segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

2020: Um ano para lembrar*

 


 

            Ao longo deste ano, de tempos em tempos, voltaram à minha memória trechos de uma música do Midnight Oil que não escutava há muito: Forgotten Years (Anos esquecidos). Em certo trecho, Peter Garret – vocalista da banda, que também foi Ministro do Meio Ambiente e Ministro da Educação, Infância e Juventude da Austrália – bradava: “Os anos mais difíceis, os anos mais sombrios, os anos ruidosos, os anos caídos – Esses não devem ser anos esquecidos. Os anos mais difíceis, os anos mais selvagens, os anos desesperados e divididos... Nós lembraremos, esses não devem ser anos esquecidos”.

            É curioso que a banda que marcou minha adolescência tenha voltado à memória cerca de 20 anos depois. Talvez isso tenha relação com o repertório, marcado por músicas engajadas com a preservação ambiental e com a defesa dos povos tradicionais. As lutas musicalizadas pelo Midnight Oil lá nos anos 80 e 90, embora diretamente ligadas ao contexto australiano, tratavam de questões globais e, por isso, faziam sentido para o Brasil já naquela época. Todavia, em 2020, tudo isso se tornou muito mais crítico para o contexto brasileiro – marcado por incêndios e desmatamentos intensos na Amazônia e no Pantanal, sempre com condescendência do Governo Federal.

            Em novembro de 2015, quando houve o rompimento da barragem do “Fundão” e os rejeitos da extração de minério de ferro mataram 19 pessoas e escoaram, em forma de lama,  para o Rio Doce. Enquanto acompanhava as notícias pela televisão, a lama deslocava-se vagarosamente pelo Rio Doce, deixando um rastro de dúvidas, tristezas, poluição e angústias. Decidi que aquele tipo de evento merecia ser visto de perto. Peguei o carro e fui para Linhares. Lá, as pessoas ficavam às margens do Rio, observando, esperando a lama que chegaria. Diferentes manifestações foram realizadas e, em uma delas, um grupo carregava sobre os ombros um caixão para simbolizar o funeral do Rio Doce. Morte, tristeza e indignação se misturavam. No dia seguinte, fui à praia de Regência, para ver como seria a chegada da lama ao oceano. Funcionários da mineradora Samarco instalavam umas telas na área de mangue, com o suposto objetivo de proteger o manguezal. Parecia sem sentido – e era. Todos sabiam que aquilo era uma encenação, mas o pequeno povoado de Regência foi invadido por repórteres de diferentes redes de televisão e a Samarco precisava passar a mensagem de que se preocupava com as consequências do desastre. Enquanto isso, os surfistas de Regência pegavam as últimas ondas antes da chegada da lama tóxica e prometiam lutar pela vida do ecossistema em que viviam – e que amavam.

O que me marcou nesses dias foi a força das pessoas para resistir à tragédia que estava apenas começando. E nesses momentos, eu lembrava do Midnight Oil e de “Blue Sky Mine” (Mina Céu Azul): “Mas se eu trabalhar o dia inteiro na Mina Céu Azul... vai ter comida na mesa de noite.”... “A Companhia pega aquilo que ela quer”... e a conclusão melancólica da música: “No fim a chuva cai e lava as ruas da cidade de Céu Azul”.

Agora, em dezembro de 2020, as 18 pessoas mortas no episódio de Mariana continuam mortas; a pessoa desaparecida continua da mesma forma. Ninguém foi preso, as indenizações ainda são um mistério. Agricultores, surfistas, pescadores, ribeirinhos em geral e todas as pessoas que dependem do Rio Doce (sobre)viveram sabe-se lá como ao longo dos últimos cinco anos. A Samarco, todavia, retomou suas atividades nessa semana. As ações da Vale do Rio Doce, que um dia perderam valor, já se recuperaram, pois “a Companhia pega aquilo que ela quer” e muitos prefeitos falam da relevância da atividade econômica para suas cidades – “nada é tão precioso quanto um buraco no chão”.

Incêndios como os do Pantanal; desmatamentos como os da Amazônia; negligência, inoperância e irresponsabilidade na gestão da Saúde de um país pobre diante de uma pandemia: esses não devem ser eventos esquecidos. Em tempos de inflamados discursos nacionalistas, parecem estranhas a aniquilação de nosso capital ambiental e a indiferença para com nosso capital humano.

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense. 

 

 

* Publicado originalmente em: https://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/12/artigos/1268682-2020-um-ano-para-lembrar.html

Um comentário:

  1. Abraão, meu caro, venho de público dizer que esse texto também não deve ser esquecido.

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