domingo, 25 de fevereiro de 2018

Golpe e autonomia universitária


Golpe e autonomia universitária

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Luís Felipe Miguel é um cientista político que dispensa apresentações. Seus escritos são hoje referência em cursos de graduação e pós-graduação em ciências sociais. Professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), Miguel oferece neste semestre uma disciplina optativa – “Tópicos Especiais em Ciência Política 4: O golpe de 2016 e a democracia”. Como o próprio disse, trata-se de um ato “corriqueiro” que não deveria causar frenesi. Contudo, um alvoroço tomou conta de sua rotina profissional desde que jornais de grande circulação conferiram à sua disciplina um injustificado caráter polêmico e o Ministro da Educação, Mendonça Filho, declarou que encaminharia uma consulta aos órgãos de controle do Poder Executivo Federal a respeito da sua “legalidade”. Eu bem poderia encurtar esse texto afirmando o óbvio: questionar a vinculação à lei do ato de lecionar sobre o “golpe de 2016” é tão esdrúxulo quanto questionar um seminário dedicado ao “golpe de 1964” ou aos demais processos de ruptura institucional que dão relevo à república brasileira. Não obstante, dimensionar o desvio ético de Mendonça Filho exige-nos mais do que isso, considerando a sequência de violações à autonomia universitária iniciada num governo ilegítimo do qual o ministro nada mais é que uma caricatura.

A condução coercitiva do reitor, da vice-reitora e demais funcionários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em mais uma ação espetaculosa da Polícia Federal (PF), intitulada acintosamente “Esperança Equilibrista”; o suicídio de Luis Carlos Cancellier, então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que sofrera uma prisão arbitrária da PF na operação “Ouvidos Moucos”; a intimação do médico Elisaldo Carlini, professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), especializado em pesquisas sobre entorpecentes, para depor na polícia de São Paulo em inquérito no qual é acusado, pasmem, de “apologia ao crime” são sintomas da perda de centralidade da questão democrática. A autonomia universitária é uma orientação normativa ausente de sentido quando um regime democrático se fragiliza. Ora, assim como a autoridade política se exerce sob a delegação temporária do governados, estes mantêm-se soberanos se, e somente se, forem capazes de confrontar toda e qualquer autoridade que, incapaz de justificar racionalmente os seus atos, recorra à força e à submissão.

A censura às ciências sinaliza a percepção da universidade como um perigo subversivo ao regime de força instalado no país, privando-nos daquilo que é o sal da terra do mundo intelectual: o dissenso. Não que a universidade fosse imune ao autoritarismo como um modus vivendi dos brasileiros quando ainda vivíamos sob a ilusão de que a redemocratização passaria dos 30... A estrutura organizacional da universidade confirma a olhos vistos como a demarcação de áreas de conhecimento pressupõe a naturalização da hierarquia social dos seus objetos, uma espécie de luta de classes sublimada no tocante à distribuição de recursos para o trabalho científico. Contudo, a universidade talvez seja a única instituição na modernidade cuja razão de ser encontra-se na vitalidade de sua crítica interna. Herdeira do ideário iluminista, as universidades são o lugar em que teorias aparentemente sólidas se pulverizam à medida que um novo patamar da “maioridade” da qual nos falava Kant é alcançado, isto é, quando se renova a capacidade dos indivíduos pensarem por si mesmos, sem deferência a quaisquer argumentos de autoridade, redefinindo assim as fronteiras do conhecimento.

A docência e a pesquisa científicas – seguindo uma lógica que independe da tutela do Estado e da religião – relacionam-se com as práticas sociais extramuros da universidade, devolvendo um sentido à interrogação que tais práticas nos suscitam. Nada mais salutar, portanto, do que uma disciplina que promova a reflexão criteriosa sobre um fato que afeta a todos os brasileiros e os vincula ao mundo: a diluição do pacto social ratificado na Constituição Federal de 1988 ou, dito com todas as letras, o golpe parlamentar de 2016. Daria muito gosto estar matriculado numa disciplina como a ministrada por Luís Felipe Miguel. Seria instigante acompanhar o passo a passo desse debate na UnB o qual, talvez, tenha por pano de fundo um acerto de contas com certas expectativas no interior da ciência política que relativizaram a coexistência problemática da democracia e do capitalismo na "Nova República", sacrificando, pois, o nosso intelecto com a crença resignada de que “se as instituições funcionam, está tudo bem”.

Sim, elas “funcionam” e não, não estamos nada bem.

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