terça-feira, 25 de julho de 2023

No Pasarán! Eleições Espanholas de 2023 - André Kaysel

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No Pasarán! Eleições Espanholas de 2023**

André Kaysel***

Em que pese ter sido o mais votado, o direitista Partido Popular (PP) muito dificilmente governará a Espanha. A legenda liderada pelo galego Alberto Nuñez Feijó obteve 136 cadeiras no parlamento espanhol (33% dos votos), contra 122 do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), do atual Presidente (Primeiro-Ministro), Pedro Sãnchez, com mais de 31%.

Para formar governo, uma coalizão necessita de 176 deputados, 50% mais 1 dos 350 acentos da Câmara. O problema para o PP é que seus sócios da extrema-direita, o Vox de Santiago Abascal - muito próximo de Bolsonaro - obtiveram 33 cadeiras, 19 a menos do que nas eleições de 2019. Já a plataforma de esquerda Sumar, da atual Vice-Presidenta Yolanda Díaz, que engloba a antiga Unidas-PODEMOS, obteve 31 cadeiras, praticamente impatando com a ultra-direita em percentual de votos, cerca de 12% cada.

Pois bem, o bloco da direita obteve 169 acentos, enquanto a esquerda alcançou 153, portanto, nenhum dos dois conseguirá sozinho formar governo.

E as 28 cadeiras restantes? A maioria pertencem a partidos regionais e nacionalistas, sobretudo no País Basco e na Catalunha. Alguns estão mais à direita, como o PNV e Junts, outros mais à esquerda, como Eh Bildu e ERC. Porém, nenhum partido nacionalista basco ou catalão irá formar um governo com PP e Vox, representantes do nacionalismo castelhano, monárquico, católico e neofranquista.

Assim, a tarefa de Feijó é como a quadratura do círculo. Sua única chance seria que essas forças minoritárias se abstivessem na votação da investidura, permitindo que ele formasse um governo de minoria, o que é pouco provável.

Assim, Sánchez, embora tenha ficado em 2o. lugar, tem mais chance de chegar a um acordo com Sumar e os nacionalistas bascos e catalães e continuar no Palácio de La Moncloa. Outra possibilidade bem plausível é de um bloqueio total, que obrigue à convocação de novas eleições em breve.

Seja como for, a vitória do PP parece ter sido uma vitória de Pirro, sobretudo pela derrota de seus aliados de extrema-direita, com os quais pretendiam formar o governo mais reacionário da Espanha desde a redemocratização no final dos anos 1970. Como bem disse Yolanda Díaz em seu discurso, a Espanha e a Europa irão dormir mais tranquilas. Pelo menos dessa vez, valeu pelo voto o lema da Passionaria Dolores Ibarruy: "! No Pasarán!".

* Massacre in Korea, Pablo Picasso. Disponível em: https://fineartamerica.com/featured/massacre-in-korea-by-pablo-picasso-1951-pablo-picasso.html, acesso em 25 de julho de 2023.

** Publicado originalmente no perfil de Facebook do prof. André Kaysel em 24 de julho de 2023. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.

*** André Kaysel é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Kaysel é atualmente diretor do CEMARX, o Centro de Estudos Marxistas da Unicamp, e autor, dentre outros trabalhos, de "Entre a nação e a revolução: marxismo e nacionalismo no Peru e no Brasil (1928-1964)" publicado pela Alameda Editorial.

domingo, 2 de julho de 2023

Mídia brasileira: tragédia e farsa em um blockbuster hollywoodiano

 Por Jefferson Nascimento*

              (Foto: Shutterstock)

