segunda-feira, 6 de julho de 2015

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia

Mal-estar cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia



            Nos dias que correm no Brasil é compartilhado um mal estar coletivo palpável. Não que este sentimento seja exatamente uma novidade na modernidade. Sigmund Freud em seu “Mal-estar da civilização”, texto datado de 1929, apontava o caráter paradoxal do progresso material, embora desigualmente distribuído pela própria estrutura inerente da sociedade, e uma sensação de fastio, melancolia, desamparo, etc.. Porém, nos cabe calibrar esta questão em termos históricos e contextuais.  Freud escrevia na Europa central, nos arredores da falência financeira desencadeada pelo colapso da Bolsa de Nova Yorque, um tanto perplexo com a convivência concreta do avanço da ciência e o que Jürgen Habermas chamaria posteriormente no final do mesmo século de “promessas não cumpridas do iluminismo”[i]. Em verdade, o que o chamado “pai da psicanálise” assinalou foi a constatação de que novos modos de viver produzem novas formas de sofrimento, dado que o objeto de análise  freudiana era nada menos que a falência da sociedade tradicional e a substituição desta por uma modernidade sempre a se construir. O sofrimento de Sísifo se atualizaria historicamente na chave menos ensolarada da interpretação da sociedade, tal como Adorno e Horkheimer procuraram igualmente demonstrar[ii].

            Retomando ao Brasil e particularizando este sofrimento, que não é um privilégio verde-amarelo e detém suas facetas singulares entre nossas fronteiras, é edificada a “sociedade de condomínio”, tão bem retratada por Christian Dunker[iii]. Esta sociedade de condomínio, falarei em termos bastante sumários, projeta uma forma de sociabilidade especial dotada, por um lado, na centralidade do consumo e uma (re)feudalização do espaço urbano.  O consumo como projeto de realização existencial, como se pode supor, não tem redundado em uma reflexividade mais robusta e avançada. De outro lado, a  (re)feudalização do espaço apenas torna mais aguda a separação dos desiguais envolvendo a apartação de formas de viver até fisicamente. Disto redundamos na ignorância mútua dos agentes e um empobrecimento discursivo/subjetivo importante, percepção somente amplificada pelo acompanhamento cotidiano das redes sociais.

            Nesse ínterim, tentando observar diretamente nossa conjuntura política nacional, a sensação de desconforto é persistente. Se por um lado não é injusto declarar que a esquerda não conseguiu construir um projeto interpretativo e programático suficientemente eficaz para os desafios de uma realidade (semi)periférica como a nossa[iv], por outro lado, a direita também aparentemente não tem conseguido fazê-lo. Em verdade, salvo soluções autoritárias de curtíssimo prazo, onde se produz uma sensação de segurança a partir do medo, a direita aparentemente fracassou entre nós em toda a nossa história. A esquerda, uma alternativa histórica suprimida por quase todo o século XX, falha miseravelmente em nossa conjuntura.

Neste vácuo de imaginação estrutural, até o presente momento parte dos debates que mais tem seduzido a chamada “opinião pública”, a despeito desta existir ou não[v], tem se centrado em “pautas de questão única”. Na literatura dos mecanismos de explicação dos gatilhos da ação coletiva, as chamadas “pautas de questão única”, envolvendo agentes específicos como o movimento LGBT, grupos étnicos e a “difusa agenda ambiental”, se tentam produzir avanços civilizatórios fundamentais, por outro lado, apenas de forma tangencial se defrontam com uma agenda estrutural. As vitórias neste sentido são vitórias de Pirro. Necessárias, decerto, porém insuficientes sem um projeto de sociedade que as torne sólidas e duradouras.

            Ainda, em nossa conjuntura, onde há um discurso combativo sistemático de enfrentamento das forças progressistas, seja criminalizando-as ou simplesmente tornando seu conteúdo reivindicatório objeto de ridicularização, soluções falseadas, não por acaso, tem pipocado e se alastrado mais que “chuchu na serra”. Justamente a pauta conservadora tem se construído a partir de “questões únicas”: a redução da maioridade penal como encaminhamento desejável e solução para a violência estrutural; o resfriamento dos avanços simbólicos e jurídicos que protegem agrupamentos étnicos ou LGBT; a destruição sem tréguas do Partido dos Trabalhadores como remédio para os males da política formal.

            Progressistas e conservadores, assim, armam seus grupos de forma mais similar do que pode supor nossa vã filosofia. Em paralelo, nosso projeto coletivo paradoxal  e realmente existente de “social rentismo” prossegue e preguiçosamente todos recusamos a pensar soluções complexas e estruturais para problemas que, em última instância, são da mesma natureza.  Talvez a reflexão de Marcos Nobre que nos convida a “Pensar o Brasil”[vi] faça todo sentido nos dias que correm. Ainda, intuitivamente arrisco afirmar que se não há “solução mágica”, o retorno das propostas estruturais, que envolvem modelar novos projetos de sociedade, se não elimina o mal-estar inerente, nos permite reabilitar uma esperança secularizada. Não mais e não menos.

George Gomes Coutinho




[i] HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

[ii] ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

[iii] DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.

[iv] Neste sentido que interpreto o mote de Wanderley Guilherme dos Santos postado em seu blog: “CHEGA DE TRANSFORMAR O MUND0; É INDISPENSÁVEL INTERPRETÁ-LO!”. Disponível em: http://insightnet.com.br/segundaopiniao/?p=100

[v] Bourdieu em seu texto clássico “A opinião pública não existe”. O texto, ácido e implacável, encontra-se disponível em formato PDF. Eis aqui um dos possíveis links de acesso: http://pt.scribd.com/doc/72698331/A-opiniao-publica-nao-existe-Pierre-Bourdieu

[vi] http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002014000300097&script=sci_arttext

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