A agenda econômica
de Jair Bolsonaro: um salto no escuro
Por Paulo Sérgio
Ribeiro
Definidos os
candidatos ao cargo de Presidente da República: Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando
Haddad (PT).
Segundo turno a
pleno vapor.
A esta altura,
muitos devem estar exaustos com uma disputa eleitoral cujas solicitações são
alucinantes nas redes sociais. Outros tantos, mais do que exaustos, estão
enfadados com uma eleição que mais parece um “terceiro turno” ampliado. O que
está posto? A ruptura institucional de 2016 como limite que as classes
dominantes (sim, uso o termo) impuseram à ampliação da democracia social e da
soberania nacional (marco regulatório original do Pré-Sal e realinhamento geopolítico com a formação dos BRICS) perseguida pelos governos do PT
com os seus acertos e erros. Em seu lugar, observou-se desde então uma luta nua
e crua entre os interesses corporativos da alta burocracia do Estado
(Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Forças Armadas entre outros)
e experimentos inviáveis no médio e longo prazos como a Reforma Trabalhista e a
Emenda Constitucional nº 95.
Passados mais de
dois anos daquele ano que não terminou, ninguém anteciparia com exatidão um
cenário tão aterrador como a onda de violência política dos seguidores de
Bolsonaro[1]
que desfigura o espaço público a ponto de intimidar até mesmo quem investiu no
antipetismo como linha demarcatória de um projeto de poder. Concordo com Luís Felipe Miguel que a direita derrotada nas quatro últimas eleições nem liberal o é, uma vez que seus melhores quadros se mostraram
dúbios diante do manejo das pautas morais como balizador da luta política que sufoca as liberdades individuais. Tais pautas são o mote preferencial da
produção de conteúdo a ser difundido no ambiente virtual, mobilizando afetos
primários – “eu odeio porque odeio!” - que nivelam por baixo o debate
programático.
Contudo, os
programas de governo são efetivos, ainda que o eleitor médio não tenha por
hábito avaliá-los. Os seguidores de Bolsonaro talvez parassem na página 2 se
lhes fossem dado ler mais do que correntes anônimas no WhatsApp. Em respeito
aos mesmos, dei-me ao trabalho de olhar de perto o programa do candidato da
extrema-direita[2],
que se inicia com uma frase de teor aparentemente ufanista - “Brasil acima de
tudo” -, mas que, em verdade, é uma apropriação do slogan “Alemanha acima de
tudo” (Deutschland über alles) adotado por Adolf Hitler no regime
totalitário que comandou na Segunda Guerra Mundial.
O que esse programa
de inspiração nazista revela sobre uma das principais controvérsias de sua
corrida presidencial (ou louca cavalgada, diriam alguns), a saber, economia? Na
seção dedicada ao tema “Liberalismo econômico”, Bolsonaro expõe uma visão de Brasil
bem ao gosto dos editorialistas de nossa imprensa tradicional:
Corruptos e populistas nos legaram um déficit
primário elevado, uma situação fiscal explosiva, com baixo crescimento e
elevado desemprego. Precisamos atingir um superávit primário já em 2020.
Na Câmara dos
Deputados, Bolsonaro votou a favor da Emenda Constitucional nº 95[3],
que limita os gastos primários do governo federal por 20 anos. Por gastos
primários, compreende-se o investimento público orientado para necessidades
sociais (educação, saúde, cultura, segurança pública, entre outras) que, numa
sociedade complexa como a brasileira, são um universo em constante expansão. A
EC 95, porém, deixa de lado os chamados gastos financeiros - pagamento do
principal da dívida pública, juros da dívida e debentures –,
equivalentes a mais da metade do orçamento anual.
Ora, como fazer
crer que o déficit público possa diminuir sem intervir no principal fator de
endividamento? Manutenção de taxas de juros elevadas para conter a inflação
(como meio usual de garantir a ferro e fogo o superávit primário) pode
perfeitamente conviver com uma curva crescente de gastos financeiros,
castrando, assim, as chances de um ciclo econômico sustentável. Mas Bolsonaro
não se abala. Para o “capitão”, o liberalismo com “L” maiúsculo seria uma vara
de condão a resolver todos os males:
As economias de mercado são historicamente o maior
instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social.
Graças ao Liberalismo, bilhões de pessoas estão sendo salvas da miséria em todo
o mundo.
A crença no mercado
livre e autorregulado é simplesmente um ato de fé. Ora, se é plausível admitir que o indivíduo moderno conheceu oportunidades de
realização pessoal inauditas no capitalismo em comparação com o modo de produção feudal e o
mercantilismo, também é forçoso reconhecer que esse sistema econômico nunca gerou solidariedade social suficiente para distribuir de forma justa a riqueza nele produzida. Nesse
sistema, que esculpiu o mundo à sua imagem e semelhança com sucessivas
crises de acumulação capitalista, desenvolveu-se um mercado financeiro cuja
dinâmica destronou a ideologia do lasseiz-faire, tornando-se o
expediente da concentração de capital mediante cartéis e
monopólios.
