segunda-feira, 16 de março de 2015

Sobre as manifestações de 13 e 15 de março de 2015 e suas demandas: uma outra perspectiva

Sobre as manifestações de 13 e 15 de março de 2015 e suas demandas: uma outra perspectiva

Como apontaria Hegel em sua Filosofia do Direito, a coruja de Minerva só levanta voo ao anoitecer. Esta imagem, a um só tempo poética e dotada de forte caráter metodológico, funciona como um alerta à ansiedade de elaborar análises no calor do momento. Nas ciências sociais, e também com a historiografia, aprendi a tentar conter o ímpeto da análise apressada onde serve-se prato cru, frio e por vezes indigesto da informação replicada de forma impulsiva. Inclusive, é fora deste afã ansioso que as análises de conjuntura, sempre um exercício arriscado, podem trazer insights produtivos.

Também, por outro lado, uma análise de Day after certamente não conseguirá esgotar as consequências históricas das manifestações ocorridas no Brasil de sexta-feira para cá. Somente os próximos meses, quem sabe até anos, irão digerir em sua plenitude as demonstrações das ações coletivas que assisti em um mix de perplexidade, algo de preocupação e pitadas de admiração.  Contudo, um breve esforço de análise pode ser um exercício interessante de tentativa de organização ante as partículas que ainda estão em suspensão na arena pública nacional neste momento.

Primeiramente, uma constatação que tem sido partilhada por analistas como Bresser-Pereira (aqui), Marcos Nobre (aqui) e Vladimir Safatle[i] (aqui). O Brasil não é o mesmo de poucas décadas atrás. As mudanças de impacto macro e microeconômico ensejaram modificações profundas na estrutura da sociedade brasileira. Um mercado de consumo pujante, algo que teve suas bases construídas ainda no estabelecimento do plano real e aprofundada nas gestões Lula e Dilma, a entrada de milhões de pessoas neste mesmo mercado, ação fomentada pelo Partido dos Trabalhadores com medidas de enfrentamento estrutural da pobreza, a preferência relativamente estável pela democracia representativa liberal como método de seleção de governantes após diversos momentos históricos de interrupção violenta da trajetória institucional em curso... Em suma, nestas poucas décadas após a ditadura civil-militar, seja porque o mundo não é o mesmo (variáveis exógenas), seja pelas decisões dotadas de caráter vinculante no âmbito da política nacional (variáveis endógenas), não é exagero falarmos em “um fim de uma era”. Não por acaso os termos “social-desenvolvimentismo” ou “social-rentismo” tem sido aplicados como substitutos do modelo anterior de nação chamado “nacional-desenvolvimentismo”.

Porém, este novo modelo de autocompreensão da sociedade e que, portanto, deriva de um conjunto de opções valorativas e normativas que direciona os processos de tomada de decisão, encontra-se em uma situação delicada. As estratégias de inclusão de grandes parcelas da população no mercado de consumo vivem hoje um dilema periclitante, dado que ironicamente padecem de seu próprio sucesso. A entrada desses agrupamentos sociais no âmbito do consumo se deu majoritariamente em decorrência de conjunturas específicas, dentre elas: a) a alta demanda de commodities atrelada a preços comparativamente vantajosos no mercado internacional; b) o aquecimento de alta voltagem do mercado de consumo interno, algo que auxiliou de forma inegável a manutenção do crescimento interno da economia. Estes dois elementos combinados tornaram sustentável a legitimidade do PT, especialmente o governo Lula, perante o cenário político nacional. Mesmo sendo acompanhado de análises francamente negativas de boa parte da grande mídia, a economia e a “novidade” apresentada pela democratização do mercado tornou a gestão Lula blindável. Evidentemente, o mesmo cenário não está sendo experimentado pela gestão Dilma da segunda metade de seu primeiro mandato para cá.

