segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 1)


Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte 1)

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Nestes dias que parecem durar décadas, tornou-se corriqueiro vermos nas redes virtuais textos e imagens depreciativos do comunismo ou do socialismo tomado como seu sinônimo. Quem o faz assume, em regra, um posicionamento contrário ao Partido dos Trabalhadores e aos demais partidos situados à esquerda no espectro político, aos movimentos populares e aos coletivos criados a partir de pautas identitárias. Neste 2º turno da corrida presidencial, tal posicionamento é francamente pró-Bolsonaro, uma vez que ele personificaria uma luta bíblica contra o "perigo vermelho".

Os alardes sem pé nem cabeça em torno do comunismo apenas confirmam que estamos imersos numa geleia geral em que muitos ignoram o que desejam - um governo autoritário - e desejam o que ignoram - a violência física arbitrária contra qualquer um(a) que pratique o dissenso. Nesta circunstância, existe a tentação de recairmos na condição de escravos que Platão, magistralmente, descreveu em "O Mito da Caverna", já que podemos muito bem confundir a nós mesmos com as sombras que projetamos em nossas bolhas na Internet. Sim, concedo, é muito difícil a esta altura dos acontecimentos pararmos para esmiuçar quais critérios adotamos para defender ou atacar uma visão de mundo. O tempo urge.

Mas, como nos ensina o metodólogo Pedro Demo, se ideologia "esperta" é aquela que não diz que o é, penso ser oportuno analisar a luta ideológica da qual não podemos nos retirar por decreto. Faço isso sem querer devolver aos bolsonaristas o mesmo tom agressivo com o qual tratam a nós, democratas, para demarcar o seu lugar no mundo ou, melhor dizendo, para se safar das fobias que têm por viver em um mundo cujas mudanças não compreendem. Fazê-lo somente os incitaria a reforçar sua posição, já que muitos deles são, além de eleitores, "seguidores" de Jair Bolsonaro e este equipara-se ao seu eleitor médio numa verdadeira simbiose. Ademais, foi-se o tempo que os postulantes ao cargo público de maior autoridade da nação desempenhavam uma função pedagógica na articulação do discurso político. Talvez o presidenciável Ciro Gomes fosse o mais preparado neste quesito, mas tirou férias do Brasil...

É muito curiosa essa fixação dos eleitores/seguidores de Bolsonaro com o tema do comunismo. Pasmem, até a minha mãe passou a se preocupar com ele! Desculpem, já me alonguei demais nessa introdução.

A pergunta é "simples": quem pragueja contra o comunismo sabe, afinal de contas, o que é liberalismo?

Em ciências sociais, sabemos que os "ismos" comportam diferentes linhagens de pensamento e que seus cruzamentos podem transgredir o significado compartilhado em seu contexto de origem. Comunismo e liberalismo têm o seu grão de verdade e se fosse para arriscar uma síntese, escolheria para o primeiro a célebre frase de Karl Marx: "De cada um, segundo suas capacidades; a cada um, conforme suas necessidades". Já para o último, bem poderíamos ficar com Ortega & Gasset ao interpretá-lo como o "direito assegurado pela maioria às minorias e, portanto, o apelo mais nobre que ressoou no planeta... A determinação de conviver com o inimigo e ainda, o que é mais, com um inimigo fraco". Trocando em miúdos: o aprendizado coletivo para lidar com frustrações diante de resultados eleitorais desfavoráveis sem pôr a perder as instituições que garantem, como prêmio à tolerância ao adversário, uma nova chance na eleição seguinte.

De 2016 para cá, constatamos com sangue derramado (Marielle Franco e Anderson Gomes, Moa do Katendê) que estamos longe de consumar tal aprendizado e, provavelmente, esse déficit de consciência democrática continuará a cobrar o seu preço enquanto não reabilitarmos o debate público. Desse modo, creio que discutir o liberalismo seja um convite ao diálogo destinado àqueles(as) que votam em Bolsonaro. Por quê? Simplesmente, porque o seu programa de governo, bem como o de Fernando Haddad, transigem em diferentes pontos com essa tradição do pensamento político, ao contrário do que uma oposição estanque "Comunismo/Socialismo versus Liberalismo/Capitalismo" faz crer a partir do vazio de pensamento que nos engole nesta época em que todos falam e ninguém se escuta.

Vou limitar a comparação ao tema da educação. Não se trata de uma escolha aleatória. Ora, ainda que quiséssemos retroceder à versão mais ortodoxa do liberalismo que resumisse a vida social à manutenção da ordem legal dos contratos e da segurança pública – o velho “Estado vigia noturno” -, ainda assim, a educação seria dotada de centralidade na concepção/execução da política estatal, pois, ensina-nos T. H. Marshall em seu clássico “Cidadania, classe social e status” (1967), a autonomia civil que o liberalismo preconizou para o indivíduo moderno – empreender suas aptidões e habilidades por sua conta e risco em uma economia de mercado – só se faz efetiva por meio dos instrumentos da educação escolar. 

Não se justificaria, portanto, temer a ação direta do Estado nesse setor da política pública. Esta intervenção estatal não poderia ser tomada por constrangimento e restrição ao curso da ação desejado por alguém, pois o direito social à educação refere-se tanto a uma responsabilidade individual (educar-se) quanto a uma responsabilidade coletiva (educar as gerações futuras), o que vincula a ideia de autonomia civil com a dimensão cívica da cidadania – a capacidade de agir solidariamente para cumprir o dever público de homens e mulheres adultos terem sido educados para o exercício da livre escolha. Noutros termos, qualquer pretensão de atrelar a noção neoliberal de “Estado mínimo” à educação escolar seria, no mínimo, uma impropriedade.    

Até aqui, creio que lançamos as bases para uma comparação das agendas educacionais propostas por Bolsonaro e Haddad, que será desenvolvida na segunda parte desse texto (a ser publicado).

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