quinta-feira, 7 de maio de 2020

O que fazemos com esses números?*


E eis que me peguei recorrendo ao meu fiel amigo, o dicionário Houaiss, ansioso ao perceber-me incapaz de definir o que vem a ser um “número”. Aquilo que é óbvio costuma esconder inúmeras (perdão pelo trocadilho) armadilhas, pois revela apenas parte(s) de si, deixando o que é crucial, muitas vezes, devidamente escondido ou – se preferir – subtraído da fachada. Houaiss rapidamente revelou que minha dúvida sobre o significado da palavra não era vã: dezenas são as acepções do substantivo masculino “número”. A primeira delas, no entanto, parece ser a mais usual: “soma de todas as unidades, dos elementos de uma série, conjunto etc”. Para quem, tal como eu, possui conhecimentos limitados da Matemática, essa primeira acepção parece promissora, mas quando cruzamos a matemática básica com nossas curiosidades sócio-antropológicas, a primeira acepção do Houaiss começa a mostrar suas insuficiências. A beleza numérica está em sua capacidade de abstração, pois o número 1 pode ser usado tanto para representar a quantidade de sacos de cimento para uma determinada tarefa quanto a quantidade de filhos que uma pessoa teve. Em termos matemáticos, o número é perfeito, mas em termos antropológicos, filosóficos e éticos, a situação pode ser diferente. Pois, nesse caso, a igualdade da expressão numérica nem sempre se revela. Seguindo na pesquisa etimológica, encontrei no verbo “numerar” alguma luz para as questões que me afligiam: “pôr números em” algo, ou “dispor em ordem numérica”. Os números e a numeração, nesse sentido, podem ser pensados como meios de classificação e ordenamento do mundo. São instrumentos para racionalizar o universo, tornar as medidas possíveis e realizar a quantificação daquilo que, de outro modo, pareceria mera desordem. Os números podem, assim, trazer a ordem e afastar o caos. Ao mesmo tempo, os números podem ser formas rápidas e reduzidas de quantificar o caos ordenado: são as cifras exorbitantes, os números estarrecedores etc. Os números existem e são neutros, quem os transforma em agentes sociais, com capacidades benéficas ou cruéis, são os humanos. Comecei a pensar sobre o tema quando a contagem oficial, deveras subnotificada, de mortos por Covid-19 no Brasil ultrapassou o número 5.000. Cinco mil. O número em si diz pouco e muito ao mesmo tempo. Pois, quando falamos de 5.000 kg de arroz estamos falando de algo que difere de 5.000 kg de ouro, do mesmo jeito que difere do que entendemos e valoramos como 5.000 pessoas. Os números não são culpados, mas aqueles que os distorcem ou subjugam são. Quando pensamos que agora já temos mais de seis mil mortos por Covid-19, devemos lembrar que esses números estão ligados a pessoas que faziam parte de inúmeras famílias que permanecem vivas e despedaçadas. Essas famílias, que compõem um número de pessoas que sou incapaz de calcular, possuem histórias, sonhos, projetos, afetos, trabalhos e muitas outras coisas que dificilmente alguém conseguiria traduzir em números. São famílias que perderam partes de si: pais, irmãos, avós, tios, tias, mães, irmãs, avôs, maridos, esposas, filhos, filhas etc. As estatísticas do Ministério da Saúde não quantificam as dores das perdas, do mesmo modo que não quantificam a quantidade de erros que proporcionaram a propagação do vírus e o aumento vertiginoso do número de mortes. Sabíamos desde o início que o vírus se propagaria, que sua taxa de letalidade não ceifaria mais que 10% dos contaminados e que as mortes seriam inevitáveis. Todavia, medidas não foram tomadas para reduzir a contaminação e, assim, o número de vítimas:  pois o impacto seria menor se os 10% de mortos fossem em um universo de dez mil e não de cem mil contaminados – número que tende apenas a crescer. Entre números, erros e argumentações néscias, o Governo Federal apresentou uma proposta de auxílio de R$200 para os trabalhadores informais e a Câmara dos Deputados impôs um auxílio de R$600, o que levou multidões de pessoas a agências bancárias, em filas desumanas que não obedeceram o halo social de 1,5m e que multiplicaram as probabilidades de contágio entre seus componentes, os bancários e todos os agentes envolvidos no processo. R$600 foi o valor ofertado para saciar as necessidades básicas de cerca de 45 milhões de pessoas que foram chamadas de “invisíveis” em um país onde o salário “mínimo” é de R$1.045. São muitos números, todos eles abstratos, mas capazes de despertar reflexões – também elas abstratas – sobre questões muito concretas de nossas falhas humanas. Enquanto os números aumentam e se sobrepõem para tentar ordenar e expressar a realidade que vivemos, deveríamos tentar utilizá-los para preservar vidas; pois um discurso “patriótico” que apenas considera bandeira e hinos, esquecendo-se da etimologia que liga “patriótico” a “compatrício” – enfatizando que o sentimento mor está relacionado à solidariedade entre as pessoas de uma mesma nação -, é algo que, se fosse traduzido em números, encontraria o valor zero. O que faz uma pátria são seus membros e não podemos dar de ombros quando perdemos um compatrício por falhas de nossa gestão; tampouco podemos desconsiderar que o eleito para guiar a nação expressou desprezo diante da morte de milhares de brasileiros e brasileiras.  Não há número que expresse a dor de quem perdeu entes queridos nessa pandemia; tampouco existem números capazes de expressar o absurdo de palavras proferidas pelo presidente diante do número que contabilizava os mortos pela doença.

Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Artigo publicado originalmente no site do Jornal Folha da Manhã, em 03 de Maio de 2020 - https://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261005-carlos-valpassos-o-que-fazemos-com-esses-numeros.html

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