domingo, 30 de setembro de 2018

Do que vi e vivi no #elenão em Campos dos Goytacazes



Do que vi e vivi no #elenão em Campos dos Goytacazes

Paulo Sérgio Ribeiro

Pensei duas vezes antes de esboçar esse relato. Admito: por mais que me empenhe na narrativa, acabarei sendo omisso diante das inúmeras tramas da história social entrecruzadas naquela tarde de sábado em que chuva e sol se acotovelaram para buscar o seu lugar na Praça São Salvador. O nome do “titular” desta praça, marco colonial dos nascidos (e sacudidos) em Campos dos Goytacazes, cidade encravada no Norte Fluminense, perdeu um pouco da sua univocidade, pois não é forçado afirmar que, do ângulo de quem enxerga uma vida em comum a partir da Carta Constitucional de 1988, as mulheres, dispensando qualquer atributo de “santidade”, desnudaram-se para salvar a todos e todas de um resultado eleitoral que venha a confirmar o tiro de misericórdia num regime democrático que padece em longa agonia.

Aquela praça, quase sempre mero lugar de passagem, tornou-se a ágora do protagonismo feminino. Ao fundo, uma catedral vetusta e indiferente ao destino dos homens e mulheres e, defronte, uma linha imaginária a nos separar de eleitores/seguidores do presidenciável Jair Bolsonaro espreitando nosso ato com provocações oportunistas. Não haveria mesmo como ser de outro jeito: tornar-se mulher é reconhecer-se emparedada entre a tradição e a força. Desafio não menos imperativo, diga-se, para a comunidade LGBT que também se fez presente no ato com as suas cores de tamanho significado.

Nós “homens”, na acepção convencional que uma cultura heteronormativa nos franqueia, lá também estivemos e espero termos nos comportado à altura da política posta em movimento pelas mulheres de maneira horizontal quanto à coordenação do ato e plural no tocante às lideranças e associações que se fizeram ouvir. A voz própria das mulheres ecoou pelas quatro jornadas, concretizando um protagonismo que é a um só tempo meio e fim na luta contra a última cidadela do “velho homem”, majoritariamente branco e tipicamente burguês, que, desde o impeachment fraudulento da primeira mulher que elegemos Presidenta da República, refugiou-se no Estado operando uma regressão histórica sem precedentes.

Esse refúgio (ou caverna, preferirão alguns) diante das novas subjetividades é uma resposta um tanto virulenta à crescente deslegitimação social do modo de vida calcado na masculinidade hegemônica e, não menos, à perda relativa de eficácia dos padrões de dominação nela referidos, seja nas relações íntimas de afeto, seja na formação mesma de nossa esfera pública. Não à toa, esta última tem sido deformada como um preço a ser pago pelo sítio imposto às liberdades civis, confirmando a olhos vistos a pusilanimidade da imprensa tradicional nativa. Mas a liberdade, digamos, é um rio que nunca deixa de correr, por mais que suas margens o comprimam. A profusão de manifestações do #elenão ocorridas em centenas de cidades no Brasil e no mundo demonstra simplesmente que não há como voltar atrás.  

Voltando a nossa praça que, por algumas horas, bem poderia ter sido renomeada “Praça das Profanas Salvadoras”, chamou-me atenção que os agitadores contrários ao ato só se faziam perceptíveis berrando/buzinando de um carro ou moto. Desnecessário dizer, todos homens. Sintomático posicionar-se politicamente com auxílio de um bem utilitário cuja difusão consagra o rebaixamento do transporte coletivo em nosso planejamento urbano, castrando possibilidades de convívio social orientadas pelo que facultaria a todos o seu igual valor moral. Nós mulheres e homens, por sua vez, nunca estivemos tão à vontade andando com as próprias pernas.

A explicação é simples. Fizemo-nos multidão enquanto eles, se muito, foram o que sempre são: massa. Em multidão, indivíduos diferentes agem em torno de uma finalidade comum sem prejuízo do julgamento que exercem sobre suas próprias motivações. Já no seio da massa, ensina a psicologia social, os indivíduos se “desindividualizam” por assim dizer, tornando-se passivos ante os estímulos externos que a ação coletiva lhes impõe em face dos anseios (instintos?) primários que os agregam. Logo, não é incomum constatar que bolsonaristas confundam a desinibição diante do ridículo e do grotesco com uma suposta autenticidade. Sendo assim, garantimos à civilização o seu lugar merecido: a praça pública por onde passam todos os destinos do nosso torrão campista. Quanto àqueles que flertam com a barbárie, restou-lhes a sombria Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, vulgo "Igreja do Saco". Nada mais justo, pois, para os carcomidos que se deixam fascinar pelo discurso de ódio à política. Vão com Deus!

Brincadeiras à parte, uma eventual derrota de Bolsonaro no 1º ou 2º turno não implicará, necessariamente, no declínio do fascismo à brasileira que ele vocaliza. O piso eleitoral de mais de 20% que alcançou é uma realidade com a qual haveremos de lidar de outubro em diante. Da pequena grande idealidade que experimentamos na Praça São Salvador, assim como nas demais praças deste país, caberá reelaborá-la dando continuidade ao trabalho de conjugar, teoricamente, o ativismo identitário com as lutas de classe. Um terreno fértil surge para tal tarefa histórica e as mulheres e demais minorias ensaiam demarcá-lo nos seus próprios termos.

Grato por viver.

2 comentários:

  1. Excelente texto Paulete... Li duas vezes, com gosto, de tão bem construído. Ao fundo coloquei "vaca profana" do Caetano como trilha sonora. Parabéns!

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  2. Obrigado, Dom Georgius. Lembrar de Caetano é sempre bem vindo. Também o parabenizo pelo texto corajoso que fez em relação à truculência contra a UFF/Campos. É tempo de tomar partido, no que esta expressão tenha de mais generoso.

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