sexta-feira, 10 de maio de 2024

Com todo respeito e solidariedade aos gaúchos, não podemos esquecer os fundamentos econômicos, sociais e políticos desta tragédia

Fonte: postagem no Instagram dos perfis midianinja e designativista.

Jefferson Nascimento*

 

A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social [...] A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos [...] existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes   intelectuais.   Tanto   na   esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução [...] A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática (Nildo Viana, 2006).[i] 

 

O argumento de que não é hora de procurar culpados para não politizar as enchentes do Rio Grande do Sul é, em si, um posicionamento político. Uma das mais eficazes formas de fazer política é ocultar os conteúdos político, econômico e social de uma dada situação, naturalizando-a. Naturalizar fatos sócio-históricos é uma estratégia para esvaziar o debate e proteger o status quo e suas posições hegemônicas.

Respeitando todas as crenças, não se trata de pessoas abandonadas pelas graças ou castigadas pela fúria divina e, sim, da desgraça produzida pela submissão das necessidades humanas aos interesses dos agentes do “mercado”. As consequências de uma catástrofe causada por forças da natureza não são apenas uma questão natural e nem podem ser resumidos como infortúnios oriundos de fatores transcendentais. O desmatamento, a queima de combustíveis fósseis, as diversas formas de poluição, a ocupação e os usos do solo ocorrem em um processo histórico movido por fatores econômicos e políticos. Logo, nessas catástrofes as pessoas são mais ou menos afetadas por efeitos que podem ser minimizados ou maximizados politicamente.

Portanto, não se pode politizar o que já é político. O ponto central é como e para quê o debate e a disputa de versões vão ser mobilizados. Ele visa compreender os processos políticos que foram realizados e/ou negligenciados piorando o drama das pessoas? Visa obter apoio para interesses específicos? Sua interdição visa obscurecer ocorrências sociais, econômicas e políticas que definiram os contornos da catástrofe? É claro que outras perguntas podem ser feitas, mas estas são exemplos do esforço para compreender o que está por trás de certas posições e discursos

É indispensável discutir vários elementos não-naturais sobre a grave situação do Rio Grande do Sul. Desde fatores globais e estruturais (a relação entre o modo de produção capitalista e as mudanças climáticas) aos fatores nacionais, regionais e locais (necessidade e rigidez dos licenciamentos ambientais, disponibilização de recursos públicos para manutenção de barragens, investimento em Defesas Civis e Corpo de Bombeiros e produção de políticas públicas com base em evidências científicas).

Este último, depende de um pacto social contra o negacionismo, que se apresenta por meio de diversos movimentos (antivacinas, terraplanismo, negação da emergência climática, etc.) e amplia sucessivamente seu alcance com a cumplicidade das corporações proprietárias das redes sociais, produzindo cada vez mais mortes. Desafortunadamente, tais movimentos negacionistas não se restringem à sociedade civil e orientam a ação de diversas autoridades públicas, por adesão ideológica, aceno ao mercado ou à determinada base eleitoral.

Entretanto, o crescente alcance do negacionismo não é um acidente histórico. Em 2021, tratei em parceria com Leonardo Sacramento da relação de reforço mútuo e de convergência ativa entre negacionismo e racionalidade neoliberal – texto publicado neste blog e no site A Terra é Redonda. Como dissemos no referido artigo: “[...] o neoliberal precisa negar a História e o saber científico contextualizado porque seus fundamentos não resistem à análise séria dos fatos.” Os componentes da racionalidade neoliberal dependem de uma base a-histórica, da negação de verdades sistêmicas e da manipulação das noções de razão, identidade e objetividade. Caso contrário, não seria possível sustentar o neoliberalismo como doutrina. Hayek[ii] teoriza que há uma esfera natural, uma esfera artificial produzida pela iniciativa humana e ambas são intermediadas por uma ordem espontânea (nem natural nem artificial) oriunda de ação humana livre de desígnio. O mercado, parte dessa ordem espontânea, teria sido instituído independente de vontade ou intencionalidade e atuaria como instância reguladora capaz de corrigir problemas sociais.

A ortodoxia como orientação da política econômica é sustentada pela crença na capacidade do mercado resolver as grandes questões humanas, cabendo ao Estado conferir previsibilidade aos agentes e definir com clareza os parâmetros garantidores da liberdade econômica. Com isso, as políticas públicas passam a ser focalizadas e os investimentos públicos limitados nas áreas sociais pelo temor do déficit. Logo, a submissão das necessidades humanas aos interesses econômicos, preconizada pela doutrina neoliberal, deve estar no centro das discussões para compreender a gravidade de tragédias relacionadas a fenômenos naturais.

O Governo Dilma Rousseff (2011-2016), desde a tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro (2011), estimulou pesquisas e aumentou investimentos em prevenção e reação às tragédias climáticas, resultando na modernização dos sistemas de Defesa Civil no Brasil. O mesmo governo financiou uma série de estudos para projetar os impactos das mudanças climáticas no Brasil. Era o programa Brasil 2040, iniciado em 2013, cujas pesquisas custaram R$3,5 milhões e identificaram a tendência de chuvas acima do normal na região Sul e escassez no Norte do país. No entanto, o início do segundo mandato de Dilma marcou a capitulação total à ortodoxia neoliberal de Joaquim Levy, levando ao abandono do programa em 2015.[iii] O Ministério do Meio Ambiente atual, liderado por Marina Silva, demonstrou a intenção de retomar o programa.

