terça-feira, 2 de junho de 2020

A Pandemia e a Educação*



            A Organização Mundial da Saúde declarou, no dia 11 de março de 2020, a existência de uma pandemia. Era uma quarta-feira e, de imediato, a declaração não trouxe qualquer impacto sobre o sistema educacional brasileiro: as aulas continuaram ao longo da quarta, da quinta e da sexta-feira. Todavia, as atividades letivas foram suspensas e permaneceram assim desde a segunda-feira de 16 de março. Desde então escolas e universidades se deparam com questionamentos sobre o futuro da Educação.
Durante os primeiros dias, quando não se sabia ao certo como proceder, houve uma suspensão das atividades de ensino. Com o passar do tempo, algumas escolas e faculdades particulares decidiram adotar sistemas de ensino remoto, fazendo uso de aplicativos de comunicação para ministrar aulas online. É preciso frisar que não houve qualquer tipo de preparação para isso: estudantes e professores foram lançados, da noite para o dia, na difícil missão de continuar as atividades educativas através de dispositivos móveis de comunicação em tempo real. Alguns professores compraram quadros – e até mesmo computadores e outros dispositivos – para ingressar nessa jornada. As aulas não adotavam modelos diferentes daqueles utilizados na experiência de ensino presencial: cabia ao professor falar para seus alunos por intermédio de uma câmera e escrever no quadro tal como sempre aconteceu. É claro que algum tempo passou isso fosse alcançado, pois em um primeiro momento havia total indefinição e professores davam aulas de 20 minutos e chegaram a enviar questões por aplicativos de mensagens. O improviso foi a regra – tanto para alunos, quanto para professores.
Os dias de ensino remoto se transformaram em semanas e as semanas em meses. O que era um improviso temporário foi se transformando em um arranjo necessário com duração indeterminada. Isso escancarou as desigualdades do sistema educacional. Estudantes que não tinham estrutura para assistir aulas remotas, mas que possuíam condições para investir nisso, trataram de criar ambientes mais agradáveis para assistir suas aulas. Aqueles que não tinham condições para isso, então, permaneceram improvisando o acesso através dos dispositivos disponíveis. E para completar o quadro: aqueles que não dispunham nem de condições precárias de acesso à Internet, nem de meios para adquiri-las, viram-se excluídos do sistema educacional. Muitas turmas que antes tinham 30 estudantes, virtualmente não conseguem incluir nem a metade. Estudantes de áreas afastadas, que pegavam dois ou mais transportes para chegar à escola, que não dispunham de dispositivos de teleinformática - nem de acesso à Internet -, ficaram de fora do direito de acesso à Educação.
Os professores, por sua vez, tiveram suas rotinas drasticamente transformadas. Sem tempo para adaptar-se aos novos instrumentos para ministrar suas aulas, mergulharam às cegas em ambientes virtuais de aprendizagem. A responsabilidade pela propriedade de instrumentos de trabalho foi lançada sobre eles, que tiveram que adquirir por conta própria equipamentos para o exercício da docência. E não fica por aí: pois rotinas exaustivas de trabalho foram impostas, impondo, além das aulas, atividades de atendimento aos estudantes, reuniões remotas e todas as outras atividades que já caracterizavam o ofício: preparação de conteúdo, correção de atividades etc.
O cenário é desolador. Profissionais desgastados ministrando aulas para turmas que foram divididas entre aqueles que podem e aqueles que não podem acessar as aulas. Mesmo aqueles estudantes que conseguem acessar as aulas por vezes encontram dificuldades com o novo modelo de ensino e não absorvem adequadamente o conteúdo disponibilizado. Há também quem não disponha, em casa, de um ambiente adequado para as atividades educacionais – e isso vale para estudantes e professores.
Estou tratando a “Educação” como um grande pacote, mas há diferenças cruciais que devem ser pensadas. Crianças em processo de letramento ou nos primeiros anos escolares também passaram a lidar com os ambientes de ensino remoto. Muitos pais, também eles adaptando-se às rotinas de trabalho em “home-office”, passaram a ter que trabalhar e auxiliar as crianças em suas atividades, o que criou um contínuo processo de estresse doméstico. Isso para os pais que puderam permanecer trabalhando em casa, pois muitos não tiveram tal condição. Neste caso, o que acontece com as crianças?
