domingo, 1 de janeiro de 2017

Uma retrospectiva impossível

Uma retrospectiva impossível *

George Gomes Coutinho **

Retrospectivas abundam nesta época do ano. Mas, as considero impossíveis. Inclusive esta.

Se pensarmos bem, até o conceito de “ano” como via para mensurar a passagem do tempo em nossa cultura tem algo de arbitrário. Este, o ano, se expressa no calendário gregoriano adotado por nós ocidentais gradualmente a partir do século XVI onde os dias, a menor unidade do calendário, foram estabelecidos em 365. Ainda temos um calendário dividido em meses e estes em semanas. Mas, poderíamos contar o tempo a partir das estações do ano ou qualquer outro parâmetro. Até poderíamos contar em “luas”.

Portanto, “ano” sequer é algo natural e tampouco universal. Nem é perfeito. Afinal, há os anos bissextos como solução consensual para as imprecisões do calendário gregoriano. Nesta linha de raciocínio, que ressalta a imperfeição dos constructos humanos, não se pode supor que as retrospectivas dariam conta do complexo do real. São tão arbitrárias quanto a unidade temporal que pretendem interpretar.

O recorte de sucessão de fatos e eventos ocorridos no ano expressa mais um conjunto de valores do que qualquer coisa próxima a uma idéia de verdade. Afinal, na unidade temporal chamada “ano”, é possível realmente estabelecer um ranking do que teria transcorrido de mais significativo? Até mesmo o posicionamento no espectro político funcionará como filtro que irá destacar determinado acontecimento ou ignorar de maneira solene outros tantos. Citando um único fato de 2016: a morte de Fidel Castro. Se você lerá ou ouvirá que o personagem histórico foi uma esperança latina heróica ou um déspota, compreenda que o rótulo diz mais sobre quem o interpretou assim ou assado do que sobre o próprio Fidel “concreto”.

De minha parte resumo 2016 em uma palavra: vertigem. E saio deste covardemente agarrado na segura balsa clássica de Charles Dickens no início de seu “A Tale of two cities”, o “Conto de duas cidades”, na tradução de Sandra Luzia Couto: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; (...)  tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso, íamos todos direto no sentido contrário (...).”. Que venha 2017.

* Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 31 de dezembro de 2016


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

Nenhum comentário:

Postar um comentário