Passamos pelos governos Temer e Bolsonaro, convivendo com eventos que demonstraram a gravidade das mudanças climáticas, sem qualquer projeto ou programa preventivo. Ainda mais grave é que os recursos federais para a prevenção de enchentes encolheram 80% desde 2015, quando a ortodoxia neoliberal retomou a hegemonia sobre a política econômica sem oposição. Para ser mais direto, o orçamento para esta finalidade foi R$6,8 bilhões em 2014, com o neoliberal Levy caiu para R$2,9 bilhões. Chegando a R$1,6 em 2019 e R$1,3 bilhões em 2021 e 2022 sob Guedes/Bolsonaro. O orçamento executado em 2023, enviado ao Congresso por Guedes/Bolsonaro, previu R$1,4 bilhões para 2023. O atual governo elevou para R$2,6 bilhões o orçamento para prevenção de enchentes de 2024.[iv] Ainda assim, muito longe do patamar de 2014. Ou seja, a fúria do clima é agravada pela sanha do mercado financeiro sobre o orçamento público com a conivência de governos que aceitam que as necessidades humanas sejam submetidas aos interesses rentistas.

Não ficam atrás os governos estaduais e as prefeituras gaúchas. Eduardo Leite não só reduziu recursos para prevenção, como também retirou praticamente todo o orçamento para investimento nas Defesas Civis, enfraquecendo a capacidade de resposta em situações emergenciais como essa. Paradoxalmente, um ávido defensor do neoliberalismo justifica que a dívida do estado limita os recursos para prevenção de enchentes. Soa irônico que um neoliberal convicto reclame de um dos fundamentos da política econômica neoliberal. Ademais, Leite tenta desvincular a tragédia das alterações de 480 normas do Código Ambiental estadual feitas por sua gestão em 2019 e alinhadas à política ambiental federal de Ricardo Salles/Bolsonaro. Novamente, as necessidades humanas foram submetidas a interesses econômicos. Sobre isso:

O diretor científico e técnico da Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural), Francisco Milanez, nega que a sociedade civil e entidades ambientalistas tenham participado da construção do novo código. Biólogo e pós-graduado em análise de impacto ambiental, ele afirma que as mudanças foram tomadas de forma unilateral, encabeçadas pelo governador [...] Milanez conta que o antigo Código Ambiental levou quase dez anos para ser elaborado e a primeira tentativa de mudança, a pedido de Leite, era em regime de urgência, mas foi impedida pela Justiça. O processo então ocorreu 75 dias depois com a aprovação da Assembleia Legislativa [...] A legislação original foi construída, segundo ele, em conjunto com as federações das indústrias e da agricultura, entidades ambientais e sociedade civil [...] Milanez critica também a sanção do governador, neste ano, de lei que flexibiliza a construção de barragens e outros reservatórios de água dentro de áreas de proteção permanente. De acordo com o ambientalista, essa medida é preocupante por poder afetar o fluxo natural da água, o que pode gerar cheias de rios e chuvas mais concentradas.[v]

Na mesma linha, o prefeito bolsonarista de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB-RS), e seu vice, que presta serviços para  a produtora negacionista Brasil Paralelo, zeraram os recursos para prevenção de enchentes em 2023. Melo justifica que, apesar do que consta no Portal da Transparência, os gastos para evitar enchentes são transversais e cita outras obras que teriam efeito preventivo realizados pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). Contudo, não explicou o impacto da redução de 47,6% na força de trabalho do setor (de 2.049 para 1.072 servidores). A precarização em um serviço público muitas vezes antecede um processo de privatização e, com menos servidores, menos recursos e pressão para superávit (embora não seja ainda uma empresa privada), o resultado é:

Pesquisadores confirmam que a falta de manutenção colocou o sistema de prevenção em risco. Parafusos, borrachas e trilhos se deterioraram ao longo da estrutura de proteção. “Não é uma crença, é uma constatação. Falta manutenção no sistema.” (Fernando Dornelles, professor e doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da UFRGS).[vi]

Sem qualquer autocrítica, porta-vozes dos agentes do mercado financeiro na imprensa brasileira não deixaram de cobrar pela meta fiscal e de fazer prognósticos ameaçadores em caso de aumento do déficit.[vii] Novamente, segundo esses porta-vozes, os balizadores do conteúdo e da forma de socorro ao Rio Grande do Sul deveriam estar submetidos aos compromissos ortodoxos definidos pelos agentes financeiros. Que, aliás, estavam satisfeitos com a fidelidade de Eduardo Leite a esses compromissos, garantindo três anos de vigorosos superávits nas contas públicas estaduais: em 2021, foram R$2,54 bilhões; em 2022, R$3,34 bilhões; e R$3,61 em 2023.[viii] Esses bilhões foram alcançados por meio de reformas, privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) e muita restrição nos investimentos sociais - incluindo prevenção às enchentes e verbas de custeio e investimento à Defesa Civil, como vimos.

É necessário investigar os atos e omissões que ampliaram o drama da população. Além disso, é preciso compreender as razões para que a mobilização e a comoção em torno desse triste episódio tenham sido muito maiores que outras tragédias causadas pela chuva. Respeitosamente, é necessário entender o nível e os determinantes da comoção a despeito de tragédias serem sempre dramáticas, incomparáveis e não hierarquizáveis.

Voltando ao Rio Grande do Sul: até esse momento, foram 116 mortos, 756 feridos, 143 desaparecidos e mais de 400 mil pessoas fora de suas casas nas enchentes do Rio Grande do Sul. Em 2011, foram 900 mortos e mais de 35 mil desabrigados na Região Serrana do Rio de Janeiro. Em 1967, deslizamentos em Caraguatatuba (SP) mataram entre 450 e 500 pessoas. No mesmo ano, deslizamentos mataram 300 pessoas e feriram mais de 25 mil no Rio de Janeiro. Recentemente, foram 241 mortos em deslizamentos em Petrópolis (RJ) em 2022. Há, pelo menos, três especificidades que devem ser consideradas.