Faltou um plano de ação comum para lidar com os efeitos da pandemia sobre a Educação. Faltou, sobretudo, sensibilidade na condução do problema. O ENEM foi adiado, mas apenas depois de muito debate. O Ministério da Educação sustentou enquanto pode a ideia de que “O Brasil não pode parar” e veiculou uma propaganda com jovens em ambientes asseados, organizados e decorados com bandeirinhas, clamando pela manutenção do exame para que uma “geração de novos profissionais” não fosse perdida: “a vida não pode parar” – dizia o jovem do comercial. A vida, no entanto, parou para milhares de pessoas – definitivamente. E o comercial não considerou todos os estudantes que estavam há meses sem aulas. O Enem foi adiado, mas não existe adiamento que recupere o (antigo) fosso de desigualdade que foi aprofundado ao longo da pandemia.
O problema do ensino remoto não diz respeito somente aos jovens em idade escolar. Estudantes universitários também foram atingidos pela suspensão das aulas presenciais. E sofrem, tal como os mais jovens, com questões muito semelhantes, desde a dificuldade de acesso até o desencanto de aulas online: “uma aula chata com um professor falando lá na frente, é uma aula chata; uma aula chata com apenas a testa de um professor sendo projetada no monitor é muito pior” – disse um estudante. A dificuldade de transmitir remotamente o conhecimento específico de certas áreas é o obstáculo ao ensino remoto – que não permite aulas práticas e não é capaz de proporcionar o ambiente de um laboratório ou convivência em trabalho com profissionais experientes. Entretanto, uma qualidade do ensino remoto já se insinuou e cativou parte do público: a economia de tempo no deslocamento até os estabelecimentos de ensino e o posterior retorno aos ambientes domésticos. No caso de estudantes universitários que moram em uma cidade e estudam em outra – e fazem o trajeto de ida e volta diariamente -, a economia de tempo pode ficar em torno de 4 horas por dia. Abre-se margem, assim, para que o ensino remoto ganhe maior atenção.
Já li análises de profissionais da Educação que demonstraram-se otimistas em relação à ampliação de ensino remoto. Argumentos de que, assim, poderíamos, enfim, abandonar modelos de ensino conteudista e focar a atenção nos estudantes. Parece animador e o tom utilizado dá a entender que o debate é uma novidade proporcionada pelo desafio do ensino remoto, mas deixa de lado que essa questão apresenta-se como desafio há muito tempo no ensino presencial e que a “Educação a Distância” não promoveu grandes avanços nesse sentido.
É preciso manter no horizonte que as decisões tomadas agora podem ser para caminhos sem volta. A Educação a Distância é uma modalidade já estabelecida e destinada a um público com características específicas. O modelo agora começa a se insinuar como algo que poderia ser para todos – e o preço disso será, obviamente, a redução de oferta nos cursos presenciais, além das ameaças às carreiras docentes. Há cursos que podem passar a existir apenas na modalidade remota. Em um governo ultra-liberal, com alianças estreitas com empresários da área da Educação – sobretudo da Educação a Distância -, o isolamento social provocado pela pandemia de coronavírus pode servir a um duplo propósito: 1) expandir a atuação das faculdades particulares em modalidades remotas; 2) fechar cursos em universidades públicas ou reduzir drasticamente suas cargas horarias presenciais a partir da adoção de modelos híbridos – mesclando presencial e remoto. Professores poderão ter suas aulas gravadas e replicadas eternamente e com isso será deteriorada a carreira docente e será desvalorizada a relação pedagógica estabelecida através do contato – algo cuja importância é destacada desde sempre e que encontrou na relação entre mestres de ofício e seus aprendizes uma expressão singular. Perder-se-á em relevância, pois, a atuação professoral e, com ela, a própria qualidade do processo de aprendizado.
E isso é apenas o começo.


Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.


* Texto publicado originalmente no jornal Folha da Manhã no dia 30 de Maio de 2020 - http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1262082-carlos-valpassos-a-pandemia-e-a-educacao.html

2 comentários:

  1. Abraão, meu caro, parabenizo você por este texto. Aos meus olhos, uma das análise mais sensatas que já li sobre os entraves da educação neste cenário.

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    1. Querido Paulo, muito obrigado por sua leitura e por sua generosa avaliação. Forte abraço :)

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