(Ainda)
Sobre Lula em Campos: notas sobre o ódio político - versão estendida **
George
Gomes Coutinho***
A
visita do presidente Lula em Campos no último mês de abril produziu
reverberações de diferentes naturezas. Há questões que atingem diretamente os atores
do sistema político, com ênfase nas estrelas regionais, e boas notícias para o
ensino público. Também a cidade foi citada positivamente na mídia nacional.
Afinal, não obstante o momento sombrio que meus colegas enfrentam nos EUA, que
seguem na direção do abismo da desdemocratização, a educação persiste, na
média, como pauta celebrada pela população.
É
importante notar que a inauguração dos prédios da Universidade Federal
Fluminense não foi uma festa académica. A disputada inauguração dos prédios foi
uma festa popular comemorada por milhares de pessoas no campus da UFF e nos
arredores. Foi uma celebração multipartidária e democrática, com tonalidade majoritariamente
progressista dada pela militância e pelos representantes de movimentos sociais.
Mas, ali também estavam pessoas do staff da prefeitura, colegas e estudantes do
IFF, vi amig@s da UENF, cidadãos e cidadãs comuns, ex-alun@s, tod@s prestigiando
o momento histórico para a região.
Destoou
a vaia, que não ocorreu em uníssono, no momento do discurso do prefeito
Wladimir Garotinho. Vale dizer que o próprio Lula saiu em defesa do prefeito
que, quando ainda deputado federal, protagonizou a articulação pelas verbas que
permitiram a finalização dos dois prédios de sete andares que agora constituem a
paisagem da avenida XV de Novembro. Ainda, no conteúdo do discurso de Wladimir,
não foi detectado trecho que justificasse o constrangimento. Foi vaia autoritária
com o objetivo de impedir a continuidade do discurso. Se eu reconheço que o
prefeito por vezes voluntariamente macula o próprio currículo, como no veto ao
projeto “Por uma infância sem racismo”, e também demonstra insistência em lamentáveis
investimentos de networking político cortejando quadros extremistas na direita,
em seu discurso na ocasião não havia conteúdo a ser combatido. Não que o poder
local não precise da construção de um vigoroso, propositivo e popular movimento
de oposição. Precisa muitíssimo. A questão é que este movimento precisará
demonstrar que sabe fazer algo além de vaiar. Mas, ressalto, para além da vaia,
não soube de ofensas ou ameaças à integridade física do prefeito. Algo que
decorreu no outro lado do espectro político.
A
visita do presidente atraiu outros setores que se mobilizaram. Forças da
direita distribuiíram ofensas que foram ostentadas em pichações nos muros nos
arredores do novo campus da UFF. Junto a esta ação, alguns militantes foram para
a rua da UFF no 14 de abril último, um punhado de poucos indivíduos, tentar
coagir as pessoas filmando sem autorização, ofendendo, provocando, xingando. Cheguei
cedo e vi um rapaz enrolado em uma bandeira do Brasil, até então estava solitário,
se protegendo amuado atrás de policiais militares, tal como criança medrosa
agarrada na saia da mamãe. A ele se juntaram depois outros poucos. Poucos e
ruidosos.
Um
carro emparelhou com a comitiva presidencial, antes de Lula chegar ao campus,
para ofender o presidente.
Em
dado momento, enquanto o evento ocorria, um mototaxista atropelou uma pessoa
forçando passagem em via urbana interditada por conta da cerimônia. A rua não
estava interditada para ele pessoalmente. Era para todos. A questão é que este
em particular talvez se julgasse além da lei e das regras.
Eu
mesmo, ao final de tudo quando ia embora, ao entregar uns trocados para o
flanelinha que guardava meu carro, fui chamado de “petista ladrão!”. Foi mais
um valente mototaxista que, demonstrando em sequência sua incontestável coragem,
se evadiu em alta velocidade. Não tive tempo para nenhuma reação.
Antes
de prosseguir, gostaria de salientar que em visitas de chefes de governo a
crítica é parte do cenário democrático. Grupos, movimentos, setores e até
indivíduos aproveitam o momento para tentar abrir canais de diálogo, apresentam
demandas, chamam a atenção para suas causas, protestam. É do jogo. Mas, o que
vimos foi hooliganismo.
O
hooliganismo se move com o objetivo final de eliminação do outro, tal como é no
futebol, espaço onde os hooligans foram criados. A violência, simbólica ou até
mesmo física, é mobilizada como recurso. No caso da visita de Lula estes
indivíduos não apresentaram demandas. Fizeram uso político da violência. O
curioso é que eram populares. Não sei quem foram os pichadores. Mas, vi as
pessoas que ali estavam ofendendo e xingando no dia da inauguração dos prédios
da UFF. Eram homens comuns. Os pobres de direita, como classificou o sociólogo
Jessé Souza.
