sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O desafio ético dos aplicativos


O desafio ético dos aplicativos*

Os aplicativos de serviços são uma realidade. Sua presença é uma constante nos centros urbanos e, ao que tudo indica, há uma tendência de aprofundamento de suas atividades. Não importa a hora, é possível pedir comida em casa apenas clicando no celular, sem ter que falar com alguém e sem precisar tocar na carteira – basta que o cartão de crédito esteja devidamente cadastrado. Por preços módicos, é possível pedir um carro que me levará de um ponto a outro da cidade, me esquivando da violência urbana e me afastando do transporte público. Os preços são convidativos; a comodidade é mais que sedutora. A vida muda e agora não precisamos ir à mercearia para comprar o queijo que faltou pra terminar aquela pizza que resolvemos, por mero desejo, preparar em casa e com nossas próprias mãos. Se você se cadastrou no aplicativo, mas ainda não usou, é provável que receba promoções e descontos sem fim para adentrar nesse universo de serviços. A sedução é grande e, como se não bastassem os preços encantadores, ainda há tudo aquilo que nos desestimula a sair de casa: o transporte público ineficiente, o trânsito e a violência das ruas, o mau atendimento dos atendentes etc. Parece um caminho sem volta: até as compras de supermercado podem ser feitas por aplicativos e inúmeros cursos podem ser feitos na modalidade EaD. Os custos disso ainda não podem ser calculados. A precarização do trabalho é a primeira questão visível: pessoas de um lado para o outro em bicicletas e carros tentando garantir o pão de cada dia em jornadas que ultrapassam as 12 horas e não dão garantias. Aplicativos feitos no exterior estão gerenciando todas as entregas de refeições em cidades onde os programadores nunca colocaram os pés, fazendo com que os restaurantes locais entrem em colapso precisando reduzir cada vez mais seus preços para que seja mantida a competitividade. Se a passagem de ônibus custa R$3,75, fica mais fácil pegar um Uber por R$10,00 quando saio com minha esposa e nossos filhos. Ao mesmo tempo em que os aplicativos proporcionam meios de renda para os nossos milhões de desempregados, eles deterioram, pouco a pouco, os serviços coletivos – públicos e privados. É preciso refletir sobre as mudanças da contemporaneidade antes que seja tarde demais.



Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


* Publicado na Página 04 do Jornal Folha da Manhã de 22 de Fevereiro de 2020.

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