quarta-feira, 18 de março de 2020

Sobre o Direito ao Aborto*


28 de Setembro é o “Dia de Luta pela descriminalização do aborto na América Latina e no Caribe”. Manifestações são realizadas em várias cidades reivindicando o fim da criminalização do aborto, a legalização e a consequente prestação do serviço de abortamento pelo sistema público de saúde. Não se trata de “defender”, “promover”, “apoiar” ou “desejar” o aborto, mas sim de tornar disponível um procedimento para quem o considere necessário como último recurso para não ter um filho. Pesquisas indicam que cerca de 1 milhão de abortos ilegais são realizados anualmente no Brasil; a reivindicação da legalização não visa tornar o aborto um método contraceptivo ou uma prática banalizada, mas sim permitir que as mulheres que optam pela interrupção de uma gravidez não se submetam a procedimentos em ambientes insalubres, perigosos e criminosos. Falar em 1 milhão de abortos anuais é admitir que a criminalização não impede a prática, mas expõe as mulheres à uma série de riscos. Ninguém opta por interromper uma gestação de modo leviano: a decisão implica sofrimento e frustração. Nossa legislação criminaliza o aborto, mas permite a reprodução in vitro e suas consequências: congelamento e descarte de embriões, sem contar os embriões que não conseguem se desenvolver. É uma discussão delicada, mas em um Estado que se diz laico e que se inclina cada vez mais para ideais liberais, a criminalização do aborto se apresenta como um contrassenso: ela não impede os abortos e nega o direito de decisão das cidadãs. E se lembrarmos que cerca de 20% das mulheres brasileiras, entre 18 e 49 anos, já vivenciaram um aborto, então teremos a dimensão de que não se trata de uma prática rara, nem distante do cotidiano. A mulher que aborta não possui um perfil específico, ela está em todas as religiões, classes sociais e possui todas as cores de pele. Todavia, quando analisamos a questão, percebemos que são justamente as mulheres mais pobres – que não podem pagar pelo procedimento clandestino em clínicas caras – que mais sofrem os efeitos com a criminalização. A legalização, nesse sentido, visa reduzir as desigualdades – de gênero, de classe e de raça.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

* Publicado na página 04 do Jornal Folha da Manhã de 28 de Setembro de 2019.

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