terça-feira, 28 de junho de 2022

Quando viro a chave do carro...

 

Quando viro a chave do carro...

 

Carlos Abraão Moura Valpassos*

 





Minha velha Toyota Bandeirante resiste ao tempo melhor do que muita gente – inclusive eu. Há mais de 15 anos na família, ela não é confortável, não é veloz e com os valores atuais do diesel, não é econômica. Ela, todavia, é confiável e tem um lugar reservado em meu coração. E quando o universo conspira para que algum raro defeito se manifeste e somos obrigados a parar no acostamento, sempre sou tomado pelo pensamento de que “é mais uma história para ter com a Bandeirante”. Eu a chamo de “Soberana” porque assim a imagino, altiva, a 70 km/h nas estradas. É romântico – e bucólico. No entanto, como o amor e a morte costumam andar de mãos dadas (Eros e Thanatos), toda vez que viro a chave da Soberana sou tomado por um sentimento de culpa. Meu filho costuma brincar dizendo que o motor da Bandeirante repete de modo ritmado “Antropoceno, Antropoceno, Antropoceno”. Ele está certo.

O Antropoceno é o conceito que indica que vivemos uma nova era geológica onde as atividades humanas interferem diretamente nas dinâmicas do planeta. Pode soar bonito, mas, na verdade, é catastrófico. Trata-se da constatação de que produzimos demais, poluímos demais e nos preocupamos de menos. E tudo isso altera o sistema planetário: gera aquecimento da atmosfera, altera a acidez dos oceanos, desmata, produz uma quantidade enorme de lixo, desencadeia processos de extinção de espécies e, assim, de modo menos perceptível do que lento, nos conduz à degradação da vida terrestre. Os dados não são assustadores, são muito piores que isso. Mesmo assim muitos cientistas acreditam que ainda é possível conter o aquecimento global e com isso manter as esperanças da vida humana na terra. Sou um antropólogo e, infelizmente, não compartilho dessa esperança. Muitos ressaltam que o sistema econômico vigente é incompatível com a preservação do planeta. Concordo com isso, mas não vejo sinais de que qualquer alteração substancial vá acontecer.

Quando os países europeus se deram conta de que a poluição do ar era um problema com desdobramentos sobre a saúde da população, com consequências nefastas, restringiram a produção de carros a diesel. Parecia promissor, mas não era. A frota de antigos carros a diesel europeia foi vendida para países mais pobres, como a Nigéria, por exemplo. Lá, as pessoas tiveram acesso a carros melhores e, em poucas décadas, as marcas do Antropoceno na atmosfera começaram a adentrar os sistemas respiratórios dos nigerianos, aumentando a incidência de câncer de pulmão e outras doenças que encerraram precocemente a vida de milhares de pessoas.

As desigualdades do mundo são inúmeras e a pobreza é um problema cruel e constante. Em um sistema econômico onde consumo e produção se entrelaçam para a produção de bem-estar, a geração de energia e a liberação de carbono se destacam. Eros e Thanatos se abraçam e observam o desenrolar das ações humanas. Não faltam dilemas éticos e questões práticas. Bem-estar de alguns, pobreza e desejos de consumo de outros – poluição, degradação e morte por todos os lados. O Antropoceno é um nome bonito para o colapso e para o sofrimento negligenciados.

Desse modo, quando viro a chave da Bandeirante, sei que a bomba de combustível impulsiona o diesel para os cilindros de combustão que, em instantes, expulsarão os resíduos da queima em forma de fumaça no escapamento, impregnando o ambiente com um aroma que me é muito familiar – e nocivo. Esse diesel queimado é o resultado de inúmeros processos degradantes da extração de petróleo, processos que geram milhões de empregos e movem a economia ao mesmo tempo em que destroem paulatinamente os oceanos, poluem a atmosfera e matam inúmeras espécies. As empresas de petróleo nos prometem seguir rigorosamente as leis de preservação ambiental – enquanto praticam uma atividade de inevitável degradação ambiental; eis a contradição materializada. 

E nesse contexto, eu viro a chave da Bandeirante, para levar meu filho para escola – pois ele precisa estudar para ter uma profissão – e sigo para meu trabalho – pois preciso pagar as contas, para que meu filho tenha uma profissão -. E a Bandeirante, como um irrelevante grão de areia na beira da praia, continua nos lembrando que está tudo errado: “Antropoceno, Antropoceno, Antropoceno”.


Ps.: O seu carro - flex, híbrido ou elétrico - não melhora a situação, é apenas uma ilusão reconfortante.

 

 

*Professor de Teoria Antropológica 

Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense

 


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