Covid-19 e conjuntura: Risco, catástrofe, percepção e tomadas de
decisão – parte II
George Gomes Coutinho
“Chegaram totalmente impreparados ao seu
encontro com a história (...)”
Antônio Scurati[1]
Foto do Centro de Campos dos Goytacazes, RJ, por George Coutinho em 25/03/2020
Na primeira
parte desta reflexão, disponível aqui, apresentamos uma breve síntese[2]
da proposta teórica de Ulrich Beck (1944-2015) que construiu em sua carreira as
bases de sua profícua sociologia do risco.
Para Beck não há propriamente uma pós-modernidade. O que temos é um processo, e
é vital frisar que estamos falando de algo dotado de caráter processual, onde é
possível observar a radicalização estrutural dos princípios modernizantes da
sociedade nas últimas quatro ou cinco décadas, incluindo, por exemplo, tanto o
encurtamento de distâncias (simbólicas e físicas) quanto o incremento de
reflexividade.
Por obra da
reflexividade há a ruptura da perspectiva de progresso unilinear e
invariavelmente positiva. O incremento de reflexividade abre a percepção para o
lado sombrio do progresso técnico-científico-industrial desnudando suas mazelas[3]
dotadas de potencial irreversível e da possibilidade de tornar a vida humana
até mesmo inviável. “Antropoceno” diriam alguns onde uma concepção cornucopiana
de natureza e de produção se desmancham no ar.
Na modernidade radicalizada
os Estados-Nacionais veem seus processos de tomada de decisão consideravelmente
constrangidos na medida em que os riscos
não respeitam necessariamente os limites fronteiriços tradicionais. A primeira
versão de “Sociedade de Risco” de nosso autor, é importante notar, é
apresentada ao mundo no longínquo ano de 1986 em plena conjuntura de uma
tragédia cujos rebatimentos ameaçaram simplesmente parte da Eurasia. Falamos
aqui de Chernobyl.
A descrição de
uma sociedade auto-consciente de seus riscos
e monitorando sistematicamente os mesmos envolve considerar, nas tomadas de
decisão, o conjunto sofisticado de metodologias, dados, predições analíticas,
modelagens matemáticas, etc.. Se a tensão entre leigos e especialistas é
previsível neste cenário pelas linguagens e visões-de-mundo diferentes, Beck
coloca que o sistema político não poderia seguir imune.
Em uma
inspiração luhmanniana[4]
lembramos que fazer política é tomar decisões tomadas de caráter vinculante.
Portanto, a política é feita na sociedade, da sociedade e para a sociedade. Desta
maneira, dadas as mudanças de caráter estrutural, Beck irá assinalar redirecionamentos
sensíveis e qualitativos no modus
operandi da política moderna[5].
Possivelmente
compartilhando a clássica proposição weberiana acerca da modernidade 1.0[6],
o parlamento seria o “centro da formação da vontade racional”[7]
no âmbito político. Em outros termos: dada a heterogeneidade e complexidade das
sociedades industriais, o que envolve assumirmos inclusive a diversidade de
interesses e conflitos, os parlamentos são espaços que acomodam provisoriamente
a natureza explosiva destas interações gerando sínteses, sempre imperfeitas,
que redundam em decisões dotadas de caráter vinculante. O parlamento é o espaço
por excelência da política em tempos normais, salvo os momentos onde lideranças
extraordinárias se apresentam (Weber, 1997).
Na modernidade
radicalizada os processos políticos não deveriam ignorar o incremento de
reflexividade. Trata-se de ponto de não retorno. Disto deriva que mesmo nos
processos de tomada de decisão no âmbito político a modulação
técnico-científica se impõe. É fundamental ressaltarmos que na análise de Beck
acerca da modernidade 2.0, não há atalho
para o risco. Sendo o risco
produto também do avanço do progresso industrial, seu caráter lusco-fusco de probabilidade
e concretude constrange os atores políticos.
Beck tem uma
perspectiva crítica desta fragilização da vontade política stricto sensu modulada pela ciência e por outros campos
tecnificados. Para o autor, o acompanhamento crítico, público e
transdisciplinar se coloca como via para a defesa em si da democracia cerceada
por um possível futuro distópico de autocracias tecnificadas. Não se trata aqui
de adesão ingênua ou apologética ao domínio científico, tal como em parte do
senso comum mais cínico que faz a defesa das decisões “técnicas”, supostamente
impolutas, e coloca de outro lado o âmbito político naturalmente decrépito e
corrupto. Há mais problemas do que soluções no empoderamento dos grupos sociais
que se apresentam enquanto agentes do progresso técnico-científico, sejam estes
economistas, biólogos ou administradores.
Por outro lado
Beck não é um reacionário. Ele não está aconselhando, de forma alguma, que se ignorem os diagnósticos e demais
produtos do contraditório avanço técnico-científico. Ele está propondo é o
amplo debate, nos moldes democráticos, e que a política também se informe de
tais produtos e afins. Trata-se de apropriação crítica[8]
onde a imaginação política não se torne raquítica. Mas, que também não enverede
na irresponsabilidade de ignorar os fatos. Há a defesa de um equilíbrio fino,
portanto, entre vontade política e avanço técnico-científico nos complexos
processos de tomada de decisão na sociedade de risco.
De alguma
maneira o autor descreve a fisionomia dominante da política por décadas em
países cêntricos e periféricos onde novos movimentos sociais, instituições
governamentais, ONG´s, empresas de consultoria, etc.. se apresentam como atores
importantes para compreendermos as configurações das políticas públicas e do
Estado. Banco Mundial, Greenpeace, WWF, Organização Mundial da Saúde, Freedom
House, Eurasia Group, etc, não são nomes estranhos para quem acompanha o
processo de criação, implementação e avaliação de políticas públicas de
naturezas diversas. Estas organizações se destacam tanto por seu caráter
transnacional quanto por materializarem e atuarem em recomendações, propostas e
relatórios elaborados justamente por grupos dotados de alta qualificação, as
autoridades do mundo técnico científico.