Hoje, 02 de julho, uma das manchetes em destaque no portal Globo.com recebeu o título “Com intensa agenda internacional, Lula recupera espaço do país na política externa, mas patina sobre a guerra na Ucrânia, avaliam especialistas[i]. Essa matéria não é isolada, chama a atenção o ativismo da imprensa nacional em relação ao conflito na Ucrânia com um viés convergente com a posição dos Estados Unidos. Ao ler a matéria, qual não é a surpresa: apenas um dos especialistas falou sobre a guerra, o ex-diplomata Paulo Roberto de Almeida, que se tornou diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) no governo Temer e foi exonerado no governo Bolsonaro.  Almeida, em entrevista ao canal MyNews em 2021, comentou a demissão de Ernesto Araújo e justificou o anonimato dos diplomatas na carta de repúdio à Araújo pelo risco de represálias que atrapalhariam a carreira no Itamaraty, ilustrando com exemplos pessoais: teria sido censurado em “governos tucanos” e colocado nas “escadas e corredores nos tempos lulo-petistas”. O mesmo diplomata, apesar de ter sido demitido na gestão Bolsonaro e ter se tornado crítico à Ernesto Araújo e Olavo de Carvalho, participou de eventos do Brasil Paralelo, como o Webinário 2018 Brasil e é autor do livro O Homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos[ii]. Como se vê, uma escolha a dedo para manter o viés pró-Estados Unidos. O ex-diplomata faz afirmações como: “O que Lula está fazendo é absolutamente inócuo, ninguém apoiou esse clube da paz [...]” e “A gente vê o antiamericanismo da velha esquerda [...]”. Pela volta do tema à tona, resgato um texto de minha autoria publicado no Jornal A Vanguarda. O texto resgata fatos e reflete sobre causas do conflito, saindo desse simplismo de forjar um único agressor para encaixar na máxima reverberada por Almeida de que “quando você tem um agressor, o dever de todos os estados membros é vir em socorro e apoio à parte agredida”.[iii] Segue o texto.

Uma polêmica tomou conta dos noticiários: a posição de Lula em afirmar que a Rússia não era a única responsável pelo conflito. O foco foi a frase: “Decisão da guerra foi tomada por dois países”. Não pretendo defender Lula. Meu ponto é direto: problematizar a militância da imprensa na posição pró-EUA omitindo fatos e acontecimentos indispensáveis para compreensão do conflito. O ápice foi um veículo de comunicação dar status de escândalo a uma fake news iniciada por um secretário do governo estadual paulista afirmando que a estatal ucraniana Antonov, mesmo em crise financeira, faria investimentos de US$ 50 bilhões no estado de São Paulo, cancelados após a posição de Lula sobre a guerra. A empresa desmentiu e negou ter representantes no Brasil. A emissora se defendeu dizendo que era necessário “apurar”, pois “a reunião existiu”. Ora, não sei o que é mais grave: um secretário de governo mentir ou ser incapaz de checar com uma empresa a identidade de seus representantes. Sobre a reincidente emissora, não é preciso novos comentários.

Essa militância obstinada nega fatos que ultrapassam e antecedem qualquer fala de Lula ou posição do Ministério das Relações Exteriores. Sendo direto: afirmar que EUA e União Europeia, por meio da OTAN, e a Ucrânia têm parcela de responsabilidade na guerra não retira a responsabilidade russa e nem torna Putin um herói. Diferente de filmes e novelas, a realidade é multifacetada.

Esse adendo fiz em fevereiro de 2022 no texto “Rússia, Ucrânia e OTAN: a história sempre importa”[iv]. O texto sintetiza fatos públicos não sendo um “furo”. Na apresentação afirmei: “Elencar os fatos recentes decisivos para esse conflito não é o mesmo que identificar um ‘mocinho’ nesse trágico evento” e concluí:

[...] ainda que o imperialismo russo mova Putin a reconhecer a soberania das províncias rebeldes pró-Rússia e a avançar militarmente sobre o vizinho, não se pode ocultar que o outro imperialismo avançou militarmente ali e progride em todo mundo, seja pela força das armas ou pela desestabilização interna de países considerados estratégicos. A condenação à invasão russa na Ucrânia não pode ser feita sem considerar a ação da outra potência que, vez ou outra, culmina num humorista ou num boçal submisso na presidência dessas áreas de interesse.

Veja que depois de fevereiro de 2022 sanções, envios de armas e outras ações envolveram ainda mais a OTAN, EUA e a UE. A Primeira Guerra Mundial já mostrou que não se resolve um conflito complexo escolhendo bodes expiatórios. Ademais, a reunião com o ministro russo Sergey Lavrov terminou com o Brasil defendendo o fim imediato da guerra e a Rússia pedindo um acordo que "resolva de forma duradoura o conflito". Posições diferentes, não é?

É preciso reconhecer que a polêmica é facilitada pela comunicação catastrófica do governo brasileiro. Em diversos momentos, Lula e os ministros falam sem uma articulação com a equipe de comunicação caindo em armadilhas, muitas vezes, por falta de clareza e objetividade.

No entanto, a posição dura dos EUA não é gratuita. Desde a Lava Jato, o Brasil foi colocado novamente numa posição frágil submisso aos interesses de Washington. A posição de Biden em reconhecer Lula desde o primeiro momento também não viria de graça. Cabe ao Brasil comunicar melhor suas posições. O chanceler Mauro Vieira faz, Lula insiste em falar dentro e fora do país como se estivesse em 2003.

