Uma retrospectiva
impossível *
George
Gomes Coutinho **
Retrospectivas abundam nesta
época do ano. Mas, as considero impossíveis. Inclusive esta.
Se pensarmos bem, até o conceito
de “ano” como via para mensurar a passagem do tempo em nossa cultura tem algo
de arbitrário. Este, o ano, se expressa no calendário gregoriano adotado por
nós ocidentais gradualmente a partir do século XVI onde os dias, a menor
unidade do calendário, foram estabelecidos em 365. Ainda temos um calendário
dividido em meses e estes em semanas. Mas, poderíamos contar o tempo a partir
das estações do ano ou qualquer outro parâmetro. Até poderíamos contar em
“luas”.
Portanto, “ano” sequer é algo
natural e tampouco universal. Nem é perfeito. Afinal, há os anos bissextos como
solução consensual para as imprecisões do calendário gregoriano. Nesta linha de
raciocínio, que ressalta a imperfeição dos constructos humanos, não se pode
supor que as retrospectivas dariam conta do complexo do real. São tão
arbitrárias quanto a unidade temporal que pretendem interpretar.
O recorte de sucessão de fatos e
eventos ocorridos no ano expressa mais um conjunto de valores do que qualquer
coisa próxima a uma idéia de verdade. Afinal, na unidade temporal chamada
“ano”, é possível realmente estabelecer um ranking do que teria transcorrido de
mais significativo? Até mesmo o posicionamento no espectro político funcionará
como filtro que irá destacar determinado acontecimento ou ignorar de maneira
solene outros tantos. Citando um único fato de 2016: a morte de Fidel Castro.
Se você lerá ou ouvirá que o personagem histórico foi uma esperança latina
heróica ou um déspota, compreenda que o rótulo diz mais sobre quem o
interpretou assim ou assado do que sobre o próprio Fidel “concreto”.
De minha parte resumo 2016 em uma palavra:
vertigem. E saio deste covardemente agarrado na segura balsa clássica de
Charles Dickens no início de seu “A Tale of two cities”, o “Conto de duas
cidades”, na tradução de Sandra Luzia Couto: “Aquele foi o melhor dos tempos,
foi o pior dos tempos; (...) tínhamos
tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o
Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (...).”. Que venha 2017.
* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 31 de dezembro de 2016
** Professor de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
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