quinta-feira, 29 de março de 2018

Resistência democrática


Resistência democrática

Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo”. (Nelson Rodrigues)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Os tiros contra a caravana de Lula no Paraná poderiam ter assumido contornos trágicos para todos aqueles que, a despeito de inclinações partidárias, ainda creem na democracia como regime político no e pelo qual os conflitos são admitidos e geridos racionalmente. Desnecessário dizer que o atentado não é um ponto fora da curva, uma vez que a violência pré-política tornou-se a rotina de instituições que deveriam servir de contrapeso ao uso arbitrário das razões pelos contendores na política nacional. Dito de outro modo, não há por que estarmos surpreendidos com o iminente risco de morte de lideranças e militantes pelo simples fato de se posicionarem à esquerda do espectro político, pois a selvageria que recaiu sobre Lula e seus correligionários no sul não é desconexa, por exemplo, da violência simbólica contra Dilma Rousseff quando, pasme, sua imagem fora fixada no stand de tiro da Polícia Federal como “motivação” para o treinamento [1].

Por que falar disso agora? “Não força!”, dirão alguns. Detenhamo-nos um pouco mais sobre aquilo que, a meu ver, seria um sintoma das práticas fascistas que se disseminaram em todas as latitudes do país. Não é aleatório lembrar do “tiro ao alvo” contra a então presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff dentro da Polícia Federal. O agente que o fez em serviço e o divulgou nas redes sociais cometeu um ato de insubordinação grave, haja vista o comando que a Presidência da República, por intermédio do Ministério da Justiça, exerce sobre aquele órgão. O que ocorreu ao agente? Um processo disciplinar resultante em demissão a bem do serviço público? O processo até que se cumpriu, mas a apuração da apologia ao crime contra a vida da então autoridade máxima da nação lhe rendeu aprazíveis quatro dias de suspensão... Há três anos, esse evento apenas confirmava a fratura da cadeia hierárquica do governo federal numa conjuntura que flertava com a luta aberta entre os três Poderes e, doravante, com a derrocada de uma incipiente democracia.

Todavia, o que causa verdadeira perplexidade não é o atentado em si, mas o endosso ao mesmo por membros da política institucional que, diante da crescente beligerância de grupos de extrema direita, poderiam ser mediadores capazes de devolver a luta ideológica ao leito da esfera pública. Pelo contrário: acirram os ânimos dos “odiadores da política” até, quiçá, regredir a vida civil a uma horda primitiva. Segundo Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo, Lula e seus apoiadores “estão colhendo o que plantaram”[2], enquanto a senadora Ana Amélia (PP-RS) exalta os agressores de sua caravana na passagem pelo Rio Grande do Sul: “Quero parabenizar Bagé, Santa Maria, Passo Fundo, São Borja. Botaram a correr aquele povo que foi lá levando um condenado se queixando da democracia. Atirar ovo, levantar o relho, mostra onde estão os gaúchos”[3]Evidente que ambos operam uma inversão dos fatos. Um dos mais hábeis artífices da conciliação de classes, para o bem e para o mal, foi Lula quando à frente do Planalto e, ao contrário do que apregoa Ana Amélia, a condenação do ex-Presidente em um processo penal sem sentença definitiva (e cujas “inovações jurídicas” fazem corar qualquer professor de Direito Constitucional) não lhe retira o direito de reunir-se pacificamente em local público.

Da suposta equalização dos polos da política brasileira na Era Lula, chegamos à mobilização dos seus extremos rumo a uma conflagração na qual tudo parece possível. A defesa da candidatura de Lula à Presidência não é, necessariamente, adesão espontânea àquela liderança senão a aceitação de que a soberania popular é irrenunciável e de que os seus titulares não podem ter suas escolhas cerceadas pela retirada forçada de Lula ou de quaisquer atores políticos das eleições majoritárias deste ano. A manutenção de uma democracia sem povo, em tese, não deveria ser aceitável pela fração civilizada da direita brasileira. Não obstante, a repactuação de limites na luta política ainda está longe de encontrar porta-vozes que convençam do contrário aqueles que amam odiá-la. Diante desse quadro, a resistência democrática de Lula, independente dele ser ou não elegível em outubro, é um experimento entre outros para a tarefa que se agiganta para toda uma geração: refundar a república brasileira.

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