Trata-se de um
fotografia do establishment. Com
reservas e nuances podemos inserir Gerard Schroeder e Angela Merkel. Clinton,
Bush Jr e Obama. Em nosso quintal FHC, Lula, Dilma e até mesmo Temer, O Breve.
Mas, de lá até aqui decorreram mudanças eleitorais experimentadas fortemente
nos últimos anos que são compreendidas como movimentos de crítica à
globalização que caem no colo dos “perdedores” imediatos da classe
trabalhadora, pobres e dotados de baixa qualificação. Mas, em paralelo pensamos que estes movimentos possam ser enquadrados também como um movimento de
rebeldia contra o incremento de reflexividade que detectamos nesta modernidade
2.0. Falamos dos populismos de direita, e assim utilizamos a nomenclatura tal como
empregada por Steve Bannon[9].
É neste cenário contemporâneo de disputa de narrativas políticas que a Covid-19
se depara e de onde já podemos detectar consequências trágicas nos processos políticos
de tomada de decisão propriamente, tendo impactos diretos na vida e na morte de
populações inteiras.
Continua...
[1]
Citação retirada do texto “O fim de uma era” onde Scurati faz uma análise tão
poética quanto sombria de Milão nestes tempos de pandemia. Uma das versões do texto em tradução para o português
encontra-se em: https://vermelho.org.br/2020/04/05/o-fim-de-uma-era/,
acesso em 06 de abril de 2020.
[2] Me
concentrei propositalmente em determinados pontos da teoria para discutir os
elementos que interessam para este ensaio experimental de sociologia e
política. A teoria de Beck tem muito mais bifurcações do que os limites desse
espaço poderiam dar conta.
[3]
Beck já chamava a atenção para o problema dos “riscos desigualmente
distribuídos” em uma sociedade de classes. Para a conjuntura do Covid-19 recomendo
o texto “Corona vírus, desigualdade e sociedade global de risco” de Fabrício
Maciel na mesma toada. O texto encontra-se disponível aqui: http://macielfabricio.blogspot.com/2020/04/corona-virus-desigualdade-e-sociedade.html.
[4]
HELLMANN, Kai-Uwe. Aristoteles y nosotros. In: NAFARRATE, Javier (org.). Niklas Luhmann: La política como sistema.
Mexico, D.F.: Universidad Iberoamericana, 2009, p.51-80.
[5] Irei
utilizar neste texto dois momentos de Beck analisando as conexões entre
política e sociedade de risco: tanto o clássico “Sociedade de Risco”, publicado
no Brasil pela editora 34 em 2010 quanto “A política na sociedade de risco”,
publicado na revista Ideias da Unicamp igualmente em 2010.
[6]
WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São Paulo:
Nova Cultural, 1997 (col. Os Economistas).
[7]
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a
uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
[8]
Beck defende que a sociologia pode desempenhar um papel importante nesta tarefa
de análise não-dogmática e produtiva do conhecimento técnico científico a ser
consumido pela sociedade.
[9]
Recomendamos as entrevistas de Bannon onde os termos “populista de direita”, “populismo
nacionalista”, “nacional-populismo”, etc, são empregados como auto-designações tão
legítimas quanto elogiosas. Por exemplo esta aqui para o El país republicada
pelos colegas da Unisisnos: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/587807-bolsonaro-salvini-e-orban-sao-os-melhores-representantes-do-movimento-nacional-populista-entrevista-com-steve-bannon
[2] Me concentrei propositalmente em determinados pontos da teoria para discutir os elementos que interessam para este ensaio experimental de sociologia e política. A teoria de Beck tem muito mais bifurcações do que os limites desse espaço poderiam dar conta.
[3] Beck já chamava a atenção para o problema dos “riscos desigualmente distribuídos” em uma sociedade de classes. Para a conjuntura do Covid-19 recomendo o texto “Corona vírus, desigualdade e sociedade global de risco” de Fabrício Maciel na mesma toada. O texto encontra-se disponível aqui: http://macielfabricio.blogspot.com/2020/04/corona-virus-desigualdade-e-sociedade.html.
[4] HELLMANN, Kai-Uwe. Aristoteles y nosotros. In: NAFARRATE, Javier (org.). Niklas Luhmann: La política como sistema. Mexico, D.F.: Universidad Iberoamericana, 2009, p.51-80.
[5] Irei utilizar neste texto dois momentos de Beck analisando as conexões entre política e sociedade de risco: tanto o clássico “Sociedade de Risco”, publicado no Brasil pela editora 34 em 2010 quanto “A política na sociedade de risco”, publicado na revista Ideias da Unicamp igualmente em 2010.
[6] WEBER, Max. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. São Paulo: Nova Cultural, 1997 (col. Os Economistas).
[7] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
[8] Beck defende que a sociologia pode desempenhar um papel importante nesta tarefa de análise não-dogmática e produtiva do conhecimento técnico científico a ser consumido pela sociedade.
[9] Recomendamos as entrevistas de Bannon onde os termos “populista de direita”, “populismo nacionalista”, “nacional-populismo”, etc, são empregados como auto-designações tão legítimas quanto elogiosas. Por exemplo esta aqui para o El país republicada pelos colegas da Unisisnos: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/587807-bolsonaro-salvini-e-orban-sao-os-melhores-representantes-do-movimento-nacional-populista-entrevista-com-steve-bannon
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