sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

“Não sou escravo de nenhum senhor”


“Não sou escravo de nenhum senhor”

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Por um mísero décimo, a Paraíso do Tuiutí não sagrou-se campeã do carnaval carioca. No seu lugar, levou os louros a Beija-Flor cujo samba-enredo – “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu” – ecoa uma narrativa do Brasil que tende a reduzir suas iniquidades (as massas “abandonadas ao léu”) ao monstro secular da corrupção, notadamente àquela corrupção atribuível aos donos do poder (“ganância veste terno e gravata”), oferecendo-nos um grito de agonia (“Oh pátria amada, por onde andarás?”) voltado a um horizonte de ação pontilhado pelo messianismo (“Sigo carregando a minha cruz, A procura de uma luz, a salvação!”). Digno de uma piada pronta, o samba-enredo campeão, que apresenta ressonâncias de discursos fomentados no e pelo noticiário da “Lava Jato” com o seu viés maniqueísta da política brasileira (notadamente quando a associa à experiência da esquerda no poder), fora sugerido por ninguém menos do que Gabriel David, filho de Aniz (Anísio) Abraão David, patrono da Beija-Flor e velho contraventor da Baixada Fluminense, condenado a 47 anos de prisão por comandar jogos ilegais no Rio, recorrendo da sentença no TRF da 2ª região. Em tempos de criminalização da política e politização da justiça, nada mais trivial do que a festa de Momo redimir seus filhos mais diletos sob o manto da indignação seletiva.

A Paraíso do Tuiutí, por sua vez, ergueu um perfeito contraponto à Beija-Flor já no título do seu samba-enredo: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. O lamento por um república carcomida cede lugar ao questionamento da escravidão como pedra angular de um processo de longa duração que jaz “um rito, uma luta, um homem de cor” no tempo presente. A constituição desse homem e mulher despossuídos como sujeito ainda não chegou a termo em face das metamorfoses do “cativeiro social” tão bem retratadas em suas ousadas fantasias e carros alegóricos e sua potência cívica revelou-se na imagem da “sentinela da libertação” contida no verso final do enredo já nascido épico. Uma das definições possíveis de “sentinela” é a de quem guarda posição para descobrir antecipadamente inimigos. Não seria por menos. A ação difusa desses “inimigos” se opera num jogo de linguagem mediado diuturnamente nos jornalões pela opinião publicada das corporações que parasitam o Estado. Em nome delas, o desfile das escolas de sambas, dirigido para a audiência da tevê aberta em detrimento dos trabalhadores da cultura que o viabilizam e dos foliões populares que o prestigiam, é submetido a uma única voz, a dos “locutores”.  

Esses bonecos de ventríloquo recrutados nas redações para narrar os desfiles sequestram com seus clichês surrados a intertextualidade própria dos sambas-enredo, confirmando-os como um espetáculo para as massas com o qual a dramatização da desigualdade é castrada de antemão pelo monopólio de representação da cultura popular reproduzido pela imprensa tradicional e por seus acólitos na academia. De um lado, temos uma criação cultural autônoma, a escola de samba, pois nela há não somente o advento de um novo gênero musical entre as décadas de 30 e 40, mas um “estar no mundo” que, antes de ter sido engolido pela indústria cultural, potencializava uma forma narrativa de nossas tragicomédias nacionais através da representação subversiva das relações de dominação entre classes e estamentos num Brasil que urbanizava-se acelerada e caoticamente sem priorizar a questão social pertinente à população negra do pós-Abolição; de outro, a tentativa de negar a complexidade do carnaval carioca por aquilo que ele ainda invoca de maneira provocadora: um lugar social que não se adequa facilmente à pretensão dos intelectuais classistas de tomarmos “os pobres” como objeto.

Em sentido lato, intelectuais todos somos. Todavia, o dilema que se insinua para as pessoas que fazem do pensamento (científico, artístico etc.) o seu ofício consiste no exercício da crítica do poder, à medida que requeira a interlocução com os dominados sem torná-la uma troca desigual, isto é, sem lhes retirar um tributo pelo privilégio do seu saber especializado enquanto mais-valia simbólica nas lutas por prestígio do campo intelectual. O código de análise inerente àquele saber não é abandonado pelo intelectual no debate público, mas este pressupõe um trânsito entre diferentes códigos na tarefa sempre inacabada de transformar a população em povo no Brasil. Neste sentido, Jack Vasconcelos, carnavalesco da Paraíso do Tuiutí, e Jessé Souza, autor de “A elite do atraso. Da escravidão à Lava Jato”, ao qual o primeiro parece se reportar diretamente, estão em sintonia ao alargar as fendas do bloco de poder que sustenta o governo ilegítimo. Ambos seguem de perto a recomendação de Joel Rufino dos Santos: os intelectuais classistas “se querem trabalhar enquanto intelectuais para os pobres, devem agir entre as classes, nos seus interstícios, alimentando o ‘espírito de cisão’”[1]. 

E não foi esse o “espírito” que rondou a Sapucaí? Desnecessário dizer que “viralizou” o vídeo em que os locutores da Globo mostram-se atônitos diante do reencontro do criador com a criatura (os “manifestoches”), assim como foi ensurdecedor o silêncio dos mesmos diante da denúncia contundente do golpe e dos seus subprodutos (invalidação de direitos com a Reforma Trabalhista, regressão dos indicadores sociais...) pela Tuiutí e simplesmente patéticos os cortes durante a transmissão do carnaval fazendo seus repórteres baterem cabeça sob os gritos a plenos pulmões do habitual “Fora Temer!” ou do irônico “Vai dar PT!” nas praças onde estiveram país afora. O “príncipe eletrônico” esvaneceu frente a uma folia politizada que, no Sambódromo, pediu passagem para a soberania popular ao invés de sucumbir à condição de plateia passiva numa democracia ferida de morte.  


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[1] SANTOS, Joel Rufino dos. Como podem os intelectuais trabalhar para os pobres? São Paulo: Global, 2004, p.253.

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