domingo, 24 de fevereiro de 2019

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

O experimento "CESAN": (neo)liberalismo posto à prova?

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Para não sermos engolidos de vez pelo desânimo que este momento de regressão histórica nos provoca, entendo que trabalhar conceitos é importante para avaliar qual política estará posta na mesa, por assim dizer, através do Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN), que entrará em funcionamento na cidade de Campos dos Goytacazes-RJ. Esforço inútil? A meu ver, não, pois ideias e valores estão presentes no comportamento efetivo das pessoas em geral (e dos gestores públicos em particular) e guardam sua eficácia social justamente quando deixam de ser submetidos a um exame consciente. Conceitos então podem ser vistos como os “pedais” do conhecimento e este, por sua vez, como uma construção coletiva da qual participamos conforme visões de mundo que também são objeto de reflexão.

Para definir esse “objeto”, dialogo com a abordagem de Célia Lessa Kerstenetzky sobre políticas sociais[1], chamando atenção para as confusões sobre o que venham a ser focalização e universalização. Para tanto, exponho o quadro conceitual com o qual Kerstenetzky busca superá-las, já que elas atravancam o debate sobre a retomada do “Restaurante Popular”. Interessa discutir possíveis enquadramentos do estilo de política social que tende a prevalecer no seu substituto, o CESAN.

Justiça de mercado e Justiça redistributiva

Segundo Kerstenetzky, no debate público brasileiro há uma tendência a correlacionar automaticamente o princípio da universalização com a garantia de direitos sociais e o da focalização com uma noção "residualista" de justiça. Estaríamos aqui diante de modelos de política social que seriam, aparentemente, impassíveis de se complementarem. Porém, tal visão bipartida das políticas sociais se mostra limitada diante dos arranjos institucionais com os quais lidamos.

Tais arranjos dizem respeito à maneira como se legitimam noções de justiça na distribuição da riqueza com referência às duas instituições mais importantes do mundo contemporâneo: Estado e Mercado. Em torno delas, temos variadas linhagens do pensamento político e econômico encabeçadas por duas orientações-chave: a justiça de mercado e a justiça redistributiva.

Na primeira - justiça de mercado -, navegaríamos no velho leito do liberalismo econômico. De acordo com esse princípio de justiça social, a distribuição de vantagens econômicas seria decorrente das livres transações do mercado sem maiores questionamentos quanto à desigualdade material entre homens e mulheres. Estes(as), na qualidade de pessoas adultas que foram educadas para o exercício da livre escolha, teriam a seu dispor a “mão visível” do Estado para garantir o direito à propriedade privada e o cumprimento legal dos contratos, facultando-lhes a segurança jurídica necessária para se colocarem à prova em uma economia de mercado que, assim reza a lenda, premiariam os mais “responsáveis” em suas iniciativas pessoais. 

Para os crentes de ontem e de hoje na ideia de mercados autorregulados, sendo os indivíduos dotados de autonomia civil, a persistência das desigualdades de renda poderia ser vista até mesmo como uma virtualidade do capitalismo, na medida em que encontraríamos uma espécie de “auto-cura” para um modo de produção sempre propenso a crises: remunerações desiguais serviriam de estímulo ao trabalho e à poupança e, por consequência, elevariam a eficiência econômica; alcançando-se maior eficiência econômica, obteríamos o crescimento econômico, implicando assim em maior taxa de emprego e renda e, potencialmente, em mais benefícios para os menos favorecidos. Soa familiar com a estorinha do peixe e da vara de pescar, caro(a) leitor(a)?  

Ironicamente, apostar que a civilização burguesa propicie uma racionalização dos modos de vida capaz de conduzir mesmo quem esteja na pior situação de classe aos melhores resultados econômicos é, no mínimo, frustrante diante das não poucas ineficiências das operações do mercado, o que, lembra Kerstenetzky, leva-nos a admitir que o “progresso material convive com (e talvez mesmo parasite) a incerteza”[2] e que “não há como assegurar que esforços serão recompensados e negligências punidas”[3].

Se estamos submetidos a um sistema econômico cuja vitalidade advém da mudança incessante (“tudo que é sólido desmancha no ar”, já dizia o velho Marx), o mal-estar social daqueles(as) que nunca tiveram escolha alguma será mais cedo ou mais tarde objeto de responsabilidade pública. Na justiça de mercado, essa responsabilização assume a forma de uma rede subsidiária de proteção (renda mínima, seguro-desemprego entre outros) que dê conta da “pobreza imerecida”. Nada mais nos restaria senão a perspectiva de focalização como "resíduo".

Contudo, a política social pode ser entendida como algo além da provisão de um seguro contra riscos sociais imprevisíveis. Para Kerstenetzky, podemos seguir uma orientação alternativa – a justiça redistributiva – que nos permita pensar a focalização tanto “como condicionalidade” quanto “ação reparatória”. 