1) Duração. As tragédias com mais mortos foram eventos súbitos cuja destruição ocorreu de modo concentrado em um dia ou período de dia. A tragédia do Rio Grande do Sul é uma daquelas em que o drama se prolonga por dias e dias. Esse tipo de situação é menos comum, como os 129 mortos na região metropolitana do Recife e zona da mata de Pernambuco em maio de 2022 e os 74 mortos no estado de Minas Gerais em janeiro de 2020.

2) Extensão. A dimensão já impactada no Rio Grande do Sul é inédita, o que mais se aproxima é o acontecimento de Minas Gerais (2020). Na ocasião, mais de 256 cidades decretaram estado de emergência ou calamidade pública e 53 mil pessoas foram afetadas (desalojadas, desabrigadas e feridas). Até o momento, 437 dos 497 municípios gaúchos e mais de 1,9 milhões de pessoas foram afetados. Ou seja, quase todo estado está debaixo d’água e isso demanda muito mais mobilização externa (outros estados, governo federal e até países vizinhos) para enfrentar a situação.

3) Perfil Social. Até pela extensão, essa tragédia coloca todo e qualquer brasileiro à frente do espelho. Não se trata mais de impactos circunscritos às habitações em área de risco (margens e proximidades de rios, encostas de morro, etc.) que, quase sempre, concentram as vítimas em determinados grupos sociais empobrecidos e marginalizados. No Rio Grande do Sul, um dos técnicos de futebol mais bem pago do país precisou ser resgatado no hotel em que reside, jogadores de futebol de clubes da Série A (Grêmio, Internacional e Juventude) tiveram suas casas inundadas, deputado estadual negacionista fez vídeos mostrando que a rua de sua casa se tornou um rio, estádios de futebol, centro de treinamento, aeroporto, pontes e rodovias foram alagados e/ou destruídos pela força das águas.

Estamos, portanto, diante de um evento cuja duração já está entre as maiores e ainda não temos previsão de solução, a quantidade de municípios afetados é maior e atinge quase todo o estado e, dessa vez, as vítimas não se restringem quase exclusivamente aos pobres, cuja ineficiência das políticas públicas e a negligência das autoridades já foram normalizadas.

Dessa vez, todos fomos obrigados a olhar no espelho e, em tese, deveríamos nos sentir impelidos a refletir sobre a importância da ciência e os riscos da atual dinâmica da apropriação econômica. Tais análises sistêmicas ocorrerão minoritariamente, mas não devemos nos furtar de, pelo menos, elaborar uma questão mais imediata: depois da pandemia, de Mariana (MG) e de diversas tragédias relacionadas às chuvas, quantas cidades mais irão submergir e quantos corpos mais vamos procurar até compreender a inconsequência das políticas neoliberais que paralisam as funções sociais do Estado?

 

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*Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia"


[i] Citação extraída do artigo “Memória e Sociedade: uma breve discussão teórica sobre memória social”, publicado na Revista Espaço Plural, disponível em: https://saber.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/483/397

[ii] Livro O caminho da Servidão, lido na versão em espanhol: El camino de la servidumbre, Alianza Editorial, 2007.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

 

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Precisamos de um cordão sanitário contra o bolsonarismo – uma resposta a Joel Pinheiro da Fonseca

George Gomes Coutinho**

No último 29 de abril a Folha de São Paulo publicou o artigo de opinião de Joel Pinheiro da Fonseca intitulado “Precisamos do bolsonarismo moderado”[1]. O texto causou rebuliço pelo oxímoro escandalosamente defendido, onde as palavras “bolsonarismo” e “moderado” se atracaram em constrangedora conjunção. Diversas reações ocorreram desde então. Impropérios, ridicularização, demonstrações de estupor, ataques ad hominem... Porém me proponho a levar a sério o texto de Joel e, acredito, o conteúdo do seu texto pode nos levar a considerações sobre a atual conjuntura política brasileira em geral e sobre a direita nativa em particular. Vamos por pontos.

Primeiramente, a publicação do texto de Joel é sintoma e não a doença. Joel tem em sua biografia polêmicas como o debate sobre a venda de órgãos, onde já se posicionou favoravelmente e agora se demonstra arrependido[2]. Talvez Joel tenha se sentido moralmente autorizado a discutir o tema em uma sociedade das mais desiguais do planeta Terra. Poderia ser, quem sabe e na melhor das hipóteses, um excelente negócio. A despeito de suas motivações, por vezes que demonstram ser a de um adicto por click bait, a trajetória de Joel tem sido marcada por posicionamentos por vezes moralmente repugnantes e apresentados em uma embalagem cool. Tratam-se, em muitas ocasiões, de demonstrações de uma suposta “ousadia” intelectual de uma direita “sem tabus” e com ares de ser “descolada”. A questão é que seus argumentos, quase sempre, não resistem a um exame crítico minimamente detido. Nos cabe perguntar: qual a razão de sua presença cativa em um dos maiores jornais do país? Joel, em minha perspectiva, é sintoma do “doisladismo”.

