terça-feira, 10 de março de 2020

Criminalizar ou Legalizar o aborto?*


Criminalizar ou Legalizar o aborto?

A criminalização do aborto é estabelecida por uma lei de 1940. Se entendemos que uma lei é algo que expõe um tipo de moral, então fica possível perceber que, mais do que impedir a realização de abortos, aquela lei tem por objetivo firmar e impor uma opinião sobre o tema. Muita coisa mudou de 1940 para cá, mas há grupos sociais que entendem que a criminalização do aborto é importante para salvaguardar a vida de seres em processo gestacional – por isso a lei, pensam, deve ser mantida.
No plano do “oficial”, o Brasil, então, se apresenta com uma legislação “pró-vida”, mas, no plano do “oficioso”, quando consideramos as estimativas sobre a realização de abortos no país, vemos que a lei, enquanto discurso moral, é reiteradamente negada na prática. Todavia, mesmo não seja cumprida, ela não deixa de ter impactos. Ela não impede abortos, pois as pessoas, decididas a faze-los, encontram seus caminhos; mas, uma vez que existe a criminalização, esse caminho pode ser tortuoso. Em situações de desespero, por motivos dos mais variados, mulheres se submetem a procedimentos extremos: agulhas de tricô, injeções salinas, infusões de ervas, medicamentos arriscados, pancadas na região abdominal etc.
O efeito da criminalização é a elevação dos custos financeiros para a realização de um aborto em clínicas médicas e, para quem não dispõe de tais recursos – que atualmente estão em torno de R$5.000 – o que se eleva são os riscos físicos que podem acarretar hemorragias uterinas, infecções, perda da capacidade reprodutiva e até mesmo a morte. O que se observa é uma criminalização que não atinge o objetivo de impedir a realização de abortos; e que reproduz desigualdades na medida em que possibilita que mulheres com melhores condições financeiras realizem abortos seguros em clínicas clandestinas, reservando às mulheres mais pobres os procedimentos mais arriscados e os profissionais menos capacitados. A legalização do aborto não obrigaria ninguém a realiza-lo, apenas daria a oportunidade de que o procedimento fosse executado de forma menos arriscada e violenta.


           


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Publicado na Página 04 do Jornal Folha da Manhã de 18 de Agosto de 2018.

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