Ora, é lugar comum na análise política o reconhecimento de que conjunturas econômicas adversas produzem impacto substantivo na força de todo e qualquer projeto de legitimação. Penso que é sob este olhar mais “terra-terra” que deve ser compreendida a razão pelo qual tem ecoado uma profunda insatisfação neste início de segundo mandato de Dilma Rousseff. Até porque, o cenário de uma mídia “oposicionista” é presente desde o início do primeiro governo Lula.

Prosseguindo, em virtude disto, discordo profundamente da perspectiva que deposita na grande mídia a orquestração das ações coletivas de 15 de março. Se esta seletivamente pretende “surfar” este movimento de massas e, evidentemente, fornece boa parte dos elementos discursivos que estão presentes nas passeatas e cartazes, a aposta de que esta teria sido a grande responsável me parece insustentável. Houve a adesão e tentativa de direcionamento sim. Contudo, esta análise despreza de forma surreal a constelação de interesses que estavam representados nas manifestações....Os interesses dos grandes grupos de comunicação de massa são só uma fração, importante decerto, mas não conseguem esgotar o fenômeno.  Inclusive a porosidade dos discursos que penetram em parte da sociedade civil insatisfeita se realiza, em minha leitura, por conta da ausência de aprendizados democráticos e são fruto do empobrecimento da imaginação política que é derivada diretamente da asfixia da diversidade comunicativa operada por 21 anos de repressão política implacável na ditadura civil-militar.

Ainda, pensando no que mobiliza os agentes, arrisco dizer que os interesses também devem ser mobilizados nos esforços interpretativos das manifestações de 13 de março... Mas, não menos no caso de 15 de março...

Retomando o ponto onde abordo as profundas modificações ocorridas no Brasil nos últimos anos, temos um novo cenário cognitivo também entre os cidadãos: diversos estratos sociais obtiveram ganhos significativos em termos concretos e destes ganhos, produto de um movimento de mobilidade social extraordinária, não há quem deseje abrir mão. Sobretudo ao que chamam de “nova classe média”, os mais realistas alcunham de “nova classe trabalhadora”, que adentrou ao consumo de bens, mas questiona duramente a qualidade dos serviços ofertados. Em suma, estas modificações são oriundas do sucesso de medidas inclusivas e ampliação de direitos. Contudo, neste horizonte, seria natural que a velocidade lenta dos investimentos em infra, logística e etc, produziriam no mínimo mau humor. Em anexo, o cenário de desaceleração econômica atrelada ao cadáver insepulto inflacionário, imaginário ou não, torna a questão ainda mais explosiva. Afinal, dentre as questões inegociáveis deste “novo Brasil”, alta inflacionária simplesmente não é uma opção.

Concluindo, acredito que debates como “a reforma política”, a genérica bandeira do “enfrentamento da corrupção” e a “democratização da mídia” são tímidos. Justamente por desconsiderar questões muito mais concretas e, assim penso, urgentes na continuidade do enfrentamento da desigualdade social ainda estrutural no Brasil. Para que o “social-rentismo” torne-se verdadeiramente um “social-desenvolvimentismo” uma revolução tributária urge e é a grande ausente nas últimas manifestações. As medidas de ajuste fiscal, repetidas como um mantra, são insuficientes para o financiamento de um projeto de inclusão estrutural onde o Estado é o principal agente econômico. Sem o enfrentamento lúcido do gargalo tributário brasileiro pouco teremos de avanços concretos e profundos nos próximos tempos. De outro modo, não desconsiderando que qualquer outro conjunto de mudanças produza avanços, compreendo que estes não são decisivos enquanto se ignora o projeto de sociedade que tenha enquanto valor inegociável princípios de justiça tributária e eficiência de manejo e arrecadação fiscal.

George Gomes Coutinho




[i] Certamente há outras análises de diferentes matizes. Porém, irei me ater a estes nomes citados pela simples razão de ainda não ter feito um balanço da bibliografia produzida a respeito. Por fim, para a construção do argumento neste pequeno texto, a menção aos três citados é funcional ao conjunto de argumentos que apresento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário