Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é
liberalismo? (parte 2)
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Traçados os pressupostos para a questão educacional
(ver parte 1), definamos os pontos de referência na tradição liberal que
facilitarão uma abordagem comparativa dos programas de governo de Fernando
Haddad e Jair Bolsonaro. Para interligá-los, é fortuito indagarmos como
uma visão de mundo igualitária pode ou não se concretizar em uma sociedade nacional.
Segundo Álvaro de Vita[1], ninguém melhor do que
John Ralws sistematizou teoricamente a defesa do igual valor dignitário dos
indivíduos sem, contudo, abrir mão das premissas liberais da ideia de autonomia
que a modernidade nos legou. Seguindo os passos da “justiça rawlsiana”, Vita
elenca três tipos de bens que devem ser considerados no tocante à gestão dos
conflitos distributivos:
- Renda, riqueza, acesso a oportunidades
educacionais e ocupacionais, provisão de serviços (bens passíveis de
distribuição);
- Conhecimento e auto-respeito (bens não passíveis
de serem distribuídos diretamente, mas que são afetados pelo modo como os
primeiros são distribuídos);
- Capacidades físicas e mentais de uma pessoa (bens
cuja distribuição em dada população não são condicionados pela distribuição de
outros bens).
O primeiro e segundo tipos constituem os "bens
primários", que, embora vinculem a todos pelo valor intrínseco que
possuem, são afetados por contingências naturais e sociais que impedem ou, ao
menos, dificultam os indivíduos retirarem deles um benefício mútuo. Sendo assim, como assegurar a cooperação social entre os mais e
menos dotados de recursos escassos de todo tipo? Para Vita, o enfoque
liberal-igualitário de Ralws vislumbra três princípios distintos para a
distribuição de benefícios sociais e econômicos.
O primeiro deles seria a liberdade natural,
do qual se extrai a visão política mais aproximada do liberalismo econômico,
uma vez que esse princípio sugere a combinação de ordem social competitiva com igualdade
formal de oportunidades como condição suficiente para garantir a todos os
mesmos direitos de acesso às melhores posições sociais. Nesta versão do
liberalismo, tão decantada no senso comum pela ideologia da mérito, não se
ofereceria, na prática, uma solução a contento para as desigualdades raciais,
de gênero e étnicas que as relações de mercado acomodam em contrariedade àquilo
que prometem: a inexistência de barreiras legais para o exercício dos próprios
talentos e capacidades sob o veredicto escolar.
A tentativa de superar um padrão de desigualdade
atribuível a fatores naturais e sociais que estão fora do alcance da escolha
individual e que, portanto, tende a se perpetuar de modo arbitrário, redundou
no segundo princípio, a igualdade liberal de oportunidades. Nesta
forma de igualação, tenta-se viabilizar um ponto de partida em que não haja
constrangimentos externos à vontade dos indivíduos que tenham destrezas
semelhantes, bem como motivação para realizá-las conforme suas predileções.
Para tanto, todo um complexo institucional haveria de ser erguido em torno da
efetiva igualdade de status de cidadania, liberando assim os
indivíduos de contingências (lugar de origem, caracteres raciais adscritos,
entre outras) que limitassem suas perspectivas de realização pessoal. Aqui,
importa reconhecer que a estratificação social não deveria ser a medida de
todas coisas para o senso de pertencimento dos indivíduos a uma civilização que
seria em si mesma um bem comum.
Não obstante, um ponto de
partida desigual será assumido in totum se aceitarmos que o horizonte histórico não transcenderá, até prova em contrário, a
sociedade de classes capitalista. No primeiro princípio (liberdade natural), não se daria margem
alguma a ponderações desse tipo. Já no segundo (igualdade liberal de oportunidades), esse condicionante estrutural
apareceria de maneira subliminar como um problema. A desigualdade de classe se
mantem na medida em que recursos intangíveis (background familiar, capital cultural)
são transmissíveis de geração a geração sob um verniz meritocrático que
ocultaria a falta de contrapartida aos desprovidos de vantagens sociais
herdadas, condenando-os, pois, à condição de (sub)cidadãos.
Frente ao caráter inconcluso daquele problema, vem
à tona um terceiro princípio, a igualdade democrática. Aqui
encontramos uma espécie de especulação sobre a motivação moral de um indivíduo para que um
novo padrão distributivo tenha eficácia. Ora, testar o seu próprio
desempenho para fins de classificação em carreiras profissionais privilegiadas e, sobretudo, instrumentalizar-se para tal são
disposições de agir específicas, isto é, implicam uma socialização de certas
atitudes de classe que, digamos, faça com que as (auto)profecias se realizem.
Se não escolho livremente os dotes genéticos nem a circunstância social que me
facultam desenvolver talentos naturais suscetíveis de serem mais
valorizados do que outros em um dado arranjo socioeconômico, por que seria legítimo supor que poucos devam obter a maior parte dos frutos da cooperação social? Vita lembra que essa
arguição na obra de Ralws é controversa, já que lançaria um ataque frontal à
“cidadela última para onde políticos e economistas conservadores recuam quando
querem justificar as desigualdades sociais existentes”. O igual valor
dignitário dos indivíduos não encontraria rival à altura se a fraternidade
fosse, de fato, o ponto médio de um pêndulo que oscilasse entre as
aspirações à liberdade e à igualdade:
O
princípio de igualdade democrática requer que os mais privilegiados abram mão
de tirar proveito das circunstâncias sociais e naturais que os beneficiam, a
não ser quando fazê-lo beneficia também os que têm o menor quinhão de bens
primários (VITA, 1999, p.48).
Revistas essas concepções normativas de justiça
social em seu sentido amplo, passaremos à leitura dos programas de governo na terceira e última parte desse
texto (a publicar). Inicialmente, cogitei avaliá-los já nesta
segunda parte, porém creio não ser construtivo fatigá-los com um
texto demasiado extenso. Adianto apenas que o recorte que
farei das agendas educacionais propostas por Haddad e Bolsonaro privilegiará as
ações voltadas ao ensino pré-escolar e fundamental, por entender que esse período da
aprendizagem é crucial para ampliar as possibilidades de superação das
desigualdades frente à cultura.
[1]
Vita, Álvaro de. Uma concepção
liberal-igualitária de justiça distributiva. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Fev. 1999, vol. 14, nº 39, p.41-59. ISSN 0102-6909
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