A conjuntura mudou e vários países passaram por desestabilização política desde fora, sob formas diversas de golpes (lawfare, revoluções coloridas, revoltas supostamente populares e outros) e em seus lugares governos alinhados aos interesses estadunidenses, destacados pela fragilidade ou autoritarismo, tocaram um processo antipolítico, antipovo, antinacional sob a aparência da representatividade exaltada na democracia liberal. Prática que deu notoriedade a figuras reles como Juán Guaidó na Venezuela e influenciou manifestações até em Cuba em 2021. Retomo outra passagem de 2022:

Zelensky também negociou com Trump quando o ex-presidente dos EUA queria a investigação de Hunter Biden e sua empresa Burisma, sediada na Ucrânia. A investigação ganhou oposição do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Segunda consta, Alexander Vindman, membro do conselho especialista em Ucrânia, teria alertado para o risco de a investigação ser considerada “jogada partidária”. Vindman justificou “Sou patriota, é meu dever sagrado e minha honra defender o país”.

É isso mesmo: um membro do Conselho de Segurança, nomeado por Trump, não considerou adequada essa investigação para “defender o país”. Afinal, de Obama à Trump, passando por McCain e Biden, a Ucrânia é um projeto de Estado e o apoio dos Estados Unidos à chamada Revolução Maidan não é um empenho no combate à corrupção e muito menos uma ode à soberania nacional. O ano era 2014 e esse apoio não estava fora do contexto da Primavera Árabe e nem das think tanks que se projetaram no Brasil durante e após as Jornadas de Julho.

Após a desestabilização política, o roteiro incluiu líderes que desacreditassem as chamadas instituições democráticas e as colocasse à serviço do entreguismo e do ataque ao povo e seus direitos – Zelensky, Bolsonaro e projetos malsucedidos como Guaidó e Sérgio Moro se encontram nesse pastelão. A degeneração do caráter representativo para uma explícita concertação para o lobby de interesses alheios aos populares têm sido o mote desde a Primavera Árabe.  É nesse contexto e desse lugar que a imprensa brasileira faz essa celeuma sobre declarações que destaquem o caráter multifacetado da guerra em vez de uma farsa hollywoodiana com vilões e mocinhos.


Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, Professor do IFSP - Campus Sertãozinho, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).

[ii] Roberto Campos, que era apelidado de Bob Fields pelo seu norteamericanismo, foi se alinhando ao neoliberalismo ao longo dos anos 1970 e 1980, inclusive defendendo entusiasticamente as políticas de Margareth Thatcher. O livro de Almeida é uma ode a Campos, que foi ministro do Planejamento na gestão Castelo Branco, durante a Ditadura Militar, e cujo neto é o atual presidente do Banco Central, nomeado na gestão Bolsonaro. O próprio Almeida ingressou no Itamaraty durante a Ditadura, em 1977.

[iii] As frases atribuídas à Paulo Roberto de Almeida constam na matéria do Globo.com citada no início do parágrafo e acessível pelo link disponível na primeira nota.

sábado, 1 de julho de 2023

Uma milonga para Helinho Coelho - George Coutinho

 

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Uma milonga para Helinho Coelho**

George Gomes Coutinho***

Conheci Helinho quando eu tinha 19 anos. Eu fui seu aluno. Ele tentou me convencer das virtudes de Gramsci na época. Não curti. Achei Gramsci moderado demais e eu estava mais sintonizado com a nitroglicerina de gente como Bakunin.

Muitos anos se passaram e Gramsci estava lá muito presente em minha tese. Helinho venceu.

Entre graduação e tese nos encontramos em diferentes ocasiões. No antigo Terapia´s Bar, ainda perto do Liceu, quando um intrépido e troncudo Helinho (sim, ele era forte) chega pilotando uma Caloi 10 tão magrinha que desafiava a física newtoniana. Papo vai, papo vem.. política, música, cultura e um engradado de cerveja são consumidos.. E lá se foi ele na mesma Caloi 10 em que tinha chegado.

Teve aquele dia improvável também. Em coordenada não rastreável por GPS, alguma coisa ali esquecida “nos fundos de Chapéu de Sol”, o reencontro. Era um trailer, ou o que restava de um, com pessoas reunidas ouvindo o violão dele.. Na mesa um scotch circulava generosamente. Eu, pato novo naquela lagoa, fiquei ali curtindo o papo, a viola e o céu estrelado só na cervejinha. Saí meio trôpego com o céu escuro. Mas, pelo que vi, Helinho estava com pique para amanhecer ali com seu repertório.