Ora, se nunca
existiu uma economia de mercado realmente livre, a defesa da ausência de
regulamentação do Estado seria, no mínimo, uma inconsequência em face dos
desafios que envolvem a busca de equilíbrio entre as relações de mercado e a
garantia de direitos sociais previstos constitucionalmente. Voltando à
famigerada EC 95, à qual Bolsonaro deu o seu voto de aprovação na Câmara, o que
nos é oferecido? Poderíamos resumir na forma de um “modelinho” de causa e
efeito: o governo paga uma taxa de juros alta (1); o mercado financeiro
acomoda-se à taxa básica de juros aumentando as suas taxas para o crédito ao
consumidor e às empresas (2); o crédito caro reduz a demanda das pessoas e as
empresas reagem reduzindo o investimento (3); demanda menor implica,
tendencialmente, queda da inflação (4); esta é alcançada assumindo-se, todavia, a queda do crescimento econômico e o aumento da taxa de
desemprego sob o estresse da manutenção do pagamento do principal e dos juros
da dívida (5). Daí, fecha-se um círculo vicioso no debate econômico, reduzindo
este ao discurso de austeridade fiscal (“não cabem todos no orçamento”) que
oculta a submissão do interesse nacional ao rentismo financeiro (“o país honra
os seus contratos”).
Bolsonaro seria
exceção à regra? Apoiando-se na retórica do “Estado mínimo”, o presidenciável
retoma o ideário das “privatizações e concessões” enquanto instrumentos de
gestão que “deverão ser obrigatoriamente utilizados para o pagamento da dívida
pública”. Uma vez mais, verifica-se a postulação de um mercado livre que,
entregue a si mesmo, consumaria à perfeição o sonho liberal:
[...] devemos ressaltar que a linha mestra de nosso
processo de privatizações terá como norte o aumento na competição entre
empresas. Afinal, com mais empresas concorrendo no mercado a situação do
consumidor melhora e ele passa a ter acesso a mais opções, de melhor qualidade
e a um preço mais barato.
Quais seriam os
critérios para delimitar interesses estratégicos nessa proposta (ameaça?) de
uma política agressiva de alienação dos ativos nacionais? O programa de
Bolsonaro talvez ofereça alguma pista ao tropegar pelo tema do comércio
internacional. Aqui, no entanto, topamos com premissas temerárias. Inicia-se com um pretenso
diagnóstico: seríamos um dos países menos abertos ao comércio internacional e,
portanto, estaríamos menos aptos a competir em mercados de alta tecnologia. O
remédio? Lançarmo-nos de peito aberto à competição internacional com a redução
de alíquotas de importação e de barreiras não-tarifárias e, não menos, com a
instituição de novos acordos bilaterais. Para o “capitão”, o comércio
internacional lograria um “choque tecnológico positivo”, caracterizando a senha
para os ganhos de produtividade e o crescimento econômico. Nos termos
propostos, a fusão (em andamento) da Embraer com a Boeing seria um salto
qualitativo para nossa aviação comercial...
O que ignora por
completo Bolsonaro et caterva? Na atual divisão internacional do
trabalho, os verdadeiros saltos se dão pela acumulação técnico-científica feita
em casa, na medida em que o progresso técnico se irradia através de produtos
protegidos por patentes. Estas, por óbvio, tendem a cristalizar a diferença
qualitativa no intercâmbio comercial de países industrialmente avançados com
outros que, tais como o Brasil, não priorizam C&T, lembrando que
enfrentamos um severo processo de desindustrialização, cenário no qual o aceno
para o livre-cambismo feito por Bolsonaro pode intensificar a crise da receita
pública.
Por fim, tive um trabalho adicional neste castigo que foi passar a limpo o programa do “capitão”: contar as ocorrências das palavras “privatizar”, “privatização” ou “privatizações”. Estas foram mencionadas nove vezes. Em contrapartida, a palavra “soberania” foi citada uma só vez.
Sob a enxurrada de
notícias falsas e “memes”, uma agenda ultraliberal se impõe com demonstrações
raivosas de adesão ao pretendente a führer tropical.
[1] http://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/53635/apoiadores-de-bolsonaro-realizaram-pelo-menos-50-ataques-em-todo-o-pais
[2] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos
[3] https://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/10/os-366-deputados-que-aprovaram-pec-241-proposta-que-congela-investimentos.html
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