Mal-estar
cotidiano e a ausência de projetos estruturais na (semi)periferia
Nos dias que correm no Brasil é
compartilhado um mal estar coletivo palpável. Não que este sentimento seja
exatamente uma novidade na modernidade. Sigmund Freud em seu “Mal-estar da
civilização”, texto datado de 1929, apontava o caráter paradoxal do progresso
material, embora desigualmente distribuído pela própria estrutura inerente da
sociedade, e uma sensação de fastio, melancolia, desamparo, etc.. Porém, nos
cabe calibrar esta questão em termos históricos e contextuais. Freud escrevia na Europa central, nos
arredores da falência financeira desencadeada pelo colapso da Bolsa de Nova
Yorque, um tanto perplexo com a convivência concreta do avanço da ciência e o que
Jürgen Habermas chamaria posteriormente no final do mesmo século de “promessas não
cumpridas do iluminismo”[i]. Em
verdade, o que o chamado “pai da psicanálise” assinalou foi a constatação de
que novos modos de viver produzem novas formas de sofrimento, dado que o objeto
de análise freudiana era nada menos que
a falência da sociedade tradicional e a substituição desta por uma modernidade
sempre a se construir. O sofrimento de Sísifo se atualizaria historicamente na
chave menos ensolarada da interpretação da sociedade, tal como Adorno e
Horkheimer procuraram igualmente demonstrar[ii].
Retomando ao Brasil e
particularizando este sofrimento, que não é um privilégio verde-amarelo e detém
suas facetas singulares entre nossas fronteiras, é edificada a “sociedade de
condomínio”, tão bem retratada por Christian Dunker[iii].
Esta sociedade de condomínio, falarei em termos bastante sumários, projeta uma
forma de sociabilidade especial dotada, por um lado, na centralidade do consumo
e uma (re)feudalização do espaço urbano.
O consumo como projeto de realização existencial, como se pode supor,
não tem redundado em uma reflexividade mais robusta e avançada. De outro lado,
a (re)feudalização do espaço apenas
torna mais aguda a separação dos desiguais envolvendo a apartação de formas de
viver até fisicamente. Disto redundamos na ignorância mútua dos agentes e um
empobrecimento discursivo/subjetivo importante, percepção somente amplificada pelo acompanhamento
cotidiano das redes sociais.
Nesse ínterim, tentando observar
diretamente nossa conjuntura política nacional, a sensação de desconforto é
persistente. Se por um lado não é injusto declarar que a esquerda não conseguiu
construir um projeto interpretativo e programático suficientemente eficaz para
os desafios de uma realidade (semi)periférica como a nossa[iv],
por outro lado, a direita também aparentemente não tem conseguido fazê-lo. Em
verdade, salvo soluções autoritárias de curtíssimo prazo, onde se produz uma
sensação de segurança a partir do medo, a direita aparentemente fracassou entre
nós em toda a nossa história. A esquerda, uma alternativa histórica suprimida
por quase todo o século XX, falha miseravelmente em nossa conjuntura.
Neste
vácuo de imaginação estrutural, até o presente momento parte dos debates que
mais tem seduzido a chamada “opinião pública”, a despeito desta existir ou não[v],
tem se centrado em “pautas de questão única”. Na literatura dos mecanismos de
explicação dos gatilhos da ação coletiva, as chamadas “pautas de questão única”,
envolvendo agentes específicos como o movimento LGBT, grupos étnicos e a “difusa
agenda ambiental”, se tentam produzir avanços civilizatórios fundamentais, por
outro lado, apenas de forma tangencial se defrontam com uma agenda estrutural.
As vitórias neste sentido são vitórias de Pirro. Necessárias, decerto, porém
insuficientes sem um projeto de sociedade que as torne sólidas e duradouras.
Ainda, em nossa conjuntura, onde há
um discurso combativo sistemático de enfrentamento das forças progressistas,
seja criminalizando-as ou simplesmente tornando seu conteúdo reivindicatório
objeto de ridicularização, soluções falseadas, não por acaso, tem pipocado e se
alastrado mais que “chuchu na serra”. Justamente a pauta conservadora tem se
construído a partir de “questões únicas”: a redução da maioridade penal como
encaminhamento desejável e solução para a violência estrutural; o resfriamento
dos avanços simbólicos e jurídicos que protegem agrupamentos étnicos ou LGBT; a
destruição sem tréguas do Partido dos Trabalhadores como remédio para os males
da política formal.
Progressistas e conservadores,
assim, armam seus grupos de forma mais similar do que pode supor nossa vã
filosofia. Em paralelo, nosso projeto coletivo paradoxal e realmente existente de “social rentismo”
prossegue e preguiçosamente todos recusamos a pensar soluções complexas e
estruturais para problemas que, em última instância, são da mesma natureza. Talvez a reflexão de Marcos Nobre que nos
convida a “Pensar o Brasil”[vi] faça
todo sentido nos dias que correm. Ainda, intuitivamente arrisco afirmar que se
não há “solução mágica”, o retorno das propostas estruturais, que envolvem
modelar novos projetos de sociedade, se não elimina o mal-estar inerente, nos
permite reabilitar uma esperança secularizada. Não mais e não menos.
George Gomes Coutinho
[i]
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo,
Martins Fontes, 2002.
[ii]
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento:
fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
[iii] DUNKER,
Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2015.
[iv]
Neste sentido que interpreto o mote de Wanderley Guilherme dos Santos postado
em seu blog: “CHEGA DE TRANSFORMAR O MUND0; É INDISPENSÁVEL INTERPRETÁ-LO!”.
Disponível em: http://insightnet.com.br/segundaopiniao/?p=100
[v] Bourdieu
em seu texto clássico “A opinião pública não existe”. O texto, ácido e
implacável, encontra-se disponível em formato PDF. Eis aqui um dos possíveis links
de acesso: http://pt.scribd.com/doc/72698331/A-opiniao-publica-nao-existe-Pierre-Bourdieu
[vi] http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002014000300097&script=sci_arttext
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