Ainda Helinho era macho pra caralho. Em 2018, quando a UFF Campos foi violada por um juiz eleitoral e seus brutamontes, ocasião em que a porta do DACOM foi arrombada para apreenderem, vejam só, um punhado de panfletos que deitavam inertes no fundo de um armário trancado dos estudantes, Helinho peitou defendendo a instituição. Foi ameaçado de prisão. Eu sei que não foi a primeira vez e pode nem ter sido a última.

Helinho era muita coisa. Músico, professor, político (foi vereador na cidade), advogado, historiador, poeta, agitador cultural.... e, como se não bastasse, gente boa! Como era gente boa!

Nos esbarramos uns 10 dias atrás em uma calçada da Pelinca. Estava especialmente elegante! “Tá mal intencionado hein?”, assim eu disse. Ele deu aquele sorriso meio maroto que todos nós curtíamos.

Rest in Power Helinho. Você dizia: “Essa cana, é sacana!”, em uma crítica à brutalidade de nosso canavial. Por sua saída tão abrupta eu digo que por vezes a vida também é sacana meu camarada....

* Helinho em 2018 em sala de aula da UFF-Campos, instituição pela qual se aposentou em dezembro de 2022. Foto de Johnatan França de Assis.

** Hélio Coelho, ou simplesmente Helinho como era carinhosamente conhecido, foi uma das figuras mais ativas da vida intelectual campista nos últimos 50 anos. Ele foi advogado, historiador prático, escritor, violonista, cantor, poeta, analista político e agitador cultural. Foi vereador e Presidente da Câmara Municipal durante a Ditadura e um dos líderes do Movimento pelas Liberdades Democráticas. Também foi membro da Academia Campista de Letras, associação que presidiu neste século XXI. O querido Helinho nos deixou na última quinta-feira aos 75 anos.

*** Professor da área de ciência política no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Medo à liberdade – Fabrício Maciel

 

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Medo à liberdade**



Fabrício Maciel***

Especialmente após a crise global de 2008, o mundo foi tomado de assalto por um espírito autoritário, que encontra conformações específicas em cada país, o que precisa considerar as desigualdades históricas nacionais. Donald Trump e Jair Bolsonaro são, neste sentido, excelentes exemplos advindos de realidades históricas bem distintas.

Ao observar as razões que levaram à ascensão e a queda e que podem levar à reascensão de tais líderes, podemos notar diversos fatores em comum. Dentre eles, as dificuldades na vida econômica da nação, o que significa especialmente o aumento da precariedade e do espectro da indignidade nas classes populares, serão sempre o primeiro aspecto a ser observado. Não foi outra coisa o que fez Erich Fromm em seu tempo, ao buscar compreender as razões profundas do fascismo.

Entretanto, para ele, as razões psicológicas se apresentaram como de maior importância, o que também é fundamental para compreendermos as novas formas de autoritarismo atuais. Isso não significa cair em um psicologismo, o que Erich Fromm deixa muito claro em sua leitura de Freud e sua ruptura com o mestre. Para Fromm, a natureza humana é dinâmica, sendo modificada ao longo do processo histórico, ao mesmo tempo em que o modifica.

Tal percepção pode ser encontrada em seu belo livro O medo à liberdade (Fromm, 1974). Nele, o autor procura compreender as dificuldades humanas na modernidade em sua relação com a liberdade. Liberto das amarras anteriores, o indivíduo agora não sabe o que fazer com sua nova condição, encontrando-se angustiado e com medo. Teríamos assim a condição perfeita para uma entrega à influência de líderes autoritários.

Isto foi fundamental para entender o fascismo clássico. Entretanto, na atualidade, precisamos atentar para alguns aspectos específicos. Fromm não presenciou, por exemplo, o que a máquina tecnológica atual é capaz de fazer com a produção de fake news e a mudança de consciência nas pessoas. Sem este mecanismo de poder Donald Trump e Jair Bolsonaro simplesmente não existiriam. Faço menção a estes dois casos específicos por considerar as semelhanças da ação do neofascismo em sociedades de massa gigantescas como o Brasil e os Estados Unidos, marcadas por fortes desigualdades estruturais. Encontraremos outros aspectos específicos na Europa e no mundo asiático.

