Publicado originalmente em Ativismo Protestante (aqui).
Não basta pedir desculpas aos terreiros: deve-se desarmar o cristianismo por dentro.
“A violência faz-se sagrado”.
(René Girard)
“Ler o que nunca foi escrito”.
(Walter Benjamin)
Por Fabio Py*
É com grande tristeza que se recebe outra notícia
sobre mais um templo de candomblé destruído. Foi na segunda-feira, 25 de março, na região de Nova Iguaçu,
na Baixada Fluminense. Segundo os religiosos do próprio terreiro, eles foram
expulsos pelos traficantes, que queriam transformar o centro em uma base para
comércio de drogas. Nas fotos, percebe-se que a violência foi completa, com a
destruição de vasos, de utensílios, de altares. Dois detalhes dessa violência
merecem ser (ainda) mais destacados. Primeiro: no muro de fora do terreiro foi
escrito: “Jesus é o dono do lugar”. Segundo: no ano passado, o mesmo terreiro
foi invadido e impedido, por um tempo, de realizar suas celebrações religiosas.
Esses dados são importantes, porque indicam uma violência contínua nas favelas
contra os terreiros, e que, de alguma forma, os violentadores se relacionam com
o protestantismo-evangélico, embebido com o fundamentalismo. Em um exercício
teológico, porém, observa-se que tal fundamentalismo violador não se sustenta
no que lhe é mais elementar: a leitura bíblica a partir ‘dos originais’.
A territorialidade evangélica e seu vínculo com o fundamentalismo
Sobre tal violência, gostaria de destacar
pontualmente as inscrições no muro do terreiro com a citação em alusão a Jesus,
indicando uma territorização cristã do local. Quero deixar claro que não
gostaria de discutir se os traficantes são ou não cristãos, evangélicos. Minha
preocupação é, antes, perguntar que: cristianismo é esse recebido por eles, que
leva adeptos ou simpatizantes a praticarem tamanha brutalidade ao expulsarem e
destruírem os templos de pessoas que professam outra religião?
É possível argumentar que a especificidade da
violência cristã nas favelas fluminenses tem sua origem no início do século XX,
quando grupo de batistas e presbiterianos americanos escreveram um conjunto de
panfletos e livros chamados “Os fundamentais da fé cristã”. Em tais documentos,
buscavam promulgar os pontos básicos do cristianismo, isto é, seus fundamentos.
Aqueles que seguiam os pontos dos panfletos passaram, a partir de 1920, a se
autodesignar fundamentalistas, preocupados em desenvolver uma revisão
simplificadora do cristianismo. Em suma, os fundamentalistas defendiam que a
Bíblia seria um livro “inerrante” (sem erros). Acrescente um importante
detalhe: os arautos dos fundamentos bíblicos eram patrocinados, em grande
parte, pelo dinheiro do petróleo e da indústria do ferro americana.
O Brasil recebeu uma leva desses fundamentalistas
protestantes no fim da década de 1920. Com ímpeto missionário renovado,
apresentam novo vocabulário de desprezo às práticas religiosas do país. Embora
a primeira leva de missionários fundamentalistas tenha chegado ao Brasil nas
primeiras décadas do século XX, o movimento tomou novo fôlego durante a
Ditadura Militar. No período, o fundamentalismo missionário se renovou, passando
a indicar que o cristão, diferente de Jesus Cristo – que era pobre e galileu –,
também tinha direito a ter prosperidade na terra, a benção. Esse novo movimento
assumia uma forma de pentecostalismo com novas roupagens, unindo cristianismo e
a lógica do mercado neoliberal numa vertente amplamente conhecida como a
“teologia da prosperidade”.
É dessa teologia que vem a ideia da territorização
cristã, tragicamente exemplificada com a inscrição do nome de Jesus no terreiro
de candomblé destruído. Um símbolo da tomada de posse de um espaço sagrado.
Essa violência é mais uma luta por higienização, via discurso religioso,
operado nas áreas das favelas. Também é o reflexo de circuitos de missionários
americanos que reatualizam o imperialismo via apologética cristã.
Não estou afirmando que no Brasil não se produziu
uma forma autônoma e independente de cristianismo. Contudo, digo que elas foram
impulsionadas pelo ímpeto americano de evangelizar o mundo. Como cristão e
teólogo, ao perceber o quão longe pode chegar a violência religiosa praticada
por meus pares, não acho que basta pedir desculpas por mais um templo de
candomblé destruído. Não acho que baste. Diante de uma violação tão
horripilante, a proposta é “operar” a retirada do pavio da dinamite, tal como
indica Walter Benjamin: “antes que a centelha chegue à dinamite, é preciso que
o pavio que queima seja cortado” (Walter Benjamin, Rua de mão única,
1995, p.46).