Eu
consigo compreender pragmaticamente o que chamo de sócios majoritários e sócios
minoritários da extrema-direita. Defendem o que Bruno Wanderley Reis, colega da
área de ciência política da UFMG, já chamou de “agenda anti-regulatória”[1]. É o movimento de “passar
a boiada”, que consiste em retirar as proteções institucionais e jurídicas que
tentam diminuir os impactos de relações constituídas por assimetrias. O
objetivo é que o mais forte, enfim, possa predar o mais fraco sem que ninguém
tenha onde e a quem recorrer. Vale expulsar indígenas de suas terras, legalizar
a grilagem, demitir quem quiser sem que ninguém encha o saco, manter o país
como um paraíso fiscal para o andar de cima, extorquir, poder exercer
diferentes formas de sadismo com empregados... Tudo isso é o que une parte do
capital financeiro, sindicatos patronais identificáveis na cidade e no campo,
madames, etc..
Mas,
e os populares que vi desferindo impropérios e rangendo os dentes para pessoas
que jamais viram antes? Ação coletiva dá trabalho, consome tempo e energia, e
eles bancaram os custos. É preciso deixar o conforto do lar. Precisa de
investimento libidinal! Não era um protesto com pauta econômica,
anti-inflacionária, contra a carestia de gêneros alimentícios. Era ódio. Algo
na fantasia desses indivíduos parece sugerir que a eliminação de sua nêmesis,
Lula e arredores, vale muito a pena. Talvez, para ser até pudico, uma
transformação estrutural, seja lá o que for, poderia advir. Não sei o que
imaginam. Paolo Demuru, pesquisador italiano que atua no campo da semiótica,
nos lembra do quanto narrativas delirantes, como as teorias da conspiração[2], e discursos de ódio podem
funcionar como um remendo, um band-aid perverso, para vidas que se consideram
irrelevantes, ressentidas, impotentes diante da brutalidade inerente ao nosso
modo de viver nesta etapa do capitalismo. Freud e Reich há mais ou menos um
século viram sinais parecidos na ascensão do nazifascismo, onde detectaram ali uma
tentativa fajuta de encantamento e empoderamento em um cotidiano duro e sem
compaixão. De todo modo o ódio que foi expresso aqui em Campos no abril último, é o que, no limite, implicaria a destruição do objeto. Ódio é afeto, tanto quanto o
amor, mobilizador, poderoso e mortífero.
O que se depreende da experiência é que se confirma, mais uma vez, a persistência de uma base popular radicalizada relevante pela direita. A matéria-prima deste setor, distante socialmente dos sócios majoritários e sócios minoritários do bolsonarismo e arredores, é o mal-estar capturado por narrativas que se retroalimentam exaustivamente no ecossistema de informação vampirizado pelas big techs. Nesta seara os algoritmos, em nada neutros, ajudam a repetir conteúdos que reforçam o sintoma. O que gerou as cenas de destruição do 08 de janeiro circula entre nós em tonalidades vívidas. Por tudo isso, sim, sem anistia! E, além de palavras de ordem, o mal-estar desses setores precisa ser processado em respostas efetivas e pacíficas no campo democrático. A democracia precisa recuperar a musculatura desidratada por décadas de discursos e práticas de austeridade.
* Disponível em: https://www.uff.br/15-04-2025/presidente-lula-inaugura-nova-sede-da-uff-em-campos-dos-goytacazes/, acesso em 10 de maio de 2025.
** A primeira versão, encurtada, foi publicada na página 4 do jornal Folha da Manhã em Campos dos Goytacazes, RJ. A primeira versão foi editada pelo próprio autor para caber na formatação do jornal. Aqui no blog, que pôde ir além das 70 linhas delimitadas pelo editor do jornal, se apresenta versão um pouco maior e levemente modificada do texto original.
*** Professor da área de Ciência Política na UFF, campus de Campos dos Goytacazes, RJ.
[1] Em
entrevista para o Canal Meio disponível aqui: https://www.youtube.com/live/U9SIS8cbt8c?si=nvX2MAbPgydnmqil,
acesso em 04 de maio de 2025.
[2]
Recomendo efusivamente o “Políticas do encanto: extrema direita e fantasias de
conspiração”, opúsculo lançado por Demuru no ano passado pela editora Elefante.
Nenhum comentário:
Postar um comentário