Pensando especialmente no caso brasileiro, Jair Bolsonaro foi uma resposta um tanto quanto imprevista ao fracasso de um certo sistema político, econômico, moral e simbólico em promover justiça social e atender aos anseios existenciais mais profundos da sociedade brasileira e especialmente das classes populares. Refiro-me a um sistema que se esboça na década de 2000 e que normalmente definimos como “progressista”.

Naquele momento, a eleição de Lula incorporou e simbolizou este movimento, em consonância com o cenário global. Esta será uma década que vai presenciar grande esforço por parte dos governos do PT em promover justiça e inclusão social, o que foi, entretanto, muito menor do que o discurso do governo. Este esbarrou na desigualdade estrutural brasileira e no poder ilimitado de sua elite.

Com isso, a grande discrepância entre as promessas do sistema progressista e as possibilidades efetivas de mudança social foram gerando uma série de dificuldades no campo político e, em contrapartida, uma série de frustrações no seio da sociedade. Neste sentido, a perspectiva teórica de Fromm cai como uma luva. Esboçando uma interpretação, podemos dizer que os esforços do sistema progressista geraram expectativas fora da realidade, buscando provocar um caráter social igualmente progressista, tolerante e inclusivo. Em boa medida, não podemos negar o surgimento de um caráter social com boas expectativas de justiça e igualdade, considerando que várias ações do governo de fato promoveram alguma inclusão e justiça social nas camadas populares.

Entretanto, a discrepância entre a “grande promessa” progressista e a realidade estrutural do Brasil se colocou como o grande empecilho. Neste ponto, não podemos ignorar a realidade global promovida pelo capitalismo “flexível”, que eu prefiro definir como “indigno”. Com isso, precisamos ir além do nacionalismo metodológico e romper com a interpretação equivocada de que o Brasil e a América Latina possuem culturas autoritárias arraigadas em sua história, o que explicaria os fenômenos autoritários atuais. Com efeito, um olhar atento no cenário atual pode perceber a existência de uma cultura autoritária em escala global, inclusive aqui na Europa, o que pode ser visto com toda a nitidez no grau de intolerância crescente diante dos imigrantes.

Compreendo este fenômeno como um resultado tardio da ascensão de um capitalismo indigno e autoritário, em escala global, desde a década de 1970. Este resultado é tardio no sentido de que, em grande medida, ficou ‘debaixo do tapete’ da grande promessa progressista neoliberal das últimas décadas. Incondizente com a realidade, esta promessa apenas omitiu a ação real do capitalismo indigno, cuja verdadeira face é autoritária, promovendo desigualdade e injustiça social como nunca, agora em escala global. Neste sentido, a falência do Welfare State em países como Alemanha, França e Inglaterra é uma das principais provas empíricas da existência deste novo tipo de capitalismo e de sua lógica intrínseca de ação.

É claro que, se compararmos países como a Alemanha e o Brasil, veremos que, na primeira, o Estado ainda possui volumosos recursos para defender o país do “grande fracasso” do sistema progressista. Veja-se, por exemplo, a crise do gás promovida pelo contexto da guerra na Ucrânia. Por outro lado, todo o empenho progressista dos governos de esquerda no Brasil não foi suficiente para enfrentar nossa desigualdade estrutural. Como resultado, na década de 2010 começaremos a ver os efeitos deste fracasso e suas especificidades no caso brasileiro.

As manifestações de 2013, que agora completam dez anos, demonstraram uma certa revolta contida nas camadas populares, o que foi rapidamente manipulado por grupos de poder, criando uma crise profunda nos governos de Dilma Rousseff e levando ao seu impeachment em 2016. Rousseff quase não se reelege em 2014, o que revela tanto a crise de seu partido quanto a falência maior do sistema progressista global.

Novamente, a teoria de Erich Fromm se apresenta como muito propícia. Para ele, o caráter social significa o tipo ou perfil de humanidade predominante em uma época ou contexto histórico específico. Em termos simples, é preciso entender o caráter social do brasileiro mediano que votou e acreditou nos governos progressistas do partido dos trabalhadores de Lula e Rousseff. Um dado extremamente importante aqui é que um grande número de pessoas votou duas vezes em Lula, duas vezes em Dilma e então em Jair Bolsonaro. Isso não é casual e se explica em grande medida pela frustração generalizada diante da grande promessa que se transformará em descrença, apatia, animosidade e intolerância em grande parte da população, além de ódio e agressividade em escala preocupante. 