Há anos, em decorrência das mudanças ocorridas no ecossistema de comunicação, as diferentes expressões da mídia tradicional, sejam jornais, revistas semanais ou canais de TV, foram arrastadas pelos novos influxos comunicativos e, de alguma maneira, acharam que era uma boa ideia emular e reverberar as redes sociais. Na atual tribalização de nossa sociedade, importa é “representatividade” dos grupos em disputa de narrativas. Ok, sociedades democráticas são complexas e plurais. É importante que a mídia represente esta diversidade. O problema é que na filosofia do “doisladismo” importa é dar espaço aos supostos representantes dos “dois lados” da contenda, a despeito da qualidade dos argumentos que apresentem. Rinhas televisivas constrangedoras fizeram grande sucesso utilizando essa fórmula. E é assim que nos deparamos com textos como os de Joel, que muitas vezes poderiam estar muito bem recepcionados no jornalzinho da chapa conservadora da faculdade que ganhou as eleições para o Centro Acadêmico.

 O problema não é ser liberal e de direita. O problema é falar asneiras e não contribuir efetivamente com uma opinião pública de qualidade onde os problemas de um país no capitalismo periférico precisam ser discutidos com a seriedade que merecem. E, para além disso, a única coisa que o doisladismo produziu é a naturalização e propagação de argumentos e posicionamentos onde o termo “duvidoso” é apenas um eufemismo. Mais um demérito, de uma listagem de centenas, da Folha de São Paulo. O problema é que a Folha não está sozinha nesta mistificação do que seja um debate de interesse público.

Dando seguimento, essa aproximação submissa de Joel com o bolsonarismo segue longa tradição dos liberais de direita[3] do século XX em flerte com os autoritários em geral. Vejamos o que Grégoire Chamayou nos diz sobre a sabujice de um dos maiores representantes desta vertente política:

Salazar toma o poder em Portugal. Hayek envia-lhe seu projeto de constituição com palavras gentis. Os generais dominam a Argentina, ele vai até lá dar uma sondada. Pinochet derrama sangue no Chile, lá vai ele de novo. Um boicote se lança contra a África do Sul, Hayek pega a pena para defender o regime, e assim por diante. Toda vez (ou quase sempre) que ele se acha numa situação histórica em que, precisamente, ‘por reação contra as tendências socialistas’, um regime ditatorial se impõe, ele se apressa em oferecer seus conselhos.” (Chamayou, 2020: 347-348)

De alguma maneira o desalentado Joel, por representar uma direita sem voto na conjuntura onde ele diagnostica termos um governo de esquerda[4], igualmente se apressou em ofertar conselhos ao bolsonarismo. De olho no capital eleitoral que não tem, sugeriu um caminho maroto de “moderação”. Oras, quem sabe não teremos aí um racismo de baixos teores? Tal como Bolsonaro já achou conveniente pesar quilombolas em arrobas, que tal utilizarmos outra unidade mais adequada? Que tal quilos? É moderação suficiente? E o conteúdo misógino indisfarçável inerente ao bolsonarimo onde até mesmo Michele Bolsonaro é ofuscada? O quanto de misoginia podemos moderar, sem perder a essência do movimento? Talvez um bolsonarismo com pink ou green washing, tudo para que a população LGBT ou ambientalistas possam se sentir mais à vontade quando forem tratados como párias por parte do público bolsonarista.

Com tudo isso, ainda Joel clama pelo que já existe. O NOVO está aí com seu discurso prafrentex identitário presente na boca de suas elites, seguindo com a sua base tão ogra como o rasteiro bolsonarismo fora do partido[5], e foram verdadeira correia de transmissão do governo Bolsonaro (2019-2022) na Câmara dos Deputados. Tal como Tarcísio, aquele que conseguiu uma alta produtividade em letalidade policial, os impressionantes 138% de aumento de indivíduos mortos por sua polícia[6], e se tornou muso inspirador dos jornalões como presidenciável dos sonhos para 2026. O que há de moderação? Um verniz nos bons modos, seja em Tarcísio ou o NOVO, e todos aliados de uma agenda de livre mercado dentro do que as elites econômicas locais, sejam no Agro ou na Faria Lima, assim o consideram: um projeto de acumulação sem constrangimentos como direitos, tributação, etc.. Um velho oeste distópico em que liberdade boa é a exploração sem limites e a formação de paraísos fiscais exclusivos para ricos. É barbárie? É, tanto quanto no bolsonarismo raiz! Só que sem camisa falsificada do Palmeiras e pão fatiado com leite condensado.

Com tudo isso, não enxergando o “bolsonarismo moderado realmente existente”, Joel sofre ainda da falta da decência dos que tiveram peito e bancaram a lógica do cordão sanitário.

Alemães, diante do crescimento eleitoral da AfD, o partido com tonalidades xenófobas e parentesco com o neonazismo, portugueses ante o desprezível Chega, e até mesmo diversos setores concorrentes na Espanha diante do VOX, decidiram adotar por princípio não se amalgamarem com essas forças extremistas a despeito de sua capacidade eleitoral. É o cordão sanitário. Com fascistas e assemelhados, não confraternizamos. Combatemos e isolamos. Com todos os senões, foi o que João Dória, do slogan “Bolsodória” de triste memória, optou por fazer individualmente. Deu combate quando viu que a coisa estava fora do controle. Igualmente na direita democrática que Joel não se vê representado, nomes como Alckmin, Simone Tebet, ao invés de tentarem “moderar” o bolsonarismo, embarcaram no governo federal de Frente Ampla de Lula 3.

Não foi uma saída pelo oportunismo eleitoral caroneiro do bolsonarismo replicado em todo território nacional, algo visível até mesmo nestas eleições de 2024. Oportunismo este reforçado pelos argumentos sem vergonha de clamor de moderação apresentados por Joel. Mas, não, não é possível moderar o que se constituiu enquanto discurso de ódio amplificado pela arquitetura das redes sociais. Enfim. O jovem Joel já envelheceu mal.

