apesar
de ter passado a última década e meia um tanto brochada. E sei que, como tão
bem nos ensinou Galeano, futebol e política encontram-se fundamentalmente
imbricados. A Copa escancarou várias dessas tessituras. Não vou falar aqui do
que tem sido tão debatido no plano do macro, solo pútrido que contamina todas a
dimensões do espetáculo, isto é, dos acordos econômicos milionários, da
superexploração do trabalho imigrante, da misoginia, homofobia e racismo que
estruturam o futebol como uma poderosa instituição capitalista.
Vou me deter a algumas impressões mais subjetivas.
Logo após o primeiro jogo do Brasil, aquele que Neymar saiu
machucado e Richarlyson fez uma bela partida com um gol que foi uma obra de
arte, eleito pela FIFA como o mais bonito do campeonato, as minhas redes
progressistas foram tomadas por publicações sérias e memes que contrapunham
esses dois craques da seleção. Ressalto, de antemão, que acho legítimo que
Neymar tenha sido responsabilizado por seus posicionamentos políticos. No
entanto, incomodou-me profundamente o prazer sádico, típico da branquitude, em
rivalizar dois homens negros e periféricos. Expurgar o próprio mal para o
outro, nesse caso, Neymar, é uma estratégia colonial, talvez a mais basilar.
Sugiro leituras atentas, não apenas proforma, de Lélia Gonzalez, Toni Morisson,
Fanon.
Depois foi a vez da carne folheada à ouro. Vi várias
postagens de pessoas cujo próprio existir é um impacto ambiental e social, que
são partícipes de instituições ainda profundamente excludentes, como é o caso
das nossas universidades, apontando o dedo! Novamente... Expurgar o mal é uma
delícia, né, meu filho?!
Quando o Brasil perdeu, vieram outras postagens. Dois padrões
nessas publicações me são particularmente indigestos.
Em primeiro lugar, aquele que reproduzia a noção de
"meninos" do futebol como uma reposição não mediada do machismo,
especialmente vinculada à irresponsabilidade afetiva e ao abandono paterno - aspectos
amplamente difundidos no caso do jogador Militão. Não pretendo entrar nos entremeios
desse caso. Ressalto, o patriarcado, com a consequente reprodução de um padrão
de maternidade/paternidade que responsabiliza com uma desigualdade abissal
mulheres e homens pelos cuidados de crianças e idosos atravessa as mais
distintas posições e condições sociais. Todavia um olhar interseccional e,
portanto, mais acurado nos possibilita não perder de vista as singularidades
que conformam masculinidades não-hegemônicas. Houve de modo difuso uma certa
identificação do caso do Militão com essa meninice tipicamente tupiniquim. Em
contraposição há uma paternidade e afetividade responsáveis encarnada no
jogador argentino (branco) Lionel Messi. É particularmente interessante, nesse
contexto de contraposição, o silenciamento de paternidades ativas como a
exercida pelo jogador Neymar Jr. O racismo é estrutural justamente por operar
também de modo difuso e silencioso.
A identificação da
tríade ausência parterna, masculinidades negras e periféricas e meninice é
profundamente perversa, pois esconde todo o processo histórico no qual o
escravismo impossibilitou homens negros de constituirem famílias e
estabelecerem vínculos afetivos e familiares duradouros, impossibilidade que
foi atualizada no pós-abolição seja pelas políticas de barreiramento (Moura,
1977), seja pelo genocídio aberto empreendido pela República brasileira contra
a população negra, em particular, contra o homem negro (Gonzalez, 1984;
Nascimento, 1977).
E , ainda, se ser “menino” tem sido amplamente utilizado para
desresponsabilizar sujeitos brancos de suas ações, como podemos ver no caso de
crimes que envolvem jovens brancos, não podemos fazer uma simples transposição
para os homens negros, nesse caso, “menino”, “moleque”, “garoto” é mobilizado
como marca de uma subumanidade. Os infantes, como bem nos mostra Lélia
Gonzalez, são aqueles sem direitos plenos, aqueles pelos quais e dos quais se
fala. Segundo a autora:
“temos sido
falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança
que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) [...] A primeira
coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é
natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele
tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade
intelectual, criancice, etc. e tal” (GONZALEZ, 1984, p. 225).
Mesmo ganhando milhões, homens negros e periféricos, seguem
sendo tratados como meninos. Negar aos oprimidos a sua plena condição de
sujeito, capaz de se responsabilizar e falar por si, continua sendo fundamental
para que a estrutura capitalista do futebol siga tutelando-os, ao mesmo tempo
em que reproduz estigmas raciais e de classe.
O outro padrão, mas que me parece intrinsecamente ligado a
esse, foi a minimização da dor dos jogadores diante da derrota. Vale ressaltar
que se dedicar a esportes de alta performance demanda um investimento libidinal
exorbitante e, portanto, um grande sofrimento diante da derrota. Sabendo disso,
qual é o peso dessa derrota para sujeitos cujo existir é absolutizado pelo
futebol? E isso num sentido literal, pois o esporte para muitos desses
jogadores pode ter representado a linha tênue que os separou do encarceramento
ou mesmo da morte violenta.
Na derrota para a Croácia, eu chorei com os jogadores da
seleção, li seus relatos no instagram
com o coração partido. Inclusive, o de Neymar, que entregou tudo nos últimos
jogos e que pode ter tido a última oportunidade de vencer uma Copa do Mundo.
Sim, sujeitos periféricos podem sofrer! O direito ao
sofrimento, à demonstração de fragilidade diante da dor tem sido um direito há
tempo demais exclusivo dos humanos plenos. Tem dúvida? Veja as estatísticas de
como às mulheres negras têm sido negado analgesia em procedimentos médicos ou como
homens indígenas e negros lideram os números de sucídio no país. "Mas eles
ganham milhões!", por trás desse pensamento expresso, há outro mais
fugidio, a ausência do direito à humanidade plena a qual homens negros e
periféricos encontram-se submetidos, no caso, ao direito tão primordial de
sofrer e ser acolhido na derrota.
Referências
Gonzalez,
Lélia. Revista Ciências Sociais Hoje,
Anpocs, 1984, p. 223-244.
Moura,
Clóvis. O negro: de bom a mau
cidadão?, 2021 (1977).
Nascimento,
Abdias. O genocídio do negro brasileiro:
processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016 (1977).
** Tábata Berg é Doutora
em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e integra o Grupo de
Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, o GPMT, também na Unicamp. Tábata
organizou e lançou neste longo ano de 2022, junto de Flávio Lima e Murilo van
der Laan, a obra “Trabalho e Marxismo: questões contemporâneas”: https://lutasanticapital.com.br/products/o-livro-trabalho-e-marxismo-questoes-contemporaneas.
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