Temos assim um prato cheio para o discurso neofascista, que vai compreender e instrumentalizar esta frustração e insatisfação coletiva, traduzida em grande parte em ressentimento generalizado diante das instituições e sentimento de não reconhecimento pelas mesmas. Daí se explica o sucesso do discurso antissistema de Jair Bolsonaro, semelhante ao de Trump e adaptado ao cenário brasileiro. Vale ressaltar que este discurso possui uma tonalidade ultra meritocrática, manipulando os sentimentos e o ideal de liberdade individual para justificar e legitimar a campanha e posteriormente as ações do governo de Jair Bolsonaro.

Aqui, o discurso abstrato da liberdade vai ser bem-sucedido ao se contrapor ao discurso e a consequente falência do sistema progressista, que prometeu inclusão e justiça vindos de cima. Com isso, a extrema direita se aproveita do fracasso progressista com o discurso de que a justiça e a inclusão só podem vir debaixo, da própria sociedade, através da defesa da liberdade individual de ação no mercado, o que dependeria de um governo igualmente ultraliberal. A fala emblemática de Jair Bolsonaro, no auge da pandemia, de que o “povo precisa trabalhar”, é bastante esclarecedora neste sentido. Ao mesmo tempo, o governo da extrema direita vai manter políticas sociais da esquerda como um recurso populista eficaz.

Com isso, retornando a Erich Fromm, o que presenciamos é uma mudança gradual no caráter social brasileiro recente. Tal mudança, como percebia Fromm, é dinâmica, típica da cultura capitalista que ao mesmo tempo molda e é moldada pelo caráter social. Diferente da interpretação dominante e equivocada de que o brasileiro é essencialmente autoritário, o que presenciamos durante os governos da esquerda foi a construção gradual de um contexto de mais tolerância, aceitação e crença nas propostas progressistas de justiça e inclusão, que começa a ser modificado diante do fracasso de tais promessas. Com isso, o sistema político ao mesmo tempo modifica e é modificado pelas formas de pensar, agir e sentir da sociedade como um todo.

Agora, Jair Bolsonaro perdeu a última eleição e Lula retorna ao poder, em uma situação muito atípica e de difícil interpretação. Aqui, valem algumas considerações parciais. Em um primeiro momento, Jair Bolsonaro tentou um golpe, no fatídico 8 de janeiro, o que pode ser entendido a partir de outra parte da obra de Erich Fromm. Como foi bastante divulgado na mídia, os principais símbolos do poder em Brasília foram depredados em um ato de vandalismo de dimensões inéditas em nossa história.

Ali pudemos ver os impulsos de agressividade e destrutividade individuais canalizados contra um suposto opressor externo que, depois de amado, no auge da promessa progressista, agora é odiado. A ambiguidade intrínseca, que expressa o teor instrumental da manipulação realizada sobre boa parte dos indivíduos no ato, reside no fato de se empunhar a bandeira do brasil e ao mesmo tempo destruir seus símbolos de poder. Ou seja, se expressa aqui uma relação mal resolvida de amor e ódio em relação a autoridade externa do sistema político.

Na prática, sabemos que boa parte das pessoas envolvidas no ato agiram de maneira puramente instrumental, sendo inclusive financiadas para tanto. Ou seja, uma milícia da extrema direita. Por outro lado, muitos indivíduos ali presentes, o que também pudemos ver em toda a ação da militância de extrema direita ao longo do governo Bolsonaro, representando seu eleitorado, foram movidos por crenças e ideais que se infiltraram ou maximizaram no caráter brasileiro recente nos últimos tempos.

Aqui, como conclusão, podemos buscar um diálogo com a leitura de Erich Fromm sobre a fuga da liberdade e suas dificuldades. Se estivesse vivo, Erich Fromm certamente não ignoraria os imperativos morais impostos pelo capitalismo flexível, que promete sucesso e felicidade, ao mesmo tempo em que oferece, no plano material, instabilidade e precariedade, além de angústia, instabilidade e sofrimento, no plano existencial.

Com isso, precisamos de uma nova teoria da alienação e de novas buscas para sua superação. Em boa medida, Erich Fromm psicologizou a teoria da alienação de Karl Marx, a partir de sua influência de Sigmund Freud, indo além também deste, ao mostrar que o indivíduo, em sua natureza humana dinâmica, pode ser vetor tanto da reprodução quando da superação da alienação.