No âmbito da justiça redistributiva, a focalização “como condicionalidade” se traduz em um problema de tecnologia social: encontrar o foco correto para a solução de um problema específico, promovendo assim eficiência à ação governamental. Apesar da aparente simplicidade dessa perspectiva, Kerstenetzky adverte que aplicá-la requer aprimorar o diagnóstico local sobre o estado de privação que se quer superar. Se, por um lado, priorizar a eficiência do gasto social “ajustando” o foco favorece com o tempo a provisão de recursos para outras demandas sociais urgentes, por outro, em certas circunstâncias, a melhor maneira de realizar o interesse público é subverter o sentido mesmo da focalização:

Às vezes, a busca do foco correto pode resultar no formato contra-intuitivo de incondicionalidade, como quando se atinge melhor os mais necessitados estendendo-se um benefício a todos dentro de um determinado território, supostamente razoavelmente homogêneo, e não apenas aos mais necessitados (em que se poupam, por exemplo, os custos de monitoramento). Neste caso específico, a melhor forma de encontrar o foco é “universalizar”[4].

Já na focalização como “ação reparatória”, teríamos uma torção de sentido quanto à perspectiva da focalização como “resíduo” que discutimos no âmbito da justiça de mercado. Homens e mulheres sem trabalho e renda não seriam aqui produto de eventuais ineficiências de uma economia de mercado, mas a confirmação de que nela uma desigual oportunidade de realização nas gerações passadas é transmitida à geração atual, tornando direitos universais formalmente iguais uma ilusão facilmente desmentida pelos fatos. Tornar então efetiva a igualdade de oportunidades requereria um conjunto de ações que, destinado a grupos com demandas específicas, realizasse uma contínua equalização da riqueza, aproximando dessa forma o “ideal de direitos universais a algum nível decente de realização”[5].  

Em sociedades marcadas por desigualdades abissais como a brasileira, é pouco provável que políticas universais tenham êxito dissociadas da focalização na política social, ratifica Kerstenetzky. Se tais políticas redistributivas podem ter caráter compensatório ou estrutural, não há resposta pronta. O que fazer então? Testar as noções de justiça de mercado e de justiça redistributiva em cada cenário concreto. Desse modo, tais categorias de análise auxiliam na tentativa de compreender o estilo de política social que está se desenhando para o “Restaurante Popular” em Campos dos Goytacazes-RJ.

Uma hipótese: considerando que os critérios de renda para a gratuidade das refeições que estão delimitados, até o momento, pelo crivo do CadÚnico e, por outro, que os preços com ou sem subsídio podem vir a superar (e muito) o preço da refeição cobrado até 2017 no então Restaurante Popular, prevalece uma política calcada na justiça de mercado. Diante da "pobreza imerecida" - resultado das falhas do mercado em entregar aquilo que promete aos crédulos no próprio esforço ou "mérito" ou àqueles que, desalentados, já não acreditam em mais nada porque simplesmente "não há vagas" -, atrela-se um restaurante popular a uma rede (incompleta) de proteção sem maiores preocupações quanto ao condicionantes locais de uma pobreza que é estrutural.

Se tal hipótese se confirmar no decorrer do serviço prestado no CESAN, é razoável que se discuta a possibilidade de conjugar tal serviço com outras modalidades de focalização mais afeitas à justiça redistributiva. Ora, a julgar pela regressão dos indicadores sociais com a agenda ultraliberal à qual foi submetida o país com Michel Temer e agora Jair Bolsonaro [6] - Reforma Trabalhista, Emenda Constituição nº 95 -, o tamanho do "resíduo" deixado para trás por um mercado deixado sem freios à sua própria lógica é muito maior do que a Prefeitura supõe e, desse modo, pensar a focalização como "condicionalidade" ampliaria o escopo dessa política de segurança alimentar e nutricional para segmentos da população cujo direito ao trabalho e à renda lhes é negado pela crônica falta de transporte coletivo, pela pouca integração da área urbana de Campos dos Goytacazes com a sua imensa área rural, entre outros gargalos já conhecidos.

Segurança alimentar e nutricional é uma ação intersetorial e, como tal, não se deixa aprisionar por uma visão minimalista das políticas sociais; logo, há muito o que investigar sobre a questão social em Campos dos Goytacazes-RJ a partir de um diagnóstico local que, parafraseando Albert Hirschman, evite confirmar que "políticas para pobres sejam sempre políticas pobres". Cautela necessária ante uma cultura política que ainda não produziu em nossa cidade uma via programática que supere a insegurança econômica das camadas baixas da população como moeda de troca sempre à mão na sucessão de governos.

[1] KERSTENETZKY, Celia Lessa. Políticas Sociais: focalização ou universalização?. Rev. Econ. Polit.,  São Paulo, v. 26, n. 4, p. 564-574,  dez.  2006. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572006000400006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  jan.  2019.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31572006000400006.
[2] Op. cit., idem., p.565.
[3] Idem.
[4] Op. cit., idem., p.570.
[5] Op. cit., idem., p.571.

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