quarta-feira, 18 de março de 2020

Democracia como fraude e possibilidade


Democracia como fraude e possibilidade

Paulo Sérgio Ribeiro

Passado o 15 de março, data para a qual fora anunciado um ato de “protesto” contra instituições basilares do nosso ordenamento jurídico-político – Supremo Tribunal Federal, Câmara dos Deputados e Senado Federal – por grupos de extrema-direita que compõem o núcleo duro do bolsonarismo, chama-me atenção certa ironia do posicionamento do Presidente da República. De início, Bolsonaro negou ter convocado aquela provocação facistóide para, em seguida, nela confraternizar com sua claque à revelia das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde diante do estado de emergência ocasionado pela epidemia do Covid-19, vulgo Coronavírus.

Que a manifestação de irracionalidade da persona Bolsonaro seja atributo de um padrão de comportamento com o qual seus “seguidores” estabeleçam uma relação de simbiose, isto já é mais do que sabido. Mas há algo no enredo dessa ópera bufa que não deveria passar despercebido: ao acusar as eleições presidenciais de 2018 de fraudulentas como mote para a afronta do dia 15, Bolsonaro atira no que vê e acerta no que lhe é impossível enxergar e, não menos, no que a autocracia burguesa que o tomou como a bola da vez de sua agenda seria capaz de admitir.

Caso levemos a sério a etimologia de “democracia”, havemos de concordar que os regimes democráticos ao leste e ao oeste de Berlim são experiências um tanto adulteradas do modus vivendi contido naquela expressão. Donde vem a coisa que atende por tal nome e por que haveria um hiato entre o seu contexto de origem e o mundo contemporâneo?

Da Antiguidade à era moderna, por democracia não se concebia de maneira estanque um regime político caracterizado pela escolha periódica de governantes, justamente porque em seu nascedouro – a Atenas do século V e IV a.C. – ser cidadão correspondia a ser membro de uma comunidade de iguais que seria tanto causa como consequência de uma decisão coletiva. Logo, se todos tinham igual potencial de influir nos processos decisórios, a única forma coerente de escolher um governante seria o sorteio e não uma eleição.

Antes de prosseguirmos, algumas advertências: o “governo do povo” surgido da experiência ateniense era demasiado restrito por excluir de antemão mulheres, escravos e estrangeiros (“metecos”); a democracia direta praticada no aludido cenário encontra limitações estruturais em sociedades cujo território e população tenham a magnitude que conhecemos hoje; por mais igualitário que fosse o processo decisório no seio da assembleia popular, sempre haveria alguma distorção na formação da vontade coletiva se, por exemplo, uma liderança revelasse competência política superior aos demais para conduzir os assuntos públicos sem, necessariamente, qualificá-los do ponto de vista fático. Neste sentido, a Ágora talvez fora o palco de uma luta de vida e morte entre os predispostos à busca da verdade no âmbito filosófico e os sofistas que a confinavam a habilidades retóricas manipuláveis segundo visões parciais e interesses momentâneos.  

Contudo, salienta Luís Felipe Miguel[1], malgrado seus pecados de origem, a democracia na Grécia antiga, por intermédio da assembleia popular e do preenchimento de cargos por sorteio, possibilitava ao homem comum uma presença permanente nos processos decisórios, obrigando eventuais líderes a serem assim reconhecidos se, e somente se, seguissem de perto seus vigilantes liderados, tendo em vista a rotatividade do exercício do poder assegurada por tais instituições.

Aterrissando no século XXI, confirmamos experiências democráticas diametralmente opostas ao ethos grego: a escolha de governantes mediante um processo eleitoral no qual uma minoria dirigente está indelevelmente separada dos governados no espaço social, na medida em que exerce uma representação política sedimentada na desigualdade de recursos de toda ordem; desigualdade esta que, por sua vez, reproduz-se pelo uso do poder econômico e pela partidarização da mídia e (de modo perturbador atualmente) do poder judiciário, condenando a maioria à negação de sua pluralidade de valores ao reservar-lhe um papel meramente passivo na construção dos programas e projetos em disputa.

Até aqui, o exposto é um tanto consensual, seja na literatura especializada, seja no senso comum.

Onde mora o busílis? Diante da crise de representatividade vivida nas democracias liberais, agravada no Brasil por um processo inconcluso de transição democrática chancelado pela lei de anistia, um político tradicional, advindo dos porões da ditadura civil-militar, após sete mandatos consecutivos como deputado federal, ascende ao cargo de maior autoridade do país através de uma verdadeira engenharia social que, operada nas redes virtuais, transfigura-o em um político “anti-sistema” capaz de catalisar os sentimentos morais de uma parcela majoritária dos(as) brasileiros(as) que, por razões inegáveis, veem-se impotentes no sistema político.  

Manejando uma linguagem popular facilmente assimilável pelo conservadorismo moral que permeia diferentes classes sociais, Bolsonaro figura como um improvável campeão de votos saído diretamente do demos ao vocalizar sem qualquer moderação um discurso incriminador da política profissional, autorizando, assim, expressões públicas de ódio de classe travestidas de “isenção” de quem enxerga-se contra tudo e contra todos.

Ora, diante da horrenda criatura, caberia a nós não nos assumirmos seu criador? Ao seu modo e circunstância, Bolsonaro se fez um “igual” dentre seus seguidores sem, todavia, desmentir que aquilo que supostamente critica – o elitismo do nosso sistema político – é, ironicamente, o que lhe faculta a condução de um governo natimorto do ponto de vista da participação popular. Sim, Bolsonaro é um boçal e quem nele votou pode muito bem estar à altura de sua miséria. No entanto – e sem recuar um milímetro na necessária crítica ao governo autoritário que se impôs, pasme, pelo voto popular – é construtivo (no âmbito da análise política) e consequente (no terreno da luta política) enxergar no povo brasileiro tal como ele é a fonte de todas as vicissitudes de nossa experiência democrática? Estaríamos condenados ao eterno retorno de uma democracia sem povo?

Sucumbir à crença antidemocrática de que o povo é um estado bruto da natureza e não um construto histórico, quem sabe, não implique adiarmos a tarefa de reconstruir um regime político em que o poder esteja outra vez nas mãos do homem e mulher comuns. Do contrário, continuaremos confortados pelo ponto de vista da superioridade moral próprio ao elitismo que Bolsonaro et caterva tão bem souberam “denunciar”, inaugurando, pois, uma era de ressentimento que depõe contra interesses coletivos da (ainda?) nação brasileira. 

Ao diálogo, pois.


[1] MIGUEL, Luís Felipe. A democracia domesticada: bases antidemocráticas do pensamento democrático contemporâneo. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro: IUPERJ, vol. 45, nº 3, 2002, p. 484.

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