Para Erich Fromm, a superação da alienação dependeria da construção altruísta de relações sadias com o outro, diferentes daquelas predominantes na sociedade insana de seu tempo, muito semelhante ao que vivemos hoje. Neste sentido, a busca por um humanismo transformador e até mesmo por um socialismo humanista pode ser um projeto sério a ser construído socialmente. Se Erich Fromm estiver correto, a sociedade e o caráter social se transformam de maneira dinâmica, o que nos permite margem para esperança e não para a simples entrega ao conformismo, pessimismo ou melancolia. Entretanto, esta mudança depende também da ação do sistema político-econômico, que precisa se reconstruir criativamente.

Em seu terceiro mandato, Lula encontra novas dificuldades, mais obtusas e complexas do que as anteriores. Em certo sentido, a presença de Jair Bolsonaro no poder deixou claro quem era o inimigo a ser deposto. Ainda que Jair Bolsonaro tenha sido, como indivíduo, apenas um instrumento de um contra-sistema conservador, considerando que sua carreira agora parece fadada ao fracasso, ele explicitou, assim como Donald Trump, os ideais mais obscuros da modernidade, negados pelo sistema progressista.

Agora, a ação conservadora migrou para mecanismos mais complexos, como aqueles capitaneados pelo atual presidente da câmara dos deputados, Arthur Lira, que tem conseguido impedir ações progressivas do governo, assassinando o mesmo ainda no berço. Com isso, as perspectivas para os próximos anos não são muito promissoras. Por outro lado, com a eleição de Lula o caráter social brasileiro parece ter amenizado um pouco os seus ânimos e retomado algum fôlego. Com isso, podemos talvez ainda ter alguma esperança.


* The Night Wanderer, Edvard Munch. Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/02/19/arts/design/review-the-darkness-and-light-of-edvard-munchs-work.html, acesso em 28 de junho de 2023.

** Versão modificada de apresentação na 3ª Conferência de Pesquisa Internacional sobre Erich Fromm, realizada na International Psychoanalytic University em Berlim. Utilizamos aqui, com a devida autorização do autor, a versão publicada em A Terra é Redonda disponível em https://aterraeredonda.com.br/o-medo-a-liberdade/?fbclid=IwAR0dWi4FmvDPAyNjD_qnsACFUVbjjaJHLutC8D1AJsKgNqFz4I5vH_uVsPs, acesso em 28 de junho de 2023.

*** Fabrício Maciel é professor de teoria sociológica na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de O Brasil-nação como ideologia. A construção retórica e sociopolítica da identidade nacional (Ed. Autografia).

domingo, 21 de maio de 2023

A burguesia não curte a democracia - Luis Felipe Miguel

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A burguesia não curte a democracia**


 Luis Felipe Miguel***

A história é que Bolsonaro, no começo do ano passado, pediu a Guedes para diminuir o preço do gás - para ver se ganhava uns votos. Guedes disse que interferir na Petrobrás afetaria a empresa, o governo e traria um efeito cascata. E explicou: "Não dá para agradar pobre toda hora. Se você agrada pobre, desagrada o rico e quem manda no país é o rico". Bolsonaro concordou.

Agora, Lula cumpriu sua promessa de campanha e baixou o preço do gás - sem nenhum dos efeitos negativos que Guedes anunciara. Bolsonaro ficou puto e chamou seu ex-"posto Ipiranga" às falas.

Parece que a conversa, via zap, foi áspera. Cobrado por Bolsonaro, Guedes teria reagido: "Desapega". Daí trocaram alguns palavrões e, no final, Guedes bloqueou o número do seu ex-chefe.

O mais interessante é que Guedes disse, para Bolsonaro, algo que é bem sincero. Para os ultraliberais, a democracia é um problema. Ela obriga a levar em consideração os interesses dos dominados: a classes trabalhadora, os pobres, as periferias, as mulheres, a população negra. Afinal, foi por pressão destes grupos que a democracia se estabeleceu - ela sempre foi um projeto popular.

Isto já está nos gregos antigos, que definiam a democracia como "o governo dos pobres". Não é exatamente isso, claro - os ricos e poderosos sabem usar muito bem seus recursos para garantir uma influência desproporcional nas decisões públicas. Mas a pressão dos dominados gerou um sistema em que sua voz tem como ser ouvida.

A classe dominante tenta fazer com que essa voz perca relevância. São mil pressões, manipulações ou mesmo manobras como dotar de "independência" alguns órgãos cruciais do governo, como o Banco Central (uma "independência" em relação à vontade popular).