Referências:

CHAMAYOU, Grégoire. A sociedade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário.  São Paulo: Ubu, 2020.

* Disponível em: https://vermelho.org.br/coluna/terrorismo-como-tatica-politica-de-bolsonaro/, acesso em 06 de maio de 2024.

** Professor Associado da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos.



[3] Pode causar estranhamento ao leitor menos familiarizado com a história das ideias políticas. Mas, não custa lembrar que há um liberalismo progressista que congrega de Hobhouse a John Dewey. Sim, há uma esquerda liberal.

[4] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joel-pinheiro-da-fonseca/2024/04/como-e-que-o-brasil-e-de-direita-e-lula-esta-no-poder.shtml, acesso em 06 de maio de 2024. Penso que seria de bom alvitre Joel ouvir o experiente Zé Dirceu que considera Lula 3 um governo mais para a centro direita. Para detalhes desta perspectiva, ver aqui: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/04/22/jose-dirceu-governo-lula-centro-direita.htm, acesso em 06 de maio de 2024. Particularmente, entre Joel e Zé, fico com o último.

[5] Vale dizer que a turma do LIVRES também vive esses constrangimentos. Por vezes seus dirigentes tentam emplacar um discurso mais aberto na pauta de costumes e são esculhambados por suas próprias bases.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Relembrando os ataques à Vai-Vai após o Carnaval 2024 - A estigmatização da cultura popular como arma da especulação imobiliária

Colagem sem alteração das imagens originais 
(Fontes: imagem superior à esquerda da GRCSES Vai-Vai; foto do cartaz Quilombo Saracura de Paulo Santiago de Augustinis/Lugares de Memória; foto de pessoas protestando de Elton Santana/ECOA/UOL; foto na frente da antiga quadra da Vai-Vai; a imagem do projeto da Estação 14 Bis do Metrô CPTM).

 

"E alli vão morrendo aos poucos, - sacrificados pela propria liberdade que não souberam gosar, recosidos pelo alcool e estertorando nas angustias do brightismo [termo genérico para doenças nos rins] que os dizima, eliminados pela elaboração anthropologica da nova raça paulista - os que vieram nos navios negreiros, que plantaram o café, que cevaram este solo de suór e lagrimas, accumulados alli, como o rebutalho da cidade, no fundo lobrego de um valle" (sic). (Fragmento de "A Saracura" publicado em 09/10/1907 na seção Factos Diversos do Correio Paulistano, sobre a comunidade negra do Bixiga).


Jefferson Nascimento*


1. Preâmbulo ao texto original

No início do século passado, o entorno do rio Saracura era caracterizado como parte sombria de um vale e era habitado por indivíduos "sacrificados pela propria liberdade" e que seriam "eliminados pela elaboração anthropologica da nova raça paulista" (sic). A área na região da atual Bela Vista era, na verdade, habitada por pessoas que lutaram pela sua liberdade formando o Quilombo do Saracura, que superaram a escravidão e foram preteridas na composição da mão-de-obra assalariada em favor de imigrantes, atraídos também para fins da política estatal de branqueamento. 

                                                                                                      
Imagens do Vale do Saracura (Fonte: Museu da Saúde Pública / Instituto Bixiga)[v]

Hoje, a região passou a ser caracterizada como a "Bela Vista: diversa e boa de negócio", cuja matéria do "Imóveis de Valor" começa assim:

Tem metrô perto? Tem, a Linha Verde e, futuramente, a Linha Laranja [refere-se à Estação 14 que está sendo construída e que gerou a desapropriação da Quadra da Vai-Vai]. Fica próximo de eixo financeiro? Sim: a Avenida Paulista. E se precisar de hospital? Há pelo menos sete que são referências nacionais. Mas, na hora de relaxar, quais as opções? Três shopping centers, bares, restaurantes, centros culturais e o Masp. Tudo isso fica no bairro da Bela Vista, na região central da capital, cuja diversidade de público e de atrações tem captado a atenção do setor imobiliário.

Essa mudança de perspectiva não ocorre sem embates. Antes, vou contextualizar a temática partindo de um dado debatido por Renato Nucci Júnior, em "Marielle Franco - mártir da luta pela terra", publicado no site A Terra é Redonda: estamos diante de uma escalada dos antagonismos pela terra, resultando em "[...] 358 mil conflitos urbanos e rurais", segundo a Campanha Despejo Zero e o Mapeamento Nacional dos Conflitos por Terra e Moradia. Nas palavras do autor, a causa é a oposição dos "[...] interesses do latifúndio, nas áreas rurais, e da especulação imobiliária, nas áreas urbanas, aos interesses das massas trabalhadoras."

No Rio de Janeiro, o avanço das milícias sobre terrenos e imóveis urbanos é a causa (ou uma das principais causas) para a encomenda do crime que resultou na morte de Marielle Franco e Anderson Gomes pelos irmãos Chiquinho e Domingos Brazão. Como bem enfatizou Renato Nucci Júnior no texto supracitado, esse crime precisa ser compreendido também a luz da escalada dos conflitos fundiários, a despeito de a mídia priorizar a corrupção e o sequestro das instituições políticas pelo crime organizado. 

