segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Memória e resistência


Memória e resistência

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Há quase oito meses, jaz um silêncio ensurdecedor sobre o assassinato de Marielle Franco (PSOL), vereadora pela capital fluminense, e de seu motorista, Anderson Gomes. Se muito, os militares que conduzem a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro lançam mão de declarações protocolares sobre o andamento da investigação criminal que, ao fim e ao cabo, evidenciam condições favoráveis a um estado de compromisso entre mandantes e executores daquele crime político. O silêncio, no entanto, é uma operação sujeita a reveses. Estes se manifestam por meio de iniciativas de tributo à vida de Marielle Franco, as quais relevam ser a memória social um magma capaz de provocar pequenas fissuras no solo aparentemente rígido da história oficial.

Lembrar Marielle Franco na UENF implica reconhecer esta instituição como um território em disputa no momento em que a violência estatal e a estupidez indômita dos bolsonaristas tornam vulneráveis os espaços nos quais o pensamento seja elaborado como crítica do poder pelas próprias possibilidades facultadas por sua livre expressão do ponto de vista científico. Para exemplificar essa vulnerabilidade na UENF, bastaria lembrar que também paira uma névoa de mistério em torno da invasão da sala do professor Marcos Pedlowski por um grupo que se identificou a serviço da Justiça Eleitoral, ação cuja autoria fora negada pelo TRE-RJ.

Evocar o nome de Marielle Franco é assegurar um lugar de pertencimento a memórias coletivas subterrâneas a partir da empatia que sua trajetória pública suscita para com os grupos dominados. Mais do que isso, mostra-nos a posição defensiva em que se encontra a sociedade civil vinculada com as agendas às quais a vereadora carioca se fazia porta-voz diante de uma sociedade majoritária com perturbadores sintomas de fascistização. Tais sintomas tiveram um registro emblemático na destruição da placa em homenagem à Marielle Franco protagonizada por Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, ambos candidatos pelo PSL, partido de Jair Bolsonaro, em ato de campanha ainda no primeiro turno das eleições fluminenses. Tal afronta, diga-se, ocorreu sob o olhar complacente de Wilson Witzel (PSC), eleito governador no segundo turno.


Nada surpreendente. 

O Governo Witzel será a continuidade, em vestes civis, do modus operandi da intervenção federal desde que passou a vocalizar a lógica do “inimigo interno” como fio condutor das ações na segurança pública. "A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo", disse Witzel sem maiores pudores nos primeiros dias após o pleito. Há objeções factuais à retórica belicista com a qual o futuro governador pretende estabelecer sua marca política em consonância com o senso comum sobre a violência urbana.

Os mercados ilegais que fomentam tamanha insegurança não se organizam à sombra do aparelho de Estado, mas dele participam na medida em que os bens e serviços que transacionam são mais ou menos passíveis de incriminação conforme as hierarquias sociais que edificam sua estrutura de poder. Dito de outro modo, é irrelevante autorizar a "caça" aos pobres recrutados nas periferias para desempenhar funções subalternizadas nos mercados ilegais, enquanto o controle repressivo estiver dissociado de serviços de inteligência cuja integração ofereça uma visão global das redes que se articulam nesses mercados e cujos principais elos localizam-se nos espaços urbanos dotados de legitimidade social.

Imprimir eventuais reformas ao código penal ditadas pelo punitivismo não desmente a ineficiência da "guerra ao crime", senão ratifica a eficácia de sua seletividade. Essa é a constatação que sociólogos da violência e da criminalidade reiteram com sólida base empírica em suas pesquisas. Menos evidente é indagar por que algumas pessoas são mais "matáveis" do que outras e como essa clivagem acabou sendo um ponto de inflexão na eleição do terceiro estado mais populoso da federação.

A representação política exercida por Marielle Franco foi uma tentativa de produzir uma resposta crítica e propositiva à questão social na cidade do Rio de Janeiro, que, via de regra, é reduzida ao acordo tácito que separa "gente" de "não gente" através de um cordão sanitário entre morro e asfalto sustentado por velhos preconceitos em torno das "classes perigosas". Para tal empreitada, combinava em seu mandato elementos do ativismo identitário com a visão programática de um Estado social que superasse o Estado de exceção vivenciado de maneira nua e crua pelos subempregados e inempregáveis que o nosso capitalismo periférico produziu numa urbanização caótica ao longo do século XX.

Ante a consolidação de um Estado policial que reflete o eterno retorno das soluções autoritárias, redefinir fronteiras sociais (o atual "sair da bolha") é um trabalho de reconstrução política e este implica novos enquadramentos da memória social, de modo que a distância entre o dito e o não-dito seja encurtada nos embates do presente e do futuro para a afirmação de uma civilização comum. Assim sendo, conferir posteridade ao nome de Marielle Franco é uma forma de resistência que permite à UENF entrecruzar referências do campo popular da política fluminense com a defesa de sua autonomia na guarda de um patrimônio universal: o conhecimento científico.

Marielle e Anderson vivem.

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