Os regimes que eles preferem são como a Itália de Mussolini ou o Chile de Pinochet (ao qual, aliás, o jovem Paulo Guedes serviu). Autores como Hayek, Friedman, Mises ou Nozick manifestavam abertamente sua repulsa à democracia e defendiam a necessidade de limitá-la. Hayek chegou a propor uma constituição em que o direito de voto vem aos 40 anos e é exercido uma única vez...

Mesmo com seus vieses e limitações, a democracia dá ao povo a chance de desorganizar o jogo das elites. Obriga que os políticos ao menos finjam interesse pelas maiorias. E permite que o povo premie quem atende melhor às suas necessidades.

Por isso, a democracia é uma bandeira central para a esquerda.

A democracia que temos é muito inferior àquela com que sonhamos. A submissão ao capitalismo, o peso do dinheiro, a manipulação da informação, tudo isso enviesa seus resultados. Ainda assim, ela é um avanço - e cabe a nós lutar para aprimorá-la.

* "Paulo Guedes na Idade da Pedra Lascada", charge do sempre genial Aroeira. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/charge-paulo-guedes-na-idade-da-pedra-lascada-por-aroeira/, acesso em 21 de maio de 2023.

** Publicado originalmente no perfil do Facebook do prof. Luis Felipe no dia 20 de maio de 2023. Reproduzimos aqui com a autorização do autor.

*** Professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autor de  "Democracia e representação: territórios em disputa" (Editora Unesp, 2014), "Dominação e resistência" (Boitempo, 2018), dentre outros. Lançou no primeiro semestre de 2022 o seu  "Democracia na periferia capitalista" pela Autêntica Editora.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Voyeur Político - 1ª Rodada - Ano III - Metropolização na Bacia de Campos

 



O projeto Voyeur Político é projeto de extensão sediado no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos coordenado por mim, prof. George Coutinho (georgec@id.uff.br). Neste episódio tivemos como convidados José Luis Vianna da Cruz (UFF/UCAM) e William Passos IPPUR/UFRJ).

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Voyeur Político - 1ª Rodada - Ano III

 


Vamos nós para o terceiro ano do projeto Voyeur Político!

Nos anos de 2021 e 2022 nos dedicamos a acompanhar a conjuntura eleitoral de out/22. Neste 2023 teremos um refresco do tema e abriremos para uma maior variedade de questões no projeto.

Vamos iniciar este Ano III olhando para nosso quintal, a cidade de Campos dos Goytacazes. Com 188 anos recém completados Campos precisa lidar com o que pode ser um dos mais complexos desafios de sua existência: a metropolização.

Com quase meio milhão de habitantes, desigualdades diversas, uma cultura econômica que parece pouco afeita a inovações e uma vida política que gravita por décadas nos arredores da imagem de Garotinho, esta cidade do interior do Rio de Janeiro está se tornando uma metrópole? Caso esteja, quais seriam as possíveis consequências da metropolização para sua população?

Convidei para esta conversa dois colegas que tem muito a dizer sobre este tópico: William Passos e José Luis Vianna da Cruz.

William Passos é recém doutor pelo prestigiado Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ). Sua tese, que foi desenvolvida com momentos de formação do autor na Universidade do Porto e no IBGE, justamente discute a metropolização da bacia de Campos. Para além disso, William, que é geógrafo de formação, é um ativo colaborador da imprensa regional e se arrisca corajosamente em solos da gaita.

José Luís Vianna da Cruz é simplesmente um dos sociólogos mais importantes da região. Não é possível sequer imaginar a atual fisionomia da sociologia regional sem sua presença.  Também doutor pelo IPPUR/UFRJ, Zé é formador/pesquisador em instituições como UCAM e a UFF-Campos, onde sempre discutiu, analisou e problematizou a região. Com tudo isso é rubro-negro apaixonado, dono de uma biografia interessantíssima e também tem em seu currículo o tropeção de ter me orientado no início deste século. Sim, também sou “cria” do professor Zé Luís.

Nossa conversa irá ocorrer em 11 de maio de 2023, uma quinta-feira, 15 horas. As inscrições, para quem desejar acompanhar o papo ao vivo, podem ser feitas aqui neste link: https://forms.gle/KHzkBYvzk1B14bfV6

O projeto Voyeur Político é projeto de extensão sediado no Departamento de Ciências Sociais da UFF-Campos coordenado por mim, prof. George Coutinho (georgec@id.uff.br).