Em São Paulo, agentes desses interesses usam também outras estratégias, viabilizadas pelo aparelhamento do Poder Público para avançar sobre populações vulneráveis para realizar ganhos via especulação imobiliária. São exemplos: (1) deslegitimação da atividade pastoral do Padre Júlio Lancelloti em socorro às pessoas carentes e moradores de rua pela base bolsonarista e neoliberal na Câmara dos Vereadores e nas redes sociais, para favorecer a remoção dessas populações e "valorizar" determinadas áreas de interesse; (2) medidas de prefeitos e governadores, por meio da Guarda Civil Metropolitana e/ou da Polícia Militar, para operações violentas e higienistas contra dependentes químicos da (ou das) Cracolândia(s); (3) concessões de parques e espaços públicos à iniciativa privada - tal como denunciou o Blog do Paulinho, a polêmica e obscura outorga do Pacaembu ao consórcio presidido por Rafael Carneiro Bastos, que é sobrinho de Reinaldo Carneiro Bastos (presidente da FPF - Federação Paulista de Futebol) e casado com uma sobrinha de Gilberto Kassab (ex-prefeito da capital paulista e presidente do PSD - Partido Social Democrático); e (4) o ataque coordenado de autoridades e importantes veículos da imprensa paulista contra a GRCSES - Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai.

O último (4) é objeto deste texto e se refere à realização de interesses imobiliários na região da Bela Vista. Para tal, o ataque à memória da população negra paulistana, cujo Quilombo da Saracura foi importante instrumento de luta e de constituição da identidade, é complementado pela ofensiva contra os vínculos comunitários e pelo deslocamento de organizações e entidades que fomentam a cultural popular local, como a Vai-Vai.

O texto que reproduzo a seguir foi publicado originalmente em 20 de fevereiro de 2024, na Seção Cultural da Nota Semanal de Conjuntura (n° 7 – Ano VI) da Arma da Crítica[i]Da publicação até agora, algumas coisas ficaram mais evidentes. 

A Folha admitiu em 14 de fevereiro[ii], embora sem a mesma publicidade dada aos ataques, que as negociações para a construção da Estação 14 Bis e a reparação paga pela Acciona foram ruins para a Escola. Afinal, o Ministério Público entrou na justiça para impedir a construção da nova quadra alegando se tratar de uma “Zona Especial de Interesse Social - 3” (ZEIS-3), o que obriga a construção de moradias populares em 60% da área. Logo, a Vai-Vai pode não conseguir construir sua quadra na Bela Vista mesmo aceitando torná-la apenas sede social, deixando os ensaios para outro local. A Folha também reconheceu que a Escola indicou 03 (três) terrenos que poderiam ser compradas pela Acciona para o ressarcimento e o lote da polêmica foi comprado porque os outros proprietários não quiseram negociar. Ao contrário do que dava a entender na época, a escola não direcionou o consórcio para uma transação favorável a Luiz Roberto Marcondes Machado de Barros (Beto Bela Vista); a agremiação apenas indicou três áreas compatíveis com a construção da nova quadra. 

Veja, não se trata de escolher a Escola em detrimento de moradias populares, é justamente questionar essa falsa oposição entre cultura e habitação. Seria possível construir a mesma quantidade de moradias em outros terrenos ou em edificações subutilizadas da região - claro, isso incomodaria a especulação imobiliária. Seria possível ainda ressarcir a Escola com outro terreno na mesma região, melhorando as propostas aos proprietários das outras áreas indicadas por ela ou realizando a desapropriação de uma por interesse público e indenização justa. Em todo caso, é importante lembrar que as dificuldades para licenças acompanharam todo o processo e quando da revisão do Plano Diretor em 2023 todos atores envolvidos sabiam da homologação do acordo entre Acciona e Vai-Vai. Perguntar não ofende: não há terrenos e edifícios subutilizados que possam compensar o número de moradias em caso de construção da quadra? Nenhum órgão do Poder Público considerou o direito à cultura, por meio da Vai-Vai? Se a questão do zoneamento é favorecer a permanência das pessoas pobres em lugares que possuem vínculos, garantir meios para a cultura popular não é importante e dependente de áreas para tal? Ou ignorar a história de desapropriações da Escola, seu vínculo comunitário e o acordo de ressarcimento sem um alerta para a adequação do zoneamento cumprem outros interesses?

Terreno adquirido pela Acciona para ressarcir a desapropriação da quadra da Vai-Vai. Segundo ação do MP, área fica em zona especial de interesse social (imagem: Zanone Fraissat/Folhapress). 

As respostas para as perguntas acima sempre serão formuladas de acordo com o interesse dos interlocutores, mas o fato é que tudo isso era conhecido, debatido e ainda foi alertado em novembro de 2023 por líderes comunitários, dirigentes da escola na reunião 20393 (audiência pública da Revisão da Lei de Zoneamento do Bixiga/Bela Vista). Não é banal, porém, que a Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente fosse (e ainda seja) presidida pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), o mesmo que liderou os ataques ao Padre Júlio Lancellotti.

2. Introdução

No documentário Enquanto a tristeza não vem, o músico Sérgio Ricardo (1932-2020) disse “[...] quem se esclarece da própria cultura tem cidadania, é um sujeito emancipado, ele sabe o que é o seu país”. Analisando música, teatro e cinema, o artista via na Ditadura Civil-Militar (1964-1985), a partir do AI-5, o momento de erosão do elo entre o povo brasileiro e as manifestações artísticas críticas ao status quo. O processo não foi revertido com a redemocratização, apesar de exceções resistentes à indústria cultural.