Exercício para cortar a centelha da pólvora: os ‘inícios’ da Bíblia hebraica
No esforço de tentar cortar a centelha da dinamite,
é preciso reconhecer que as numerosas modalidades de movimentos
fundamentalistas nas diferentes épocas dificultam a possibilidade de um
protestantismo-evangélico menos belicoso. O que é muito sério, pois os
evangélicos têm por fundamento teológico os relatos da Bíblia. Então, minha
proposta de exercício aqui é analisar um dos textos bíblicos mais importantes
na tradição judaico-cristã, o famoso texto de Gênesis 1:1, que abre
a Bíblia. No texto, a maioria das versões das Bíblias protestantes traduzem os
primeiros versos como “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Almeida
Corrigida e Fiel). Recentemente, a Nova Versão Internacional (NVI) optou
por um caminho próximo: “No princípio Deus criou os céus e a terra”. Ambas as
traduções foram produzidas sob incentivo das casas religiosas e missionárias
evangélicas ligadas a alguma expressão do fundamentalismo. Assim, elas operam a
tradução do termo “bereshit” por “no
princípio”.
É interessante, porque, se olharmos pelo menos uma
tradução (mais) técnica católica (não ligada ao fundamentalismo
protestante-evangélico) como a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB),
ela nos apresenta a seguinte tradução: “Quando Deus criou o céu e a terra”,
percebe-se que a sentença da TEB modifica completamente a frase. De “No
princípio Deus criou” para uma indeterminação como “Quando Deus criou o céu e a
terra”. Na explicação dos editores da TEB, no rodapé, afirmam ser essa opção
mais fidedigna à fórmula “Em um princípio Deus criou o céu e a terra”. Ou seja,
considerando que os textos de Gênesis são os mesmos entre
evangélicos e católicos, a fórmula “em um princípio” é a que mais se aproxima
do original.
Continuando o exercício, e, portanto, fazendo uso
das ideias da Reforma Protestante de acesso aos originais e a suas
traduções, percebe-se que nas primeiras palavras da Bíblia não
se expressa nenhuma univocidade como as traduções financiadas pelo
fundamentalismo protestante-evangélico preferem afirmar. Ao contrário,
utilizando a tradução mais próxima do original (“Em um princípio”) nota-se se
que a criação judaico-cristã é apenas uma diante das demais criações do mundo
relatadas nos diferentes credos e povos. Tal tradução relativiza a criação
da Bíblia hebraica. Portanto, como teólogo protestante-evangélico,
o simples dado de rediscutir os “originais” (jargão tão caro à Reforma
Protestante) pode ajudar a diluir as ideais do imperialismo disfarçadas nas
casas missionárias. Auxiliando, quem sabe, a desarmar a centelha que cisma em
correr e estourar diariamente a dinamite do racismo e da intolerância
religiosa.
Finalmente…
É importante afirmar que tal exercício (e outros
mais) pode ajudar na construção de uma agenda de diálogo entre as religiões, na
luta por desarmar o cristianismo brasileiro, cada dia mais bélico, mais racista
com as tradições religiosas vindas da África. Digo isso, enquanto teólogo,
porque acho muito pouco pedir desculpas aos povos de terreiro pelos ataques
feitos em nome de Jesus. Antes, nós cristãos devemos construir uma agenda de
revisão dos primórdios para, aos poucos, desarmar nosso cristianismo belicoso
por dentro, diluindo suas bases duras, apologéticas, cercadas, imperialistas.
Por isso, reafirmo: não basta pedir desculpas. Deve-se construir uma série de
exercícios teológicos com traduções e as tradições da história da igreja, que
poderiam ajudar no desarme do cristianismo brasileiro tão acostumado à
depredação dos demais. Assim, por conta da nova destruição do templo de
candomblé feita sobre o nome de Jesus, assumo que o protestantismo-evangélico
brasileiro merece ser revisto não só ‘por fora’, mas, principalmente, ‘por
dentro’ mediante uma severa revisão de desarme de suas lideranças e das doses
imperialistas que impregnam ativamente seus templos.
Fontes consultadas:
* Teólogo; Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais (UENF).
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