O fim dos partidos militantes*
* Publicado originalmente no Jornal
GGN.
Aldo
Fornazieri
A queda do muro de Berlin e o colapso da União
Soviética podem ser definidos, reunidos num mesmo evento, como o marco que
sacramenta o início do fim dos partidos militantes e, a rigor, dos partidos de
massa. Não é a causa única, evidentemente, mas é o marco histórico. A
transformação das sociedades industriais, que agregavam a aglomeração de
grandes números de trabalhadores em fábricas e conformavam a existência de
poderosos sindicatos, em sociedades tecnológicas que dispersam os trabalhadores
em ilhas menores e em serviços, certamente é um dos fatores importantes para o
declínio dos partidos militantes e de massa, principalmente os de esquerda e
socialdemocratas.
Existem também fatores de ordem ideológica. Com a
queda e o fim da URSS chegou-se também ao fim da luta sistêmica – o fim da luta
que opunha dois sistemas de forma universal, econômica, política, social e
ideologicamente: o capitalismo e o comunismo. Um sistema venceu. Nem Cuba e nem
a Coréia do Norte são oposições sistêmicas ao capitalismo. A China é um modelo
misto. Com isso, os partidos de esquerda, em praticamente todo o mundo,
passaram a integrar e operar no sistema capitalista. Vejam-se os partidos da
esquerda brasileira: o paradigma programático principal de suas lutas não é o
socialismo.
No auge da sociedade industrial, que coincidiu mais
ou menos com o período da Guerra Fria, os partidos precisavam ter poderosas
organizações partidárias vinculadas a setores sociais definidos, a quem
representavam, para serem competitivos eleitoralmente e para terem capacidade
de interferir nas esferas do Estado, visando viabilizar políticas públicas e
direitos em favor de seus representados. As próprias distinções ideológicas e
programáticas eram mais definidas e demarcadas.
Com o novo quadro que se institui no final do
século XX e nessas duas décadas do século XXI, surgem novas características: há
uma maior diluição das diferenças ideológicas e programáticas, alianças mais
amplas e plurais se constituem para dar apoio a governos, os partidos reduzem
suas estruturas organizacionais em termos de militância organizada, há um
esvaziamento da dinâmica sindicato-parido, as lutas por direitos sociais e
trabalhistas (base do Estado de Bem-estar) cede espaço para pautas identitárias
e políticas de moralidade.
Enfim, como nota Piter Mair, a militância, as
mobilizações e os comícios perdem importância (tendência reforçada pela
internet), os partidos se afastam dos cidadãos e das bases sociais e suas
organizações se tornam mais enxutas e burocratizadas. A rigor, os partidos se
afastam da sociedade e fluem para o Estado. Tornam-se partidos-Estado,
expressões do Estado e dos governos.
Os partidos se tornam máquinas do poder, cuja
relação com a sociedade não se define mais pela organização, pela representação
social especifica, pela militância, mas por uma relação meramente eleitoral.
Esta relação se define cada vez menos pelos preceitos de uma hegemonia estável
e mais pelas circunstâncias do momento. Exemplo disso é a flutuação de votos,
por exemplo, entre Lula e Bolsonaro.
A dependência dos partidos ao Estado e às
estruturas do governo ocorre em várias democracias. No Brasil, essa dependência
é bastante acentuada: os partidos dependem dos fundos eleitorais e partidários,
do sistema de mandatos, cargos e privilégios. Os partidos, incluindo os de
esquerda, fundem seus sistemas de interesses mais com os interesses do Estado e
dos governos do que com os interesses da sociedade.
São poucos os parlamentares, tanto no Brasil quanto
em outros países, que fazem uma crítica contundente ao sistema de privilégios
agregados no setor público, ao sequestro dos recursos públicos para esse setor
e à sistemática incapacidade do poder público de resolver problemas cruciais da
economia, da sociedade, da perda de direitos etc.
Os eleitos, os parlamentares, seus assessores fazem
parte de uma elite pública que vive de cargos e privilégios estatais. A CPI da
Covid revelou não apenas uma criminosa estrutura inoperante e operante do
Estado e do governo contra a sociedade, mas também uma igualmente criminosa
omissão dos parlamentares que não fiscalizaram, não denunciaram, não fizeram
averiguações in loco, deixando o povo no seu próprio abandono.
Os partidos estão em crise? Vários analistas optam
por responder esta pergunta de forma ambígua. Por um lado, enquanto estruturas
partidárias organizadas da sociedade, de fato, os partidos estão se
enfraquecendo. Mas enquanto máquinas de poder insuladas no Estado, que
controlam mandatos, cargos, privilégios e verbas públicas, os partidos estão se
fortalecendo.
Um dos aspectos que fortalece os partidos enquanto
máquinas de poder do Estado diz respeito à perda de relevância das mobilizações
populares. No passado, em grande medida, essas mobilizações eram convocadas e
lideradas pelos partidos. Recentemente, os partidos são coadjuvantes dessas
mobilizações. Essas são convocadas a partir de eventos casuais, a exemplo do
assassinato de George Floyd, ou a eventos circunstanciais, a exemplo do Fora
Bolsonaro e outros tipos de lutas políticas e pautas pontuais. Mas o fato é que
as mobilizações têm pouco impacto resolutivo sobre os rumos das políticas
estatais e as decisões parlamentares. Isto confere um conforto aos partidos no
sentido de que os seus próprios interesses são o centro de suas decisões.
O que se tem, então, é uma crise da relação dos
partidos com a sociedade. E esta é a crise da democracia, o agravamento da
crise da representação, a crise da democracia como democracia de partidos. As
consequências dessa crise são várias. Alguns analistas chamam a atenção para uma
crescente despolitização, tanto dos políticos e dos partidos, quanto da
sociedade. O linguajar tecnicista e administrativista domina cada vez mais nas
conversas dos políticos. Este é um largo caminho para a inoperância e a
incompetência. Em política, as soluções precisam ser políticas. A técnica e a
administração devem ser auxiliares da política. Mas os partidos e os políticos
inverteram essa equação.
O afastamento dos partidos da sociedade produz uma
inevitável despolitização, desorganização e perda de qualidade cívica da mesma.
Isto abre as portas para uma crescente influência de grupos religiosos,
fragmentação de pautas, fake News e pós-verdades, visões obscurantistas e
anticiência, teorias conspiratórias etc.
Sempre existirão políticos oportunistas prontos
para abraçar essas pautas para encurtar seus caminhos para o poder. As novas
ondas de extrema-direita se aninham nesse ambiente de despolitização e
desorganização social. Capturam massas amorfas, mergulhadas em sua própria
solidão. Este é o maior custo a ser pago pela transformação dos partidos
democráticos e de esquerda de partidos da sociedade em partidos do Estado. O
risco é alto: o do definhamento das democracias.
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