Ampliando a análise, o carnaval é exceção; logo, alvo nos ataques à cultura popular. No podcast Lado B, Luiz Simas mencionou a construção do Estado-nação brasileiro visando “desarticular sentidos coletivos de vida e aniquilar as culturas não-brancas”, enquanto o carnaval está entre as manifestações de construção dos sentidos dos excluídos, sendo “[...] a vitória da brasilidade sobre o Brasil”. Por isso, é bombardeado pela (1) negação da legitimidade e demonização de seus componentes e manifestações; e (2) cooptação e ocupação via “arenização” dos sambódromos[iii], enredos comprados e uso eleitoral de escolas, como o clã Abraão David (hoje no PL-RJ) faz com a Beija-Flor de Nilópolis, Milton Leite (União Brasil-SP) faz com a Estrela do Terceiro Milênio e Helder Barbalho (MDB-PA) negocia para fazer da Grande Rio um instrumento ad-hoc.

Por isso, a reação coordenada a uma das alas do GRCSES Vai-Vai no Carnaval deste ano em São Paulo precisa ser entendida a partir de poderosos interesses econômicos. Nesse ínterim, é necessário adicionar informações à cobertura do principal veículo de imprensa a afirmar vínculos da Vai-Vai com o crime organizado, o Grupo Folha/UOL.

 

        3. O que a Folha não dizia

Escolas de samba são associações civis com disputas políticas internas. O investigado Luiz Roberto Marcondes Machado de Barros (Beto Bela Vista), residente e empresário no bairro, foi diretor da Vai-Vai, eleito pela comunidade quando a agremiação era presidida por Darly Silva (2010-2019). Em 2020, devido à crise, a administração da Escola passou para um conselho gestor, presidido pela Dra. Anna Maria Gilbert Finestres em 2020 e Clarício Gonçalves em 2021. A atual gestão de Clarício foi eleita em 2022, quando terminou o mandato de Beto Bela Vista. As investigações verificam se Beto é um dos líderes do núcleo externo aos presídios do PCC, o que ele e sua defesa negam. O empréstimo[iv], que provaria o vínculo da escola com o crime, foi para o carnaval de 2022 e consta em investigação da Polícia Civil e do Ministério Público. A investigação não é nova e o dinheiro não tem relação com o enredo de 2024.

 

        4. O que a Folha disse só no final ou com pouca ênfase

Várias pessoas e empresas emprestaram dinheiro para a Escola em crise, que acabou rebaixada em 2022. Os empréstimos foram registrados em cartório, membros do conselho e o presidente deram depoimentos e apresentaram documentos. Outra linha para investigar a escola "como reduto do PCC" foi o terreno para construção a nova quadra. Paira a dúvida se Beto Bela Vista – ex-proprietário – lavou dinheiro na compra realizada em espécie por R$ 2,8 milhões. Entre a aquisição por Beto Bela Vista e a venda por R$ 6,8 milhões decorreu quase um ano. Houve insatisfação entre associados quando souberam quem vendeu o lote para a Acciona e que o caráter residencial do local permitiria, no máximo, atividades sociais e não ensaios para o carnaval. No momento, a sede da escola está na quadra emprestada pelo Sindicato dos Bancários, próxima à praça da Sé (imagens abaixo).


 
Parte interna da Quadra do Sindicato dos Bancários (fonte: Vai-Vai); parte externa na Rua Tabatinguera n° 192 (imagem gerada pelo Google Maps).

 

         5. Contexto

A Bela Vista, que engloba o Bixiga, nasceu de uma fazenda e lá existiu o Quilombo do Córrego Saracura. A região foi ocupada por ex-escravizados no século XIX e depois por imigrantes italianos empregados nas fábricas próximas. 

  
Imagens do Documento do IPHAN, disponível na matéria Sylvia Leite para o site Lugares de Memória.[vi]

Na década de 1920, um grupo de amigos animava festas e jogos de futebol do Cai-Cai, clube alvinegro sediado no Bixiga, que mandava seus jogos em campos de várzea próximo ao Rio Saracura. Em 1930, desse grupo veio a oficialização do Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae.

Campo de Várzea do Vale do Saracura (Fonte: Museu da Cidade de São Paulo / Instituto Bixiga)[vii]

  

Em que pese ter se tornado Escola de Samba Vai-Vai em 1972, a agremiação se fazia presente na Bela Vista/Bixiga como importante entidade cultural desde 1930. Isto é, antes do TBC - Teatro Brasileiro de Comédia (1948) que trouxe o aspecto boêmio do distrito. A primeira sede da Vai-Vai era uma casa, que foi desapropriada para construção do Minhocão em 1972, mudando para a antiga quadra escola, na Rua São Vicente n° 276 – desapropriada em 2021 para construção da nova estação 14 Bis da Linha Laranja do Metrô.[viii]


 Imagens da quadra da Rua São Vicente n° 276, desapropriada em 2021 para a construção da Estação de 14 Bis (imagem superior: Edson Lopes Jr./UOL; imagem inferior: Wadson Henrique/SRzd).


A desapropriação envolveu um acordo: a empresa Acciona, responsável pela obra, deveria comprar o terreno para a escola construir a quadra. No entanto, a Vai-Vai ainda não obteve as autorizações para construir e, caso consiga, não poderá fazer ensaios de carnaval, que antes ocorriam nas ruas da Bela Vista. A Prefeitura de São Paulo ofereceu outro terreno na Marginal Tietê. A “generosidade” daria espaço para a Arena Vai-Vai, onde poderia realizar as atividades típicas de carnaval. Claro, seria esperar muito que a Folha questionasse o motivo das autorizações não terem saído ainda.

 Hoje, a Bela Vista é uma região central atrativa, onde ricos do Morro dos Ingleses, points da gastronomia italiana e classe média dividem espaço com remanescentes operários e negros. Veja as imagens abaixo:

As imagens acima constam na matéria "Bela Vista: diversa e boa de negócio"

Conversei com uma pessoa vinculada à escola há mais de 40 anos, antes das escolas de Torcidas Organizadas adquirirem a força atual. Na família dela há membros da Vai-Vai e da Rosas de Ouro. Os pais, que também torcem e participaram da Vai-Vai, moravam na Bela Vista e possuía familiares (tios e primos) na Brasilândia e na Bela Vista. Devido à mudança no mercado imobiliário hoje a família se divide entre Perus e o município de Caieiras. Essa modificação do padrão social e étnico da Bela Vista tem relação com a desapropriação da Vai-Vai, que desagrada frações burguesas da especulação imobiliária.

A Rosas, citada antes, nasceu na Brasilândia, distrito historicamente composto por conjuntos habitacionais e classes populares, que vive um processo de mudança no perfil populacional. Hoje, aumentam os bairros de classe média no distrito. A Rosas se mudou há algumas décadas para a Freguesia do Ó, perto da Marginal Tietê e do Sambódromo do Anhembi. Neste caso, não tão longe da Brasilândia.

Diferente do Rio de Janeiro, as escolas de torcida ganharam força em São Paulo também porque parte das escolas tradicionais foram separadas de sua comunidade original e levadas (pela especulação e pela localização do Sambódromo) a sair de seus bairros para as proximidades da Marginal Tietê. A Vai-Vai, chamada de "A mais popular", resiste ao processo buscando audiência até com Governo Federal para permanecer no local original. Nos anos 1990 e 2000, sua alcunha mais usada era "Saracura" e hoje enfatiza Bela Vista - onde quer permanecer apesar da especulação imobiliária.

É óbvio que quaisquer indícios de atividade criminosa devem ser investigados. Escuto pesquisadores sérios há décadas alertando possíveis vínculos do crime organizado com escolas de samba, como ocorre com postos de gasolina, bares e restaurantes, transporte alternativo, etc. O problema não é que a Vai-Vai seja investigada. Ela foi. Soa estranho que o tema volte à mídia supostamente em reação à crítica à polícia (abaixo, imagem da ala). Sejamos justos, críticas feitas a partir da interpretação e do contexto do álbum "Sobrevivendo ao Inferno". Não parece oportunismo usar o enredo para falar em desapropriar a escola novamente? Se algum gestor permitiu relações perniciosas, a agremiação toda deve ser inviabilizada ou o indivíduo deveria ser punido?


 Acima, foto da ala crítica às ações policias que desencadeou reações (fonte: Marcello Fim/ Zimel Press/ Estadão Conteúdo); abaixo, colagens com fotos do desfile de minha autoria.

 

        6. Resumindo

Faço um adendo à versão original do texto recorrendo novamente à análise de Renato Nucci Júnior sobre o contexto para ressaltar que os ataques à Vai-Vai não é uma mera discordância ao enredo.

O atual estágio da acumulação capitalista no Brasil, apoiado na agromineração exportadora e na especulação imobiliária, ambos conectados de diferentes formas ao sistema financeiro nacional e internacional, necessita ampliar o monopólio do capital sobre a terra e os recursos naturais. O resultado é o permanente conflito entre latifúndio urbano e rural de um lado e, de outro, camponeses, posseiros, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e moradores em habitações irregulares nas cidades.

Essa investida tem a mesma raiz da opugnação aos trabalhos do Padre Júlio Lancelotti: a especulação imobiliária politicamente representada por bolsonaristas e neoliberais. Logo, a adesão da Folha (menos enfática no caso Lancellotti pela questão religiosa) e a coincidência da linha de frente política com a base de Ricardo Nunes e de Tarcísio de Freitas não surpreendem e mostram que não é trivial que Meyer Nigri, fundador da Tecnisa e apoiador de Tarcísio, seja um dos empresários investigados por incitar o golpe de Bolsonaro. A Tecnisa e outras várias empresas do ramo lucram com a compra de terrenos para construção de condomínios (apartamentos, salas comerciais e estúdios) em regiões atrativas de São Paulo. 

A região da Bela Vista atualmente é uma dessas áreas atrativas, inclusive o Bixiga nas proximidades do Saracura, que outrora era caracterizado pela elite paulistana como "fundo lobrego de um valle" (sic). Falta, no entanto, remover as pessoas que deram vida à região - obra que a "elaboração anthropologica da nova raça paulista" (sic) não foi capaz de realizar - e resistem mesmo com as diversas ofensivas econômicas, ousando cultivar memória, declarar sua identidade cultural e reclamar o direito de ser e estar em seu lugar. Para isso, os agentes da especulação imobiliária entendem que é preciso atingir a Escola de Samba, que fortalece a vida comunitária e ajuda as pessoas a resistirem. Enfrentar o projeto de aniquilação das culturas não-brancas é uma das trincheiras populares contra aqueles que pretendem, para realizar seus interesses políticos e/ou econômicos, a hegemonia do Brasil “oficial” e o carnaval – gostem ou não – está nesse front.

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* Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política pela UFSCar, professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e autor do livro Ellen Wood: a luta pela democracia e o resgate da classe (Appris).



[iii] O termo, usado por Simas no podcast Lado B, remete a um processo similar ao ocorrido nos estádios de futebol brasileiros marcado pela redução de espaços acessíveis às classes populares.

[viii] Nas obras de escavação para a estação do Metrô, há três metros de profundidade, encontraram um sítio arqueológico com objetos do Quilombo do Saracura, datados do século XIX ao início do século XX, registrados no IPHAN